Se existe um Santo Graal no colecionismo beatlemaníaco, ele é conhecido por uma dupla de substantivo + adjetivo, uma das maiores e mais ousadas obras elaboradas pelo grupo: "White Album" —ou o álbum "Beatles" (1968), seu título oficial.
E há uma razão específica para isso, que torna edições únicas. As primeiras prensagens (e mais algumas) do disco trazem, no canto inferior direito da capa, uma combinação numérica diferente, impressa em tinta ou relevo. Já reparou? Mas não se trata de código de catálogo.
Vemos ali um número de série, ideia deste sujeito acima, o designer Richard Hamilton (1922-2011)
Sim, todos os primeiros "Álbuns Brancos" foram numerados um a um, como se fossem edições limitadas e/ou de artistas independentes.
Atiçado por Paul McCartney e sabendo que dificilmente a EMI rejeitaria qualquer proposta do grupo mais popular do mundo, o artista quis brincar com a ironia de se numerar álbuns cujas tiragens passariam de milhões de cópias, algo virtualmente impossível. Mas o desafio foi aceito.
As instruções enviadas à gráfica britânica Garrod and Lofthouse para o primeiro álbum duplo dos Beatles eram explícitas
Os números precisavam ter sete dígitos, precedidos pela abreviação "Nº" acrescida de um ponto, que seria posicionada o mais próximo possível da numeração respeitando a distância de um espaço.
O próprio Hamilton criou um dispositivo para padronizar o conceito nas capas. Não bastasse a sofisticação da embalagem e seu encarte com pôster e imagens dos integrantes em papéis fotográficos, o projeto causou atrasos na fábrica e esteve perto de ter seu lançamento adiado.
Mas, para os fãs, essa numeração nunca foi de fácil entendimento
A coisa começou a sair do controle quando cada país decidiu obedecer ao próprio sistema de números, dígitos e símbolos, e por vezes eles não conversavam entre si.
Na Inglaterra, berço da primeira prensagem, números de 1 a 299.999 foram destinados a edições mono. As do sistema stereo ficaram entre 300.000 e 599.000.
A partir de 1971, com uma nova tiragem —a abertura da capa passou a ser lateral, não mais pelo topo—, a numeração regrediu para 100.000 e, a partir de 150.000, teve fonte alterada e dígitos reduzidos a seis. Isso durou até 1973 com o número 300.000.
Nos EUA, com três empresas diferentes produzindo a capa, a situação ficou ainda mais complexa
A fábrica Bert Co Litho, de Los Angeles, produziu de 1 a 590.000, substituindo o prefixo "Nº" por um "A". Já as edições de 590.000 a 1.350.000 saíram da Gugler Litho, que incluiu um largo ponto escuro no lugar do "A".
As capas de 1.350.000 e 2.000.000 vieram de Nova York da gráfica Queens Litho, e a produção de números acabou encerrada por lá depois de ultrapassar a barreira de 3.000.000. Diversas variações de padrão aconteceram nesse intervalo.
A pergunta de 1 milhão de discos: em meio à numeralha, quantas edições seriadas existem no mundo?
Milhões. Mas a real quantidade é incerta. Foram tantas tiragens e sistemas diferentes que os números se perderam. Para se ter uma ideia, edições em CD e recentes prensagens em vinil, como a mono lançada na Europa e EUA em 2014, voltaram a sair com a série, deixando tudo ainda mais confuso.
E no Brasil?
Por aqui, somente duas edições são conhecidas pela numeração: a original em mono, famosa pelo erro de prensagem que alterou a velocidade de algumas faixas, e a primeira em stereo, ambas editadas no início de 1969.
Nosso se aproxima britânico. Traz inscrição em relevo e apenas cinco dígitos, mas sem espaço para inclusão de zeros no início da numeração. Mais de 350 mil discos teriam sido produzidos assim, e por isso são extremamente colecionáveis, mesmo quando o estado de conservação não é aquele.
Quanto custa uma original?
Edições numeradas valem mais que as normais. E o ouro está nas numerações mais baixas produzidas no Reino Unido.
O disco de número 0000005, o mais baixo a ir ao mercado, foi vendido no site eBay em 2008 por mais de 19 mil libras. Valor em conta. Em 2015, Ringo Starr conseguiu vender em um concorrido leilão sua pedra angular, o número 0000001 britânico, por recordes 790 mil libras.
Mas o fato é que tudo envolvendo as primeiras numerações é cercado de imprecisões e mitologia
O que se sabe, por alto, é que cópias originais inglesas são de propriedade dos integrantes da banda e/ou seus hedeiros. Já foi divulgado, por exemplo, que Paul McCartney detém o número 3.
Há ainda quem jure que, nos EUA, foram feitas 12 cópias com o número 1 e que os números de 2 a 25 terminaram dados a amigos dos Beatles e funcionários da Capitol Records.
Cópias duplicadas dos primeiros números já foram fotografadas e divulgadas na internet, o que rotineiramente levanta suspeitas sobre adulterações.
Na dúvida, muitos colecionadores correm para adquirir o maior número possível de cópias. Foi o que fez o artista americano Rutherford Chang, que em 2013 abriu uma galeria só com exemplares de seus "White Albums", um acervo que hoje passa de 3.000 discos.
É uma ideia incrível. Mas, no fim das contas, o que importa mesmo é a música que o disco nos fornece, e ela é soberba.
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