Quando a música “Faroeste Caboclo” foi lançada, cerca de 26 anos atrás, o fim da ditadura militar era recente e o medo da censura ainda pairava no ar. Com seus nove minutos de duração, recheados de palavrões e críticas sociais, a nova faixa da Legião Urbana atrapalhou a vida de muitos profissionais das rádios FM, que faziam a programação de forma manual.
A principal dificuldade estava em tirar os palavrões e críticas ao governo, além de ter que lidar com uma das faixas mais longas da música brasileira. Na época, as programações tocavam músicas de no máximo três minutos.
Nas grandes FMs, as fitas chegavam com os palavrões e os trechos mais polêmicos embolados, geralmente acelerados ou picotados pela gravadora, o que fez o público confundir muito a letra no começo. Como a banda não regravou uma versão mais leve da faixa, os locutores das rádios mais distantes faziam truques para tocar os 161 versos, criados por Renato Russo em 1979, quando era um trovador solitário. A faixa foi lançada oficialmente em "Que País É Esse?", em 1987, e é relembrada em filme homônimo que estreia esta quinta (30).
O locutor Lampadinha, que trabalhava em uma rádio do interior de São Paulo na década de 80, diz que recortar a faixa era "como arrancar a página de um livro". “Como no interior essas fitas não chegavam, alguns locutores faziam a edição no próprio vinil. Nos casos mais bruscos, o cara dava uma pausa na música nos palavrões, como no trecho 'olha pra cá filha da puta, sem vergonha'. Falar de coronel também não podia. Por isso, rolavam vários silêncios no meio da música”, explica.
Ouça abaixo versão editada para às rádios em 88
A falta de tecnologia também prejudicava e tornava o trabalho mais maçante. “Como a gente precisava trocar de faixa e de vinheta música por música, não dava pra sair e deixar rolando, como a programação é feita hoje, de forma mais automática. Naquela época, ‘Faroeste Caboclo’ era a hora que os caras iam fumar um cigarro, dar uma pausa”, completa. “Além de ‘Faroeste’, algumas músicas, como “Black Number One”, do Type O’Negative, e até “Eduardo e Mônica” eram usadas para a pausa pro banheiro”, relembra Junior Camargo, da UOL 89, entre risos.
Apesar de todos os empecilhos, o sucesso imediato da faixa não permitiu que ela ficasse fora das paradas de sucesso. "Foi uma quebra de barreira, rolou uma relutância para tocarem. A gente dominou por causa do público. Por causa deles, a gravadora e as rádios tinham que correr atrás, quem não tocava ficava de fora. Também tinha muito problema de jabá, 'Faroeste' tirava espaço de umas três músicas. Mas era um processo de democratização, e a gente estava mais preocupado em tocar a música do que com essas coisas", comenta Marcelo Bonfá, baterista da Legião.
Mesmo que a banda não tenha recebido notificações de censura, as rádios ainda ficavam receosas em precisar novamente lidar com censores. “Ninguém vinha mais na porta cobrar nessa época, mas a gente ouvia muitas histórias de pessoas que ainda sumiam por causa dessas coisas”, diz Lampadinha.
Música representa o início do movimento punk de Brasília
Philippe Seabra, da Plebe Rude, e amigo de Renato na década de 80, relembra a primeira vez que ouviu a música, ainda em 1979, e diz que ela não mudou nada depois.
"Ele e o André Pretorius gravaram uma fita cassete para mandar para a então namorada do André, que estava fora do Brasil. Nessa fita, eles falam de sacanagem, tocam punks da época, e o Renato gravou 'Faroeste'. O incrível é que a música não mudou uma vírgula depois, quando foi gravada no disco da Legião, anos mais tarde."
Existem diversas lendas em torno da faixa. Em uma delas, um taxista migrante nordestino teria contado para Renato a sua vida. Em outra, Fê Lemos, do Capital Inicial, teria roubado uma namoradinha de Renato e se tornado o Jeremias da história. Em entrevistas, Russo disse que se inspirou em Raul Seixas e Bob Dylan. Mas para Seabra, a música simboliza apenas o que o grupo de amigos vivia.
"Ainda estávamos no governo Figueiredo e a repressão pairava no ar. Crescer em Brasilia foi muito estranho, e sempre falava para o Renato que se não fosse Brasilia, nada disso teria acontecido nas nossas vidas como aconteceu. É claro que se alguém tiver uma veia artística, ela vai se manifestar de um jeito ou outro. Mas o fato de termos crescido em Brasilia nos apresentou desse jeito contundente", explica.
Bonfá concorda que a faixa tenha sido um retrato da vida em Brasília e conta que o processo de composição foi natural. "Quando o Renato mostrou para mim, achei o máximo, tinha muito a ver com a nossa história", comenta o baterista. "Tem um ponto de vista único. As pessoas já viram esse filme, quando o Renato pintou um roteiro para a gente analisar. A gente fez essa versão para o disco, com guitarra, com bateria. Foi uma coisa natural que foi pintando, não foi difícil. Na época, a gente estava muito sintonizado."
O radialista Luiz Antonio Mello conta que Renato era radiofônico, e quando a música foi apresentada ao público, Russo ligava de madrugada nas rádios para conversar por horas, o que também resultou numa música igualmente radiofônica.
“Eu acompanhei bem a trajetória dessa música, ouvi a primeira vez em demo tape. Tive a oportunidade de falar pro Renato que tinha ficado sensacional. Nos bastidores de um show no Circo Voador, ele veio me perguntar se a música estava muito baião, e disse que não, que era mais pra um folk”, diz Mello. “Na época, percebi que ele não tinha a menor ideia do futuro de ‘Faroeste Caboclo’, não só da música, como para ele, como compositor, e pro rock do Brasil.”
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