Uma das reações ao assassinato de Isabella Nardoni a precipitação da imprensa, de certos investigadores e até de membros do Judiciário em acusar o pai da menina incita a refletir. Por que tanta pressa para encontrar um culpado, infringindo o elementar direito desse homem à presunção de inocência e eventualmente a um julgamento justo?
E isso apesar do precedente da Escola Base, no qual os adultos suspeitos de abuso sexual contra um menino se mostraram inocentes.
É natural que tragédias suscitem comoção pública: alguns leitores talvez se lembrem de incêndios como os do Andraus e do Joelma, e, mais recentemente, o tsunami, o furacão Katrina, o acidente da Gol também despertaram revolta e solidariedade.
Mas nem toda tragédia é um crime: casos como o de Isabella, como o de mães que tentam matar seus bebês indesejados, provocam uma repulsa mais profunda porque põem em jogo a crença na naturalidade dos sentimentos familiares.
Se hoje a violência contra crianças nos parece particularmente hedionda, convém lembrar que essa é uma atitude recente. Durante séculos, ela foi aceita como legítima, quer no interesse da própria criança (castigos físicos como parte da educação do caráter, por exemplo), quer no dos pais (abandono de filhos ilegítimos na "roda dos enjeitados") ou da sociedade (infanticídio eugênico em Esparta, assim como em certas tribos indígenas e africanas).
Direito de vida e morte
O princípio que justificava tais práticas era bem expresso na Lei das Doze Tábuas: "O pai tem direito de vida e morte sobre seus filhos, assim como de os vender" (tábua 5, 2).
A mesma regra vale em inúmeras sociedades antigas e mesmo atuais: como prova da sua fé, Jeová exige de Abraão que sacrifique Isaac; como não há alimento para todos os membros da família, João e Maria são enviados para morrer na floresta; Édipo é abandonado no monte Citerão devido à profecia segundo a qual mataria seu pai; repetindo o faraó, Herodes manda matar os meninos judeus para evitar que um deles se torne o salvador do povo; bebês do sexo feminino são assassinadas na China porque o único filho permitido pela lei deve ser menino os exemplos encheriam toda esta página.
Foi com a idéia cristã de um Deus menino que começaram a surgir práticas mais respeitosas para com as crianças, como a educação dos abandonados nos mosteiros medievais. Mas a categoria psicológica e sociológica da infância é recente: data do século 18 (Rousseau).
A percepção de que os pequenos seres humanos têm características emocionais e intelectuais distintas daquelas dos adultos levou à criação da "nursery", com seus brinquedos e jogos, e de histórias próprias para eles: primeiro, as de Hans Christian Andersen, depois as de fada, até chegarmos aos desenhos animados; o primeiro longa-metragem do gênero, "Branca de Neve", retoma a história de uma garota cuja morte é desejada.
Crença na pureza
Essa evolução dos costumes produziu a crença na "inocência" e na "pureza" da criança, em particular no que se refere à sexualidade.
As descobertas psicanalíticas mostram que as coisas são um pouco diferentes, mas é importante frisar que elas não invalidam a dimensão jurídica da proteção aos menores: o pequeno é mais fraco do que o grande, e, portanto, o crime contra ele é considerado mais grave que o praticado entre iguais.
Já a lei romana prescrevia: "O tutor que agir com dolo será destituído com infâmia e pagará em dobro o prejuízo causado" (tábua 7, 11). O que é condenado aqui é o abuso de confiança, que, além de ser um delito, é também uma transgressão aos princípios da ética.
Um marco histórico na percepção de que a criança é sujeito de direitos foi a Declaração dos Direitos adotada sobre ela pela ONU em 1959, base para o nosso Estatuto da Criança e do Adolescente, que, apesar de algumas falhas, é uma boa lei.
O fato de ela ter "pegado" mostra que a sociedade brasileira está disposta a cuidar melhor das novas gerações e a punir os que agirem de modo contrário e isso é um avanço civilizatório.
Situações intoleráveis
Prova disso é que situações que há poucas décadas deixavam as pessoas indiferentes ou apenas suscitavam protestos da boca para fora, como a exploração do trabalho infantil, são hoje tidas por intoleráveis.
A esses dados de ordem sociológica e política o psicanalista pode acrescentar que o abuso sexual, a pedofilia, a brutalidade na punição, o infanticídio não nos chocam apenas porque ofendem o princípio da proteção ao mais fraco, mas também porque mobilizam ansiedades infantis à ameaça representada pelo adulto (bruxas, ogros).
Além disso, há a angústia diante da possibilidade de que venhamos a ter tais desejos e idéias ou, pior, a praticar tais atos, que correspondem a fantasias inconscientes mais difundidas do que gostaríamos de acreditar.
Exorcismo
Demonizar o pai de Isabella pode ter a função de exorcizar algo que tememos, porque inconscientemente também desejamos a possibilidade de prejudicar, pouco ou muito, os pequenos que dependem de nós. Já o sabia o profeta Jeremias: "Os pais comem uvas verdes, e os dentes dos filhos apodrecerão?" ("Jeremias", 31:29).
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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