O antropólogo Claude Lévi-Strauss estudou o "pensamento selvagem" para mostrar que os chamados selvagens não são atrasados nem primitivos, mas operam com o pensamento mítico.
O mito e o rito, escreve Lévi-Strauss, não são lendas nem fabulações, mas uma organização da realidade a partir da experiência sensível enquanto tal. Para explicar a composição de um mito, Lévi-Strauss se refere a uma atividade que existe em nossa sociedade e que, em francês, se chama bricolage.
Que faz um bricoleur, ou seja, quem pratica bricolage? Produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros objetos. Vai reunindo, sem um plano muito rígido, tudo o que encontra e que serve para o objeto que está compondo. O pensamento mítico faz exatamente a mesma coisa, isto é, vai reunindo as experiências, as narrativas, os relatos, até compor um mito geral. Com esses materiais heterogêneos produz a explicação sobre a origem e a forma das coisas, suas funções e suas finalidades, os poderes divinos sobre a Natureza e sobre os humanos. O mito possui, assim, três características principais:
1. função explicativa: o presente é explicado por alguma ação passada cujos efeitos permaneceram no tempo. Por exemplo, uma constelação existe porque, no passado, crianças fugitivas e famintas morreram na floresta e foram levadas ao céu por uma deusa que as transformou em estrelas; as chuvas existem porque, nos tempos passados, uma deusa apaixonou-se por um humano e, não podendo unir-se a ele diretamente, uniu-se pela tristeza, fazendo suas lágrimas caírem sobre o mundo, etc.;
2. função organizativa: o mito organiza as relações sociais (de parentesco, de alianças, de trocas, de sexo, de idade, de poder, etc.) de modo a legitimar e garantir a permanência de um sistema complexo de proibições e permissões. Por exemplo, um mito como o de Édipo(2) existe (com narrativas diferentes) em quase todas as sociedades selvagens e tem a função de garantir a proibição do incesto, sem a qual o sistema sociopolítico, baseado nas leis de parentesco e de alianças, não pode ser mantido;
3. função compensatória: o mito narra uma situação passada, que é a negação do presente e que serve tanto para compensar os humanos de alguma perda como para garantir-lhes que um erro passado foi corrigido no presente, de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada da Natureza e da vida comunitária.
(2) Quando Édipo nasce, um vidente, Tirésias, prevê que o menino matará o pai e se casará com a mãe. Apavorado, o rei Laio - o pai - manda matar Édipo. O escravo que deveria matar o menino sente piedade e o lança num precipício sem verificar se está ou não morto; e entrega ao rei o coração de uma corça, como se fosse o de Édipo. A criança não morre e é recolhida por um pastor. Este, por sua vez, a entrega a um outro rei, que, idoso, lamentava não ter filhos. Ao crescer, Édipo suspeita que não é filho de seus pais adotivos e sai à procura dos pais verdadeiros. No caminho, vê uma batalha entre um grupo numeroso e um pequeno; coloca-se ao lado deste último e mata o chefe do outro grupo - seu pai, Laio. Chegando à sua cidade natal, fica sabendo que um monstro estava devorando as virgens e só interromperá a matança se alguém decifrar um enigma que propõe. Édipo decifra o enigma. Como recompensa, recebe a rainha em casamento. Casa-se com Jocasta, sem saber que se tratava de sua verdadeira mãe, e com ela tem filhos. A profecia se cumpre. A cidade será castigada com a peste e, ao tentar combatê-la, pedindo aos deuses que lhe digam o que a causou, Édipo fica sabendo, por Tirésias, que matou o pai e casou-se com a mãe. Fura os olhos e exila-se, enquanto Jocasta se suicida.
Por exemplo, entre os mitos gregos, encontra-se o da origem do fogo, que Prometeu roubou do Olimpo para entregar aos mortais e permitir-lhes o desenvolvimento das técnicas. Numa das versões desse mito, narra-se que Prometeu disse aos homens que se protegessem da cólera de Zeus realizando o sacrifício de um boi, mas que se mostrassem mais astutos do que esse deus, comendo as carnes e enviando-lhe as tripas e gorduras. Zeus descobriu a artimanha e os homens seriam punidos com a perda do fogo se Prometeu não lhes ensinasse uma nova artimanha: colocar perfumes e incenso nas partes dedicadas ao deus.
Com esse mito, narra-se o modo como os humanos se apropriaram de algo divino (o fogo) e criaram um ritual (o sacrifício de um animal com perfumes e incenso) para conservar o que haviam roubado dos deuses.
Como opera o pensamento mítico?
Antes de tudo, pela reunião de heterogêneos. O mito reúne, junta, relaciona e faz elementos diferentes e heterogêneos agirem uns sobre os outros. Por exemplo, corpos de crianças são estrelas, lágrimas de uma deusa são chuva, o dia é o carro do deus Apolo, a noite é o manto de uma deusa, o tempo é um deus (na mitologia grega, Cronos), etc.
Em segundo lugar, o mito organiza a realidade, dando às coisas, aos fatos, às instituições um sentido analógico e metafórico, isto é, uma coisa vale por outra, substitui outra, representa outra. No mito de Édipo, por exemplo, os pés e o modo de andar têm um significado analógico, metafórico e simbólico muito preciso. Labdáco, avô de Édipo, quer dizer coxo; Laio, pai de Édipo, quer dizer pé torto; Édipo quer dizer pé inchado.
Essa referência aos pés e ao modo de andar é uma referência da relação dos humanos com o solo e, portanto, com a terra, e simboliza ou metaforiza uma questão muito grave: os humanos nasceram da terra ou da união de um homem e de uma mulher? Se da terra, deveriam ser imortais. No entanto, morrem. Para exprimir a angústia de serem mortais e que os humanos, portanto, nasceram de um homem e de uma mulher e não da terra, o mito simboliza a mortalidade através da dificuldade para se relacionar com a terra, isto é, para andar (coxo, torto, inchado). Para exprimir a dificuldade de aceitar uma origem humana mortal, o mito simboliza a fragilidade das leis humanas fazendo Laio mandar matar seu filho Édipo, Édipo assassinar seu pai Laio e casar-se com sua mãe, Jocasta.
Em terceiro lugar, o mito estabelece relações entre os seres naturais e humanos, seja fazendo humanos nascerem, por exemplo, de animais, seja fazendo os astros decidirem a sorte e o destino dos humanos (como na astrologia), seja fazendo cores, metais e pedras definirem a natureza de um humano (como a magia, por exemplo).
Coisas e humanos se relacionam por participação, simpatia, antipatia, por formas secretas de ação à distância. O mundo é um tecido de laços e vínculos secretos que precisam ser decifrados e sobre os quais os homens podem adquirir algum poder por meio da imitação (vestir peles de animais, fabricar talismãs, ficar em certas posições, plantar fazendo certos gestos, pronunciar determinadas palavras). O mito decifra o secreto. O rito imita o poder.
Analogias e metáforas formam símbolos, isto é, imagens carregadas e saturadas de sentidos múltiplos e simultâneos, servindo para explicar coisas diferentes ou para substituir uma coisa por outra. Assim, por exemplo, o fogo pode simbolizar um deus, uma paixão, como o amor e a cólera (porque são ardentes), o conhecimento (porque este é uma iluminação), a purificação de alguma coisa (como na alquimia), o poder sobre a Natureza (porque permite o desenvolvimento das técnicas), a diferença entre os animais e os homens (porque estes cozem os alimentos enquanto aqueles os comem crus), etc.
A peculiaridade do símbolo mítico está no fato de ele encarnar aquilo que ele simboliza. Ou seja, o fogo não representa alguma coisa, mas é a própria coisa simbolizada: é deus, é amor, é guerra, é conhecimento, é pureza, é fabricação e purificação, é o humano.
O fato de o símbolo mítico não representar, mas encarnar aquilo que é significado por ele, leva a dizer (como faz Lévi-Strauss) que o pensamento mítico é um pensamento sensível e concreto, um pensamento onde imagens são coisas e onde coisas são idéias, onde as palavras dão existência ou morte às coisas (como vimos ao estudar a palavra mágica e a palavra-tabu).
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