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A incidência da sífilis no Brasil

Conforme dizia Oscar da Silva Araújo (1928, p. 11), a grande incidência da sífilis no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, vinha sendo apontada por fontes mais seguras desde o século XVIII. Além de citar cronistas que falavam igualmente da "dissolução dos costumes" e da incidência do mal venéreo, Araújo afirmava que, em 1798, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro teria organizado um inquérito para apurar quais as doenças endêmicas e epidêmicas mais comuns na cidade. Três médicos ali radicados teriam respondido a tal inquérito, sendo que dois deles assinalavam a freqüência das doenças venéreas. Através dos trechos citados por Araújo (op. cit., p. 12), pode-se perceber com clareza como a constatação dessa freqüência articulava-se diretamente às avaliações sobre a imoralidade reinante. Segundo dizia, por exemplo, um dos médicos consultados:

"As causas morais e dietéticas influem assaz para as moléstias do país. Os antigos afirmam que as tísicas, hoje tão freqüentes no Rio de Janeiro, raríssimas vezes se observavam, assim como as doenças da pele. Ora, se nós cavarmos mais fundo, acharemos que quase todas são complicadas com o vício venéreo. A opulência desta respeitável cidade faz introduzir o luxo e a depravação dos costumes, de maneira que dentro da cidade não faltam casas públicas, onde a mocidade vai estragar a sua saúde e corromper os costumes de uma boa educação, contraindo novas enfermidades e dando causas para outras tantas."

O outro médico a se pronunciar sobre o assunto lançava mão de um raciocínio que, sob feições diferentes, perduraria até meados do século XX. Dizia ser na escravidão que se devia procurar a origem da devassidão reinante, pois a prostituição seria a "conseqüência indefectível do ócio e da riqueza adquirida sem trabalho e fomentada pelo exemplo familiar dos escravos, que quase não conhecem outra lei que os estímulos da natureza" (idem, ibidem).
Já em meados do século XIX, em seu tratado sobre o clima e as moléstias do Brasil, Sigaud afirmava que "a sífilis existiu em todas as épocas no país e é hoje doença predominante" (idem, ibidem, p. 17). À mesma época, a doença começava também a ser responsabilizada pela "velhice prematura", que, segundo alguns, caracterizava a mocidade brasileira (Azambuja, 1847, p. 3). Testemunho da crescente preocupação que assumia ao longo da década de 1860, a sífilis começava a figurar em diversos relatórios anuais de inspetores de saúde provinciais como a moléstia que, ao lado da tuberculose, das alterações intestinais e das febres intermitentes, "mais estragos fazem à população menos abastada" do Império – assim dizia então um inspetor de saúde da Bahia (idem). Começava-se também a revelar numericamente o peso de sua contribuição no total de internamentos em diferentes hospitais. Em artigo publicado na Gazeta Médica da Bahia, dizia-se que, para "se conhecer a extensão que desgraçadamente vai ganhando o elemento sifilítico entre nós", bastaria olhar as estatísticas dos hospitais, pois, no período de 1861 a 1866, mais de um terço dos doentes internados nas enfermarias de cirurgia da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro seria de portadores de doenças venéreas (Anônimo, 1871, p. 26). Segundo o mesmo artigo, a partir de tais dados "colige-se evidentemente a expansão que vai tomando a propagação das moléstias venéreas entre nós, e quanto, continuando a expandir-se em proporção equivalente por falta de aplicação de medidas tendentes a neutralizar suas funestas conseqüências, atingirá em breve grandiosas proporções".
Sob o impacto da guerra com o Paraguai (1865-70), alarme semelhante se fazia ouvir nos meios militares. A partir da década de 1870, a grande incidência da sífilis e das outras doenças venéreas nas tropas começava também a ser enfatizada.1 Em 1873, João José de Oliveira Junqueira, ministro da Guerra do império, destacava as doenças venéreas como a afecção mais comum entre os soldados, seguida numericamente pelas doenças do "aparelho respiratório e de digestão" (Araújo, 1928, p. 24). Para o período 1872-73, o médico José de Góis Siqueira Filho calculava que um terço das tropas aquarteladas na Corte estaria contaminado (idem). Dez anos depois, em 1883, através de uma memória apresentada à Academia Imperial de Medicina, o médico militar José de Oliveira (idem, p. 23) seria ainda mais contundente:

"Se a tuberculose representa no Exército brasileiro a maior cifra mortuária, se os embaraços gástricos não lhe cedem o passo na questão numérica, as moléstias venéreas e sifilíticas avantajam-se às duas. Pode-se, sem medo de errar, asseverar que não há um só soldado nosso que não tenha uma ou mais entradas nos hospitais por acidentes venéreos. A cirurgia hospitalar do Exército é constituída em tempo de paz pelo sem-número de blenorragias, cancros venéreos e bubões. Os acidentes secundários e terciários de sífilis, exostoses e reumatismo contam-se por centenas."

A partir da segunda metade do século XIX, os médicos não denunciavam apenas a grave situação do Rio de Janeiro. O professor Claudemiro Caldas (1866, p. 89) escrevia na Gazeta Médica da Bahia que "no quadro nosológico da clínica cirúrgica da Faculdade da Bahia avulta, pelo maior número de vítimas, a sífilis". E, em finais do século, o conhecido psiquiatra Juliano Moreira (1899, p. 113) ressaltava já haver dito por diversas vezes que "a sífilis na Bahia é de uma freqüência notável", acrescentando que, no Brasil, "de dia em dia amplia o terrível mal o seu domínio". O mal estaria também firmemente instalado na cidade de São Paulo, onde, segundo os estranhos cálculos apresentados por um médico paulista no início do século XX (Sousa, 1909, p. 7), haveria uma média de trinta mil contaminações sifilíticas por ano, o que significava dizer que, a cada ano, 10% de seus habitantes se comtaminavam.2
Assim, frente a estatísticas bastante precárias, quase inexistentes, os médicos da passagem do século ancoravam suas denúncias sobretudo em sua experiência clínica e nos dados fornecidos pela população hospitalizada. É verdade que, ao avaliarem a extensão da doença no Brasil, alguns deles também se apoiavam no senso comum, para o qual, como revelava explicitamente Juliano Moreira (1899, p. 113), o Brasil parecia ser a moradia ideal da sífilis. Segundo o ilustre médico baiano, era comum se dizer "em família", frente a qualquer afecção: "isto é gálico". Tanto o vulgo quanto os médicos tinham a tendência, segundo dizia, a exagerar o "círculo do qualificativo", "batizando" de sífilis " a mais banal das dermatoses parasitárias, o mais trivial dos acnes, a mais genuína blefarite, a mais simples das conjuntivites". Segundo relatava, era "comum" se ouvir dizer: "Pois há brasileiro que não tenha a sua tara sifilítica?" Para o referido autor, "descontando o exagero", bem se via aí "a fórmula indicadora da disseminação do mal".
Diferentemente do que acontecia em relação à hipótese americana do mal e a de sua malignidade nos trópicos, e apesar do papel fundamental que tiveram na diferenciação entre a sífilis e certas doenças tropicais presentes no país, os sifilógrafos brasileiros da primeira metade do século XX iriam, entretanto, perpetuar a idéia da disseminação da sífilis ser particularmente assustadora no país, cujo estatuto já era então o de "verdade tradicional". Como até a década de 1940 a sífilis não era doença de notificação compulsória, nem havia uma padronização diagnóstica unanimemente aceita, toda espécie de especulação estatística foi possível. E sempre no sentido de sustentar tal "verdade". Além disso, o próprio caráter proteiforme da doença (suas múltiplas manifestações sintomáticas) propiciava enormes divergências quando se tratava de saber quais seriam os critérios ideais para definir uma determinada manifestação patológica como sífilis. Alguns utilizavam um critério clínico e incluíam na rubrica sífilis uma enorme diversidade de doenças e de anomalias congênitas ou hereditárias. Outros pautavam-se apenas nos resultados dos exames de sangue que, além de não serem confiáveis pelos critérios atuais, ainda permitiam interpretações, pois, ao menos quando se tratava do tradicional teste de Wassermann, apresentavam-se em um contínuo do "fortemente positivo" ao "fortemente negativo".3
Enfim, não se trata aqui, obviamente, de tentar chegar a nenhuma verdade sobre a extensão da sífilis no Brasil. Apesar de toda a sua incongruência, os números sempre desenhavam os limites (in)variáveis da percepção generalizada de que o Brasil era a morada ideal da sífilis. Sempre presente no discurso sifilográfico, a equação "brasileiro = sifilítico" justificava até mesmo que as estatísticas fossem em certos momentos consideradas dispensáveis ou desnecessárias, quando se tratava de determinr a real incidência da doença no Brasil. Assim, por exemplo, dizia um médico no início do século XX (Sousa, 1909, p. 6) que "sobre a sífilis e as moléstias venéreas, quase não há necessidade de estatísticas no Brasil, podendo-se contar o número de vítimas, aproximadamente, pelo número de brasileiros. É uma exageração? De modo algum."
No âmbito do I Congresso Sul-Americano de Dermatologia e Sifilografia, realizado no Rio de Janeiro em 1918, o clínico Oscar Clark (1921, p. 188) abria sua comunicação afirmando que "a freqüência da lues no Brasil é do domínio histórico e até viajantes estrangeiros que percorrem o nosso país levam a impressão de que todo o nacional seja sifilítico".
Foi essa situação supostamente terrível que embasou, até a década de 1920,o clamor dos médicos por medidas de combate à doença e suas críticas ao imobilismo dos diferentes governos republicanos. Com o início da primeira campanha nacional de combate à sífilis, depois de 1921, atenua-se significativamente o alarme estatístico. Entre as medidas então adotadas contra a sífilis não figurava, entretanto, sua notificação obrigatória, permitindo que médicos e sifilógrafos continuassem operando com dados bastante imprecisos. A estimativa que se estabeleceu durante a década de 1920 apontava para um índice de contaminação da população brasileira em torno de um quinto. Considerado extremamente alto, ele prevaleceria inalterado até o início da década de 1940. Já em 1921, na primeira palestra educativa promovida pela então recém-criada Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, o eugenista Renato Kehl iria utilizá-lo. Depois de dizer que, não sendo doença de notificação obrigatória, seria impossível qualquer estatística segura, ele estimava, apoiado na autoridade dos sifilógrafos, especialmente em Eduardo Rabelo, existirem no Brasil seis milhões de sifilíticos, ou seja, 20% de sua população. Já o número de gonorréicos seria, "sem exagero no cálculo", um pouco menor, quatro milhões e oitocentos mil, perfazendo 16% da população. Em contraste, segundo o eugenista, nos "países civilizados", essas taxas seriam bem menores e a sífilis atingiria apenas 10% da população.4 A isso, acrescentava (Kehl, 1921, pp. 38-9): "Podereis vós, que nos ouvis, suspeitar que estamos enegrecendo o quadro mórbido do Brasil. Mas afirmamos escudados na opinião de cientistas de valor e probidade indiscutíveis, que infelizmente essa é a verdade."
Em 1934,com a suspensão da campanha antivenérea iniciada na década anterior, o alarme estatístico voltaria a crescer progressivamente e o Brasil continuaria a manter seu estatuto de país particularmente 'sifilizado'. É o que evidenciam, por exemplo, as afirmações do médico da armada portuguesa Emílio Faro (1934, p. 184), em artigo publicado no Jornal de Sífilis e Urologia. Depois de dizer que uma grande parte da população portuguesa estava contaminada e que os europeus acreditam que quase todos os portugueses eram sifilíticos, complementava: "Nós portugueses fomos muito atingidos. Antigamente, pelas grandes viagens que fizemos, tanto para o Oriente, quanto para a América do Sul; nos últimos tempos, pela nossa grande emigração para o Brasil. Ali, a sífilis é tão freqüente que, entre nós, pode dizer-se que quem viveu algum tempo nesse país é sifilítico com certeza."
Em 1940, no âmbito da I Conferência Nacional de Defesa contra a Sífilis, promovida sob o governo ditatorial de Getúlio Vargas, os especialistas fazem um novo esforço de avaliação numérica da extensão da doença, concluindo que o mal permanecia bem instalado no país e que, resistindo aos esforços para debelá-lo, podia continuar a ser considerado um dos fatores decisivos para a degeneração da raça brasileira.


1 Em parte, talvez, devido à intensidade da disseminação do mal nas tropas durante a guerra do Paraguai ou por sua maior valorização por parte dos médicos militares.

2 O médico chegava a esta aterradora constatação a partir do número estimado de prostitutas residentes na cidade e do número de relações sexuais potencialmente contaminadoras que elas manteriam por ano.

3 Em sua recente história sobre o teste de Wassermann, Löwy (1993, pp. 19-20) afirma que "um teste positivo era considerado – principalmente no período inicial de entusiasmo pelo novo método – como prova infalível da infecção treponêmica e não como um elemento que contribuiria para o diagnóstico". Depois da segunda guerra mundial, ao surgirem testes que possibilitavam a detecção do próprio treponema na corrente sanguínea, verificou-se que o teste de Wassermann produzia resultados positivos também em face a inúmeras outras doenças e que, para certas populações, o número de falsos positivos podia ser assombroso. Desse modo, conclui a mesma autora: "milhares de pessoas que hoje seriam consideradas falsos positivos foram diagnosticadas como portadoras da sífilis. Sofreram não apenas as conseqüências sociais e psicológicas de tal diagnóstico – medo, culpa, vergonha e condenação social –, mas, também, os efeitos bastante tóxicos do tratamento anti-sifilítico que era, então, preconizado.

4 Para justificar tal afirmação quanto aos "civilizados", Kehl oferecia contraditoriamente estimativas bastante superiores. Citando Fournier, dizia que, na França, haveria de 13% a 16% de adultos atingidos pela sífilis. Para a Alemanha, Blaschko (1906) teria calculado 18% na "classe burguesa". E, para os Estados Unidos, Day e McNitt teriam estimado uma incidência de 6% a 13% nas "classes burguesas", 20% entre os "pobres brancos" e 30% entre os "negros pobres" (Kehl, 1921, p. 33). Quanto ao número de casos de gonorréia, dizia Kehl que, nos Estados Unidos e Alemanha, estimava-se que 80% dos homens adultos, antes de completarem trinta anos, já a teriam adquirido, e que de 70% a 95% das prostitutas tinham estado ou estavam doentes. No Brasil, acrescentava, na falta de uma propaganda contra a prostituição e da divulgação dos meios profiláticos, os números da gonorréia deveriam alcançar de 70% a 90% da população adulta masculina e 100% entre as prostitutas. No Rio, segundo diz, 90% dos homens adultos teriam ou já teriam tido gonorréia (op. cit., pp. 46-7).

Fragmento de "A geopolítica simbólica da sífilis: um ensaio de antropologia histórica." In: História, Ciências, Saúde: Manguinhos. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, vol. III, nº 3, nov.1996-fev.1997, pp.398-402.
Sérgio Carrara é doutor em antropologia, pesquisador e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Artigo publicado na revista Curare: Journal for Ethnomedicine, Special volume: The Medical Anthropologies in Brazil, n°12, 1997, Berlim.

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