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Entrevista Quadrimestral: Regis Debray

ÉPOCA – O que o senhor acha do populismo em voga na América Latina?
Régis Debray –
Não tenho mais a informação da experiência na América Latina. Um brasileiro que desembarca na França e diz que (o presidente François) Hollande “é um idiota” pode até não estar enganado, mas erra ao declarar. Estou fora daqui há meio século. Em tese, posso dizer que o caudilhismo sempre me despertou certa reserva. O caudilhismo está inscrito na cultura da América Latina, é simpático ao povo, mas impede a construção de um Estado que crie uma permanência e consolide as instituições. O Estado pode ser animado por uma pessoa, mas não pode se confundir com uma pessoa. Os regimes personalistas costumam terminar junto com a pessoa que assumiu o poder. Conheci (Hugo) Chávez, porque ele ia a Paris. Eu simpatizava com o homem Chávez, mas nunca aceitei seus convites para ir à Venezuela, porque não queria participar de nenhuma propaganda.
ÉPOCA – O que dizer a eleitores de esquerda que votaram em Lula e Dilma atraídos pela bandeira da ética, na crença de que seriam governos incorruptíveis?
Debray –
Depende do tipo de corrupção: do dinheiro ou das promessas? A corrupção moral na política não é só comum, é indispensável (sorrisos). Numa democracia, a única maneira de chegar ao poder é fazendo promessas. Todas as campanhas eleitorais são mentirosas. Prometer é enganar. Políticos querem seduzir a qualquer preço. O oportunismo é a base desse exercício. Envolver-se com a política é o mesmo que se preparar para uma desilusão. A política, por definição, é uma decepção.

ÉPOCA – Não há políticos que não se deixem corromper?
Debray –
O incorruptível, na França, era o apelido de Robespierre (1758-1794). E ele era o terror. Mas não só. Defendeu a abolição da escravidão nas colônias francesas, por exemplo. Mas ao mesmo tempo mandou matar na guilhotina milhares de pessoas (entre elas companheiros revolucionários como Danton). E se intitulava “o incorruptível”. A realidade é a corrupção. Somos todos corrompidos, de uma maneira ou de outra. A única forma de se manter incorruptível é permanecer dentro de seu quarto. Se você sai à rua e ainda por cima assume o poder, já faz concessões, assume compromissos. Para transformar o mundo, é preciso entrar nele.
ÉPOCA – Como definiria o exercício da política real?
Debray –
O poder político consiste em administrar as ilusões. Quando um político se dirige à esquerda, ele promete justiça e igualdade. Quando se dirige à direita, promete eficiência, lucro e sucesso. Normalmente, as promessas não são cumpridas.
ÉPOCA – O voto popular ainda é transformador?
Debray –
O que acaba de acontecer na Grécia revelou algo terrível: pode haver democracia sem povo. Vota-se, mas as decisões finais ocorrem em outro nível, mais alto e não nacional, de uma burocracia financeira europeia. Os referendos perderam toda a importância. O povo tornou-se impotente. Já não tem ascendência sobre seu destino. A elite tecnocrata no poder não está nem aí para o voto popular, porque decide o que mais lhe convém.

ÉPOCA – A esquerda está morta?
Debray –
Sim, na Europa pelo menos. Lá, a esquerda interfere apenas nos assuntos marginais da sociedade, como a legalização da maconha ou do casamento homossexual. Temas com repercussão na mídia, mas de menor profundidade. A social-democracia foi engolida pelo sistema financeiro. E a extrema-esquerda é fraca e sem voz. O que não pode morrer é a necessidade de se manter à esquerda. O homem não pode deixar de sonhar. Não pode sucumbir à dominação do dinheiro e da força.

ÉPOCA – Qual é a oposição mais forte aos partidos conservadores? 
Debray –
Na falta da esquerda, o sistema capitalista só enfrenta uma oposição forte, medieval e teocrática: o islamismo. Infelizmente. Hoje, os jovens europeus não partem mais para a Bolívia, eles partem para a Síria e o Iraque. A única contestação séria ao domínio do capitalismo americano vem de Bin Laden e do Estado Islâmico.
ÉPOCA – Vivemos a era do pós-capitalismo, com autocrítica e a participação das redes sociais?
Debray –
Não. Vivemos um capitalismo degenerado, que idolatra o sistema financeiro e não busca produzir o bem-­estar interior ou coletivo, mas sim o lucro e a mais-valia. Um mundo submisso à lei da rentabilidade do dinheiro. É perverso. A política sucumbiu à economia, que não é uma ciência, mas uma técnica, falha como tantas. Na França, os jovens brilhantes não entram mais na política, vão para as finanças, para os bancos e o mercado. A carreira política é hoje para os imbecis. Ou para quem quer saciar uma vaidade, o desejo de ser amado. É mais um arrivismo social que uma ambição política de verdade. Não é um sentimento nobre.

ÉPOCA – Há quem diga que o senhor passou de revolucionário a reacionário.
Debray –
Fui revolucionário há 50 anos, em outro cenário. Quando se está num país onde não há partidos políticos nem sindicatos, onde se tortura e o regime é ditatorial, entende-­se que você abrace a luta armada e caia na clandestinidade. Depois disso, eu voltei à França, um país com partidos, sindicatos, leis. E vivi. Minha opinião de meio século atrás ganhou nuances e exigências. Eu me tornei um reformista radical na França. Continuo um anti-imperialista e um patriota, que não quer ver ninguém de fora se metendo nas leis de seu país. Não um nacionalista, que se acha superior aos outros.

ÉPOCA – Há espaço na América Latina para revolucionários no estilo do Che?
Debray –
Você se refere a alguém que faça do messianismo uma questão secular?  Acho que sim, mas não sob a forma de uma guerrilha rural, algo hoje tecnologicamente obsoleto. Todos têm celulares no bolso. Na América Latina, é verdade que encontramos um certo frescor ou radicalismo e isso fica claro nas manifestações de rua.
ÉPOCA – A que se deve o poder das igrejas evangélicas em países como o Brasil?
Debray –
Quando os valores de nação deixam de existir, os homens buscam outra fé. Na falta de poder cívico, saem em busca de valores seguros, sempre os mais tradicionais. Houve um tempo em que a política era uma religião. Podia exigir sacrifícios e condenar sacrilégios. Quando existe uma dessacralização de poderes políticos, chega-­se a uma politização dos valores sagrados. É um fenômeno que testemunhamos em todo o mundo. A Rússia se torna ortodoxa, dessacraliza Lênin e sacraliza São Sérgio (São Sérgio de Rádonezh, um dos santos mais venerados pelos russos ortodoxos). Os arcaísmos religiosos hoje liquidam os progressistas.
ÉPOCA – Como vê o papa Francisco?
Debray –
O papa Francisco é uma boa surpresa. É digno de todos os elogios. Ele compreendeu que a força da Igreja Católica não são os ricos, mas os pobres. E por isso volta à fonte, às origens. Nós felicitamos a América Latina por nos ter dado um papa revoltado. Também é preciso felicitar o papa por enfrentar o mundo protestante. O Ocidente estava sucumbindo à hegemonia protestante, o catolicismo estava em queda. Além de restituir a autonomia da Igreja Católica, o papa reinterpreta a Teologia da Libertação – de maneira mais moderna e globalizada, e sobretudo menos irritante (risos).

EPOCA - A migração de massas de refugiados parece colocar os governos na Europa diante de um dilema sem solução.
Debray -
É nosso problema mais grave e será o maior fenômeno do século 21. Não migram porque a grama do vizinho é mais verde. Não há grama nesses países do Sul. Essas populações estão a seco. A esquerda está diante de uma grande contradição. As camadas mais pobres são as mais alérgicas à entrada de imigrantes porque arruinam suas chances de emprego e mudam seu modo de vida. Os ricos não se importam tanto. Os imigrantes não se instalarão na Place de la Concorde (risos). Eles irão para as banlieues (os subúrbios carentes, a periferia). É um paradoxo louco: o eleitorado da esquerda tradicional é hoje formado por privilegiados e o eleitorado da extrema-direita é formado pelo povo. O eleitor comunista do passado vota em Marine Le Pen (do partido Frente Nacional). O mundo sem fronteiras é um pesadelo, não um sonho.

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