Veja - Como o senhor vê o comportamento do presidente Sarney? Ele se apóia mais nos militares ou na Aliança Democrática?
FERNANDO HENRIQUE - O problema do presidente Sarney é trabalhar com homens que não têm voto nem influência no Congresso. O único ministro parlamentar é o da Educação, Jorge Bornhausen. Isso dificulta a ação do governo: No passado, quando o Congresso era apenas ornamental, não havia problema. Hoje, como o governo se afastou do Legislativo, o Congresso quer o parlamentarismo porque não aceita mais ficar à margem do processo. A outra dificuldade é o fato de o PFL ter perdido as eleições de novembro e o governo ter mantido tudo inalterado. Não se faz democracia sem levar o voto em consideração.
Veja - Por duas vezes o presidente recorreu aos militares para definir assuntos importantes de seu governo. Quando anunciou que ficaria cinco anos no cargo e, agora, para tratar do regime de governo a ser definido na Constituinte. O senhor não acha isso sintomático?
FERNANDO HENRIQUE - Toda vez que isso acontece fica pior a emenda do que o soneto. Essas tentativas de ameaçar o Congresso só funcionam quando ocorre um processo de transição da democracia para o autoritarismo. Agir assim, agora, é remar contra a maré. A reação dos parlamentares, nesses casos,
deve ser serena, porém muito firme. Ouvimos argumentos, mas não aceitamos imposições pelo medo. Hoje, esse rolo compressor que está montado na defesa do presidencialismo deixa fraturas expostas. Pior ainda: o presidente da República pode sair como perdedor nessa história. Ele não precisa perder nem correr esse risco.
Veja - Os militares brasileiros têm hoje vocação democrática?
FERNANDO HENRIQUE - Caminham nesse sentido. Democracia se aprende na briga. Nem os civis podem considerar-se campeões da democracia. O que não se pode fazer é o jogo do golpe. Temos que fazer o oposto, investir no que existe de vocação democrática entre os militares. Sei que agora, por
exemplo, há vários setores mais nervosos que, achando que vão perder tudo na Constituinte, já começam à pensar nos militares. Têm saudade do presidente Figueiredo e coisas assim. Não tenho nada contra Figueiredo. Ele, se quiser, que se candidate. Mas lutamos tantos anos para avançar e começar a democratizar o Estado que não podemos agora dar trela a esse tipo de saudosismo sem cabimento.
Veja - O senhor acredita que, no Brasil, o poder civil tem vocação golpista tanto quanto os militares?
FERNANDO HENRIQUE - O poder civil tem mais. Depois, o feitiço vira contra o feiticeiro. Os civis vão à caserna com a idéia de que vão se servir das Forças Armadas. Elas intervêm e depois afastam os civis. Foi isso o que ocorreu em 1964 e acontece com uma certa freqüência. Essa história precisa acabar. A
questão política precisa ser resolvida na luta entre os partidos, sem que as legendas políticas admitam intervenção no processo, como fazem freqüentemente. Na reunião do ministério, o deputado José Lourenço não podia ter feito um discurso solidário com o ministro do Exército. Quando um militar diz que uma minoria está mandando no Congresso é preciso contestar. Deve-se demonstrar que ele está enganado, que não é uma minoria, não.
VEJA - Por que o ministro Leônidas Pires Gonçalves se insurgiu contra a Constituinte na reunião com o presidente?
FERNANDO HENRIQUE - Porque o projeto mudou a determinação do papel das Forças Armadas de defesa da "lei e da ordem" para defesa da "ordem constitucional". Pode parecer jogo de palavras, mas não é. Alguns setores militares têm a impressão de que ao se falar em ordem constitucional não se abrange a ordem pública. Entendem que, assim, a Constituição veda a intervenção, por determinação do presidente, para a garantia de eleições, por exemplo.
Veja - Não está em questão nesse debate a legitimação de um eventual golpe de Estado?
FERNANDO HENRIQUE - Não se impede golpe de Estado por um artigo na Constituição. Só se pode evitá-lo com uma mentalidade democrática. O texto constitucional deve dizer em que condições as Forças Armadas devem exercer alguma missão na República. Se derem golpe de Estado será sempre contra
a Constituição.
Veja - O senhor acha legítima a intervenção de militares na Constituinte?
FERNANDO HENRIQUE - Não. Acho legítima a exposição de pontos de vista, especialmente quando se trata de matéria relacionada a militares. Todos estão fazendo isso em relação a suas corporações, sejam juízes, sejam procuradores, sejam militares. Não concordo é com a crítica do ministro Leônidas em relação ao papel da minoria. Do ponto de vista da evolução democrática essa crítica não convém e não corresponde à verdade. Soa a passado.
Veja - O PMDB cresceu com a imagem de oposição contundente. Hoje, enfrenta um desgaste junto à opinião pública. Como recuperá-lo?
FERNANDO HENRIQUE - O primeiro passo é não transigir quanto à realização de eleições diretas no próximo ano.
Veja - Mas o deputado Ulysses Guimarães não quer...
FERNANDO HENRIQUE - Ele não quer, mas eu quero, o partido quer. Essa não é uma questão pessoal. A perspectiva de uma pessoa ou de um presidente não pode ser maior que as expectativas de um povo. O PMDB se descaracteriza enquanto não tomar uma posição clara nessa matéria. Nós fomos à rua com Tancredo, sustentamos a sucessão. A Aliança Democrática já morreu e não adianta tentar ressuscitar o cadáver. Na Constituinte, não há nem clima para conversas entre o PMDB e o PFL. E o PMDB se desgastou muito nesse processo de morte da Aliança.
Veja - Muitos líderes do PMDB são contrários às eleições no ano que vem porque estimam que a legenda seria derrotada até mesmo pelo ex-governador Leonel Brizola.
FERNANDO HENRIQUE - Não se pode decidir sobre eleição pensando em um nome. Não se faz democracia preocupado com os inimigos. Do ponto de vista conservador, sempre haverá alguém perigoso. Não sei quais os nomes que o PMDB poderia apresentar para concorrer, mas a democracia vale mais
que o PMDB. Se o partido não tiver condições de ganhar, perde. Isso não é necessariamente mau.
Veja - O senhor disse recentemente que hoje o programa de qualquer candidato a presidente é combater Sarney. O senhor acha que Ulysses e o PMDB podem, afinal, transformar-se numa alternativa para a Presidência?
FERNANDO HENRIQUE - Não tenho dúvidas quanto a isso. Vou dizer uma coisa que talvez eu não devesse. Se o Aureliano Chaves fizer com Sarney o que fez com Figueiredo, eis então uma força que não sei como vamos combater depois. Devemos usar com o PMDB a expressão que dom João VI usou com dom Pedro I: "Põe a coroa logo na sua cabeça, meu filho".
Veja - A linguagem do PMDB envelheceu?
FERNANDO HENRIQUE - O PMDB perdeu a sintonia com a rua. Essa é a questão principal. Acho que o PMDB não deve ser um partido populista, que só pensa na distribuição e não na produção. Tem que ser um partido moderno, que pensa também na produção. O PMDB, porém, não pode deixar de ser popular. O que está acontecendo é que o PMDB, de um lado, fica populista porque pede a distribuição de recursos que não existem e, do outro, impopular porque tem que suportar as políticas que não levam ao bem-estar do povo. O problema do PMDB é assumir o governo integralmente. O PMDB tem alguns ministros no governo, mas é um número apenas formal. Qual é o compromisso efetivo desses ministros com as lutas do PMDB? Nenhum.
Veja - O PMDB também endossa hoje a política de arrocho salarial, enquanto no passado criticava a do Delfim.
FERNANDO HENRIQUE - São políticas diferentes. Hoje é preciso conter os salários por causa do descontrole inflacionário. Naquela época Delfim dizia que era preciso crescer para depois repartir o bolo. Não era uma fase de sucessão como hoje, mas de crescimento. Num momento crítico da economia é natural
que haja perdas de salários. Se apenas os assalariados estão perdendo com essa política, então está errado. O PMDB precisa assumir sua responsabilidade pelo controle da economia.
Veja - O PMDB está numa armadilha entre o compromisso com a transição e as promessas eleitorais?
FERNANDO HENRIQUE - Essa transição está muito lenta. Fogo muito brando não levanta fervura. Há um clima de liberdade no país, todos dizem o que pensam, mas nós não mudamos as instituições. Elas permanecem como antes.
Veja - Como o senhor vê o apoio do PMDB a instrumentos do regime autoritário, como a Lei de Segurança Nacional, invocada quando houve o suposto atentado ao presidente no Rio de Janeiro?
FERNANDO HENRIQUE - Não conseguimos mudar as instituições e, se não mudarmos agora, vamos consolidar esse regime que temos, que não é presidencial, é imperial. Fica entre a imensa burocracia e os interesses da sociedade. Esse nosso presidencialismo é doente. O presidente tem tanta pressão em cima dele que não tem como agir.
Veja - O parlamentarismo resolve tudo isso?
FERNANDO HENRIQUE - O parlamentarismo é um choque nas instituições. Propicia a reforma do Estado. Já fui presidencialista. Hoje sou parlamentarista. Num país como este, o presidente não pode ser como a rainha da Inglaterra. Ele tem que ter poderes. Não pode ser como hoje, com a aparência que tem
poderes mas não tem nenhum. Agora é possível fazer uma reforma no Estado, fechar a torneira do empreguismo. Se o Parlamento não tiver responsabilidades, ele fica demagógico. Tem que funcionar e se aplicar à realidade.
Veja - No que consiste esse presidencialismo imperial de que o senhor tanto fala?
FERNANDO HENRIQUE - Até hoje, nós tivemos um regime meio militarista, meio caudilhesco, essa presidência imperial. Isso vem desde a Proclamação da República. Nunca fomos tão caudilhescos quanto imaginamos que outros países são, mas sempre vivemos nesse horizonte do caudilhismo. O presidencialismo imperial alimenta personalidades caudilhescas, que são as que visam à Presidência da República. Por que o presidente tem sempre de ser um caudilho? No parlamentarismo, mesmo que as pessoas tenham tendência imperial, o sistema as controla.
Veja - A experiência mostra que o parlamentarismo dá certo quando se tem lideranças e partidos consolidados. O Brasil tem hoje essas condições?
FERNANDO HENRIQUE - No sistema hoje em vigor quem manda não é parlamentar. Quem tem vocação real de mando vai para a empresa privada ou para o governo. O parlamentarismo força aqueles que têm vocação real de mando a ir para o Parlamento. Na verdade, o Parlamento já melhorou muito. Na bancada de São Paulo, por exemplo, há nomes como Ulysses Guimarães, Luís Ignácio Lula da Silva, Delfim Netto ou Guilherme Afif Domingos.
Veja - O senhor acha que o deputado Guilherme Afif Domingos e sindicalistas como Antônio Rogério Magri, do Sindicato dos Eletricitários, e Antônio de Medeiros, do Sindicato dos Metalúrgicos, estão ocupando o espaço do PMDB?
FERNANDO HENRIQUE - Não. O Afif está ocupando o espaço do segmento conservador moderno. Acho ótimo que ocupe. Magri e Medeiros não são conservadores, eles estão, na liderança sindical, representando uma coisa que o Lula foi no passado.
Veja - Como assim?
FERNANDO HENRIQUE - O Lula tinha preocupações puramente sindicais. Depois ele mudou para a política. O Medeiros é o oposto. Ele foi político e depois migrou para questões sindicais.
Veja - Como o senhor vê os programas dos outros partidos, que fazem apoio ao governo e atacam o PMDB?
FERNANDO HENRIQUE - São muito líricos, iguais e desatualizados. Não é o programa propriamente que importa. É muito mais o compromisso. Ninguém sabe qual é o programa dos outros partidos, aliás são todos iguais. Todo mundo cobra o do PMDB. O partido deve ter compromisso com cinco ou seis temas centrais. O resto é questão de governo, aplicação do compromisso. Para falar de saúde e transporte; por exemplo, é preciso um nível de informação que só se tem na administração. O importante é a linha. O que precisamos hoje é de democracia e reformas sociais profundas.
Veja - Que tipo de erro o senhor vê tanto no seu partido quanto nos outros?
FERNANDO HENRIQUE - Vou repetir um argumento que uso com freqüência.- Há dois erros principais no Brasil. Um se refere aos programas. O outro é o da modernidade e do arcaísmo. Tem gente que pensa que é progressista, mas é arcaico. Poucos são contemporâneos. Também há conservadores arcaicos e conservadores contemporâneos. Conservador arcaico é gente que não entendeu que o mundo mudou. Um dos problemas do PMDB é o arcaísmo dos setores progressistas, que não viram que o mundo mudou.
Veja - O senhor acha que foi um erro fazer a moratória?
FERNANDO HENRIQUE - A moratória foi feita porque não tinha outro recurso. Não tinha como pagar. Não tinha dinheiro mesmo. Eu vi lá nos Estados Unidos que, por causa da moratória, hoje eles nos recebem de outra maneira. Nos recebem para negociar em outros termos. Agora, imaginar que a moratória é a solução para todos os problemas, tenha paciência.
Veja - Mas essa foi uma das bandeiras do PMDB.
FERNANDO HENRIQUE - Não minha, nunca foi. Sempre disse, na época da discussão, que a moratória é uma contingência, não um objetivo. O objetivo é crescer. É poder investir. Aí você diz: com a moratória sobra para investir. Não sobra, diminuem os recursos também. Mas naquele momento foi necessária
para recompor as reservas.
Veja - O senhor não acredita que, por causa da necessidade de verbas, os governadores do PMDB estão mais preocupados em se compor com o governo federal do que em defender o programa da legenda?
FERNANDO HENRIQUE - Não é bem assim. Por exemplo: o Waldir Pires, da Bahia, o Miguel Arraes, de Pernambuco, e o Fernando Collor de Mello, de Alagoas, não estão fazendo isso. Você pode me dizer que são poucos, mas o número não é o mais importante.
Veja - E o que é mais importante?
FERNANDO HENRIQUE - A crise toda está em outro lugar. O povo votou e não levou. As coisas estão meladas. Ou o PMDB retoma o fio do que fez até novembro do ano passado e assume o governo para fazer mudanças na direção que sempre pregou, ou então o partido vai perder uma parte do que tem hoje. Eu, por exemplo, não vou concordar em deixar tudo como está.
Veja - O PMDB tornou-se um partido inviável?
FERNANDO HENRIQUE - O PMDB tem que mudar de rumo depois da Constituinte. O problema é que não se passou a limpo o resultado das eleições. A vontade popular de novembro passado não se refletiu em mudanças de políticas do governo. Esse é o miolo da questão. O povo fica assustado com isso. O PMDB tem que exigir do presidente da República uma mudança mais radical. Quando o PMDB começou a negociar e quando o governo manteve em seus cargos ministros que perderam as eleições do ano passado, o governo ficou essa coisa pendurada lá em cima e o PMDB pendurado junto, segurando o calcanhar do governo.
Veja - O problema é criar novos partidos ou enfrentar o desencanto da população com os políticos?
FERNANDO HENRIQUE - O desencanto existe, mas ou você trata de encantar a população de novo, ou vamos para o autoritarismo. É preciso manter a chama, que se pode mudar e avançar, senão você tem que acreditar que, mais tarde, um general venha invadir isto aqui.
FERNANDO HENRIQUE - O problema do presidente Sarney é trabalhar com homens que não têm voto nem influência no Congresso. O único ministro parlamentar é o da Educação, Jorge Bornhausen. Isso dificulta a ação do governo: No passado, quando o Congresso era apenas ornamental, não havia problema. Hoje, como o governo se afastou do Legislativo, o Congresso quer o parlamentarismo porque não aceita mais ficar à margem do processo. A outra dificuldade é o fato de o PFL ter perdido as eleições de novembro e o governo ter mantido tudo inalterado. Não se faz democracia sem levar o voto em consideração.
Veja - Por duas vezes o presidente recorreu aos militares para definir assuntos importantes de seu governo. Quando anunciou que ficaria cinco anos no cargo e, agora, para tratar do regime de governo a ser definido na Constituinte. O senhor não acha isso sintomático?
FERNANDO HENRIQUE - Toda vez que isso acontece fica pior a emenda do que o soneto. Essas tentativas de ameaçar o Congresso só funcionam quando ocorre um processo de transição da democracia para o autoritarismo. Agir assim, agora, é remar contra a maré. A reação dos parlamentares, nesses casos,
deve ser serena, porém muito firme. Ouvimos argumentos, mas não aceitamos imposições pelo medo. Hoje, esse rolo compressor que está montado na defesa do presidencialismo deixa fraturas expostas. Pior ainda: o presidente da República pode sair como perdedor nessa história. Ele não precisa perder nem correr esse risco.
Veja - Os militares brasileiros têm hoje vocação democrática?
FERNANDO HENRIQUE - Caminham nesse sentido. Democracia se aprende na briga. Nem os civis podem considerar-se campeões da democracia. O que não se pode fazer é o jogo do golpe. Temos que fazer o oposto, investir no que existe de vocação democrática entre os militares. Sei que agora, por
exemplo, há vários setores mais nervosos que, achando que vão perder tudo na Constituinte, já começam à pensar nos militares. Têm saudade do presidente Figueiredo e coisas assim. Não tenho nada contra Figueiredo. Ele, se quiser, que se candidate. Mas lutamos tantos anos para avançar e começar a democratizar o Estado que não podemos agora dar trela a esse tipo de saudosismo sem cabimento.
Veja - O senhor acredita que, no Brasil, o poder civil tem vocação golpista tanto quanto os militares?
FERNANDO HENRIQUE - O poder civil tem mais. Depois, o feitiço vira contra o feiticeiro. Os civis vão à caserna com a idéia de que vão se servir das Forças Armadas. Elas intervêm e depois afastam os civis. Foi isso o que ocorreu em 1964 e acontece com uma certa freqüência. Essa história precisa acabar. A
questão política precisa ser resolvida na luta entre os partidos, sem que as legendas políticas admitam intervenção no processo, como fazem freqüentemente. Na reunião do ministério, o deputado José Lourenço não podia ter feito um discurso solidário com o ministro do Exército. Quando um militar diz que uma minoria está mandando no Congresso é preciso contestar. Deve-se demonstrar que ele está enganado, que não é uma minoria, não.
VEJA - Por que o ministro Leônidas Pires Gonçalves se insurgiu contra a Constituinte na reunião com o presidente?
FERNANDO HENRIQUE - Porque o projeto mudou a determinação do papel das Forças Armadas de defesa da "lei e da ordem" para defesa da "ordem constitucional". Pode parecer jogo de palavras, mas não é. Alguns setores militares têm a impressão de que ao se falar em ordem constitucional não se abrange a ordem pública. Entendem que, assim, a Constituição veda a intervenção, por determinação do presidente, para a garantia de eleições, por exemplo.
Veja - Não está em questão nesse debate a legitimação de um eventual golpe de Estado?
FERNANDO HENRIQUE - Não se impede golpe de Estado por um artigo na Constituição. Só se pode evitá-lo com uma mentalidade democrática. O texto constitucional deve dizer em que condições as Forças Armadas devem exercer alguma missão na República. Se derem golpe de Estado será sempre contra
a Constituição.
Veja - O senhor acha legítima a intervenção de militares na Constituinte?
FERNANDO HENRIQUE - Não. Acho legítima a exposição de pontos de vista, especialmente quando se trata de matéria relacionada a militares. Todos estão fazendo isso em relação a suas corporações, sejam juízes, sejam procuradores, sejam militares. Não concordo é com a crítica do ministro Leônidas em relação ao papel da minoria. Do ponto de vista da evolução democrática essa crítica não convém e não corresponde à verdade. Soa a passado.
Veja - O PMDB cresceu com a imagem de oposição contundente. Hoje, enfrenta um desgaste junto à opinião pública. Como recuperá-lo?
FERNANDO HENRIQUE - O primeiro passo é não transigir quanto à realização de eleições diretas no próximo ano.
Veja - Mas o deputado Ulysses Guimarães não quer...
FERNANDO HENRIQUE - Ele não quer, mas eu quero, o partido quer. Essa não é uma questão pessoal. A perspectiva de uma pessoa ou de um presidente não pode ser maior que as expectativas de um povo. O PMDB se descaracteriza enquanto não tomar uma posição clara nessa matéria. Nós fomos à rua com Tancredo, sustentamos a sucessão. A Aliança Democrática já morreu e não adianta tentar ressuscitar o cadáver. Na Constituinte, não há nem clima para conversas entre o PMDB e o PFL. E o PMDB se desgastou muito nesse processo de morte da Aliança.
Veja - Muitos líderes do PMDB são contrários às eleições no ano que vem porque estimam que a legenda seria derrotada até mesmo pelo ex-governador Leonel Brizola.
FERNANDO HENRIQUE - Não se pode decidir sobre eleição pensando em um nome. Não se faz democracia preocupado com os inimigos. Do ponto de vista conservador, sempre haverá alguém perigoso. Não sei quais os nomes que o PMDB poderia apresentar para concorrer, mas a democracia vale mais
que o PMDB. Se o partido não tiver condições de ganhar, perde. Isso não é necessariamente mau.
Veja - O senhor disse recentemente que hoje o programa de qualquer candidato a presidente é combater Sarney. O senhor acha que Ulysses e o PMDB podem, afinal, transformar-se numa alternativa para a Presidência?
FERNANDO HENRIQUE - Não tenho dúvidas quanto a isso. Vou dizer uma coisa que talvez eu não devesse. Se o Aureliano Chaves fizer com Sarney o que fez com Figueiredo, eis então uma força que não sei como vamos combater depois. Devemos usar com o PMDB a expressão que dom João VI usou com dom Pedro I: "Põe a coroa logo na sua cabeça, meu filho".
Veja - A linguagem do PMDB envelheceu?
FERNANDO HENRIQUE - O PMDB perdeu a sintonia com a rua. Essa é a questão principal. Acho que o PMDB não deve ser um partido populista, que só pensa na distribuição e não na produção. Tem que ser um partido moderno, que pensa também na produção. O PMDB, porém, não pode deixar de ser popular. O que está acontecendo é que o PMDB, de um lado, fica populista porque pede a distribuição de recursos que não existem e, do outro, impopular porque tem que suportar as políticas que não levam ao bem-estar do povo. O problema do PMDB é assumir o governo integralmente. O PMDB tem alguns ministros no governo, mas é um número apenas formal. Qual é o compromisso efetivo desses ministros com as lutas do PMDB? Nenhum.
Veja - O PMDB também endossa hoje a política de arrocho salarial, enquanto no passado criticava a do Delfim.
FERNANDO HENRIQUE - São políticas diferentes. Hoje é preciso conter os salários por causa do descontrole inflacionário. Naquela época Delfim dizia que era preciso crescer para depois repartir o bolo. Não era uma fase de sucessão como hoje, mas de crescimento. Num momento crítico da economia é natural
que haja perdas de salários. Se apenas os assalariados estão perdendo com essa política, então está errado. O PMDB precisa assumir sua responsabilidade pelo controle da economia.
Veja - O PMDB está numa armadilha entre o compromisso com a transição e as promessas eleitorais?
FERNANDO HENRIQUE - Essa transição está muito lenta. Fogo muito brando não levanta fervura. Há um clima de liberdade no país, todos dizem o que pensam, mas nós não mudamos as instituições. Elas permanecem como antes.
Veja - Como o senhor vê o apoio do PMDB a instrumentos do regime autoritário, como a Lei de Segurança Nacional, invocada quando houve o suposto atentado ao presidente no Rio de Janeiro?
FERNANDO HENRIQUE - Não conseguimos mudar as instituições e, se não mudarmos agora, vamos consolidar esse regime que temos, que não é presidencial, é imperial. Fica entre a imensa burocracia e os interesses da sociedade. Esse nosso presidencialismo é doente. O presidente tem tanta pressão em cima dele que não tem como agir.
Veja - O parlamentarismo resolve tudo isso?
FERNANDO HENRIQUE - O parlamentarismo é um choque nas instituições. Propicia a reforma do Estado. Já fui presidencialista. Hoje sou parlamentarista. Num país como este, o presidente não pode ser como a rainha da Inglaterra. Ele tem que ter poderes. Não pode ser como hoje, com a aparência que tem
poderes mas não tem nenhum. Agora é possível fazer uma reforma no Estado, fechar a torneira do empreguismo. Se o Parlamento não tiver responsabilidades, ele fica demagógico. Tem que funcionar e se aplicar à realidade.
Veja - No que consiste esse presidencialismo imperial de que o senhor tanto fala?
FERNANDO HENRIQUE - Até hoje, nós tivemos um regime meio militarista, meio caudilhesco, essa presidência imperial. Isso vem desde a Proclamação da República. Nunca fomos tão caudilhescos quanto imaginamos que outros países são, mas sempre vivemos nesse horizonte do caudilhismo. O presidencialismo imperial alimenta personalidades caudilhescas, que são as que visam à Presidência da República. Por que o presidente tem sempre de ser um caudilho? No parlamentarismo, mesmo que as pessoas tenham tendência imperial, o sistema as controla.
Veja - A experiência mostra que o parlamentarismo dá certo quando se tem lideranças e partidos consolidados. O Brasil tem hoje essas condições?
FERNANDO HENRIQUE - No sistema hoje em vigor quem manda não é parlamentar. Quem tem vocação real de mando vai para a empresa privada ou para o governo. O parlamentarismo força aqueles que têm vocação real de mando a ir para o Parlamento. Na verdade, o Parlamento já melhorou muito. Na bancada de São Paulo, por exemplo, há nomes como Ulysses Guimarães, Luís Ignácio Lula da Silva, Delfim Netto ou Guilherme Afif Domingos.
Veja - O senhor acha que o deputado Guilherme Afif Domingos e sindicalistas como Antônio Rogério Magri, do Sindicato dos Eletricitários, e Antônio de Medeiros, do Sindicato dos Metalúrgicos, estão ocupando o espaço do PMDB?
FERNANDO HENRIQUE - Não. O Afif está ocupando o espaço do segmento conservador moderno. Acho ótimo que ocupe. Magri e Medeiros não são conservadores, eles estão, na liderança sindical, representando uma coisa que o Lula foi no passado.
Veja - Como assim?
FERNANDO HENRIQUE - O Lula tinha preocupações puramente sindicais. Depois ele mudou para a política. O Medeiros é o oposto. Ele foi político e depois migrou para questões sindicais.
Veja - Como o senhor vê os programas dos outros partidos, que fazem apoio ao governo e atacam o PMDB?
FERNANDO HENRIQUE - São muito líricos, iguais e desatualizados. Não é o programa propriamente que importa. É muito mais o compromisso. Ninguém sabe qual é o programa dos outros partidos, aliás são todos iguais. Todo mundo cobra o do PMDB. O partido deve ter compromisso com cinco ou seis temas centrais. O resto é questão de governo, aplicação do compromisso. Para falar de saúde e transporte; por exemplo, é preciso um nível de informação que só se tem na administração. O importante é a linha. O que precisamos hoje é de democracia e reformas sociais profundas.
Veja - Que tipo de erro o senhor vê tanto no seu partido quanto nos outros?
FERNANDO HENRIQUE - Vou repetir um argumento que uso com freqüência.- Há dois erros principais no Brasil. Um se refere aos programas. O outro é o da modernidade e do arcaísmo. Tem gente que pensa que é progressista, mas é arcaico. Poucos são contemporâneos. Também há conservadores arcaicos e conservadores contemporâneos. Conservador arcaico é gente que não entendeu que o mundo mudou. Um dos problemas do PMDB é o arcaísmo dos setores progressistas, que não viram que o mundo mudou.
Veja - O senhor acha que foi um erro fazer a moratória?
FERNANDO HENRIQUE - A moratória foi feita porque não tinha outro recurso. Não tinha como pagar. Não tinha dinheiro mesmo. Eu vi lá nos Estados Unidos que, por causa da moratória, hoje eles nos recebem de outra maneira. Nos recebem para negociar em outros termos. Agora, imaginar que a moratória é a solução para todos os problemas, tenha paciência.
Veja - Mas essa foi uma das bandeiras do PMDB.
FERNANDO HENRIQUE - Não minha, nunca foi. Sempre disse, na época da discussão, que a moratória é uma contingência, não um objetivo. O objetivo é crescer. É poder investir. Aí você diz: com a moratória sobra para investir. Não sobra, diminuem os recursos também. Mas naquele momento foi necessária
para recompor as reservas.
Veja - O senhor não acredita que, por causa da necessidade de verbas, os governadores do PMDB estão mais preocupados em se compor com o governo federal do que em defender o programa da legenda?
FERNANDO HENRIQUE - Não é bem assim. Por exemplo: o Waldir Pires, da Bahia, o Miguel Arraes, de Pernambuco, e o Fernando Collor de Mello, de Alagoas, não estão fazendo isso. Você pode me dizer que são poucos, mas o número não é o mais importante.
Veja - E o que é mais importante?
FERNANDO HENRIQUE - A crise toda está em outro lugar. O povo votou e não levou. As coisas estão meladas. Ou o PMDB retoma o fio do que fez até novembro do ano passado e assume o governo para fazer mudanças na direção que sempre pregou, ou então o partido vai perder uma parte do que tem hoje. Eu, por exemplo, não vou concordar em deixar tudo como está.
Veja - O PMDB tornou-se um partido inviável?
FERNANDO HENRIQUE - O PMDB tem que mudar de rumo depois da Constituinte. O problema é que não se passou a limpo o resultado das eleições. A vontade popular de novembro passado não se refletiu em mudanças de políticas do governo. Esse é o miolo da questão. O povo fica assustado com isso. O PMDB tem que exigir do presidente da República uma mudança mais radical. Quando o PMDB começou a negociar e quando o governo manteve em seus cargos ministros que perderam as eleições do ano passado, o governo ficou essa coisa pendurada lá em cima e o PMDB pendurado junto, segurando o calcanhar do governo.
Veja - O problema é criar novos partidos ou enfrentar o desencanto da população com os políticos?
FERNANDO HENRIQUE - O desencanto existe, mas ou você trata de encantar a população de novo, ou vamos para o autoritarismo. É preciso manter a chama, que se pode mudar e avançar, senão você tem que acreditar que, mais tarde, um general venha invadir isto aqui.
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