Não pretendo conseguir escapar a essas duas armadilhas que confortam o "ego" do filósofo, um ego já bastante fragilizado, diga-se de passagem. Tento contorná-las por uma pergunta mais modesta: por que os laços antigos entre atividade filosófica e consolação se tornaram tão frágeis, talvez até tenham se rompido, na filosofia contemporânea? Quais são as razões históricas desse rasgo?
Algumas pistas para uma resposta. A primeira pista orienta a filosofia de Adorno e, de maneira mais ampla, de boa parte da reflexão (filosófica, política, estética) depois de Auschwitz. Se o exercício da filosofia, a askesis, podia me consolar da minha própria morte, me ajudar a enfrentar a finitude, talvez mesmo me ajudar a fazer o trabalho de luto pela morte de um ser próximo, essa bela meditação se revela impotente diante da organização "racional" do massacre, diante da "morte em massa" (Jorge Semprún). Não se trata mais aqui de concluir uma paz (mesmo provisória) com a morte singular, mas de se defrontar com algo muito pior: com o mal absoluto, com uma negatividade à qual não se pode opor nenhuma positividade. Surge o escândalo da impossibilidade de qualquer síntese. Essa interdição regula os testemunhos impossíveis de um Primo Levi ou de um Robert Antelme: deve-se, sim, contar o horror ( Grauen), mas ele ultrapassa a faculdade de representação humana; deve-se, portanto, narrar sem apelar a nenhum consolo, sem tentar encontrar uma derradeira significação porque qualquer construção de sentido (e de justificativa) equivaleria a uma profanação dos mortos.
Outra pista possível: essa atitude crítica, mas humilde, é também fruto de uma transformação histórica do discurso e do saber filosóficos. A atividade filosófica não é mais reservada a alguns poucos, aristocratas ociosos e sábios, que encarnam o paradigma de uma humanidade plena - como ainda era no caso da Grécia Antiga, por exemplo. Ela deveria se dirigir, senão à grande massa, pelo menos a todos os homens de razão, numa universalidade ideal. Essa "democratização", efeito da irradiação do cristianismo e, igualmente, dos movimentos políticos emancipatórios e revolucionários, caracteriza a assim chamada modernidade. Como o faz também o "desencantamento do mundo" (Weber), a separação entre as esferas da religião e da ciência.
De um lado, o discurso filosófico se separa do da fé e da religião, do outro ele se endereça, pelo menos potencialmente, a todos os homens - mas sem poder lhes dar um "sentido" para sua vida. Essas duas características da Aufklärung esclarecem por que o filósofo contemporâneo não pode mais gozar de certa indiferença autárquica, contentando-se com a própria sorte e cuidando da própria virtude, sem se preocupar com a vida e a infelicidade de muitos outros (por exemplo, os milhões de vítimas da Shoah). Esclarecem também, quase ironicamente, por que tampouco pode ele se dar por satisfeito com uma consolação que apelaria a uma entidade transcendente: se fizesse isso, o filósofo abandonaria um discurso fundado na ordem da razão - mesmo que essa razão seja denunciada nas suas deformações e insuficiências como em Adorno e Horkheimer - e passaria a afirmações de ordem da fé, recaindo na confusão entre discurso filosófico e discurso religioso.
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