Entrevista concedida a Veja (04/10/2000)
Veja — O ex-presidente americano Bill Clinton fez recentemente a seguinte pergunta aos participantes de um congresso sobre Aids: "Como explicar a um extraterrestre a existência de uma doença que pode ser prevenida, contra a qual existem remédios, mas que continua se espalhando rapidamente pelo mundo?" O que o senhor
lhe responderia?
Baltimore — Não entendo a razão da questão formulada por Clinton. Quase todas as doenças podem ser prevenidas, especialmente quando você sabe como elas proliferam. O problema é se queremos mesmo nos esforçar o suficiente para preveni-las. No caso da Aids, esse esforço deve ser enorme, porque envolve também decisões pessoais e íntimas, sobre as quais a ciência e os governos têm pouco ou nenhum poder de convencimento.
Veja — O que o senhor acha de ainda existir conflito entre ciência e religião em pleno século XXI?
Baltimore — Não vejo uma contradição muito forte hoje em dia entre as religiões e a prática científica. Nos primeiros anos da luta contra a Aids, a associação estatística clara entre o vírus HIV e homens homossexuais apresentou um grande problema. Muitas pessoas, movidas talvez por questões religiosas, acreditavam que não deveríamos fazer pesquisas sobre Aids porque julgavam a homossexualidade imoral. Elas achavam perda de tempo buscar a cura de uma doença que atingia basicamente homossexuais masculinos. Graças a Deus, hoje não escutamos mais argumentos dessa natureza. Mas, com certeza, esse modo de pensar foi uma das
maiores barreiras iniciais à ampliação da luta contra essa terrível doença.
Veja — O senhor concorda com a idéia de que os países do Terceiro Mundo podem desrespeitar patentes para baratear o custo de remédios essenciais?
Baltimore — Esse é um assunto extremamente complicado. Em primeiro lugar, o processo de descoberta de medicamentos requer enorme investimento financeiro e esse investimento só pode ser feito se houver retorno para os investidores. Isso tem várias implicações. A mais clara é que o custo dos remédios é ascendente. Eles ficarão cada vez mais caros. Nos Estados Unidos, geralmente subsidiamos os remédios para pessoas de baixa renda. Esse processo funciona muito bem. Quando os pacientes desenvolvem resistência a certos remédios, novos medicamentos surgem, dando aos médicos a capacidade de continuar combatendo a doença. Em outras partes do mundo, as pessoas também querem ter acesso a essas drogas, mas não querem, ou não podem, pagar o custo de seu desenvolvimento. Querem apenas que as drogas sejam doadas. Esse esquema pode
funcionar por um tempo, mas não indefinidamente. Atualmente, os EUA estão subsidiando o resto do mundo, ao pagar os altos custos das pesquisas e distribuir os medicamentos por um preço bem mais baixo em outros países. Acredito que essa não seja uma situação viável no longo prazo. Se os laboratórios americanos cruzarem
os braços e abandonarem a criação de drogas para substituir aquelas que perdem poder curativo, então não vejo quem possa fabricá-las.
Veja — O programa governamental brasileiro contra a Aids, que combina medidas preventivas e negociação de preços com os laboratórios farmacêuticos, tem sido elogiado em todo o mundo. O senhor conhece o programa brasileiro?
Baltimore — Um pouco. Nunca estive no Brasil. Mas li na imprensa, especialmente o que foi divulgado durante o 14º Congresso Internacional de Aids, realizado recentemente em Barcelona. Parece que o programa brasileiro tem sido bem-sucedido, e isso é maravilhoso. Gostaria de saber ainda mais sobre o grau de sucesso na
prevenção da doença no Brasil. Prevenir doenças é o aspecto determinante no longo prazo. Ainda temos a aprender sobre como as pessoas reagem aos programas de prevenção e como elas podem ser mais facilmente convencidas a se proteger.
Veja — O programa infantil de televisão Vila Sésamo está criando uma personagem do sexo feminino aparentemente saudável, mas portadora do vírus HIV. Essa versão irá ao ar somente na África do Sul, mas diversos políticos dos Estados Unidos se manifestaram radicalmente contra a idéia...
Baltimore — Sério? Não entendo por quê. Uma das melhores maneiras de fazer isso é por meio de um personagem de televisão. A iniciativa do Vila Sésamo é fantástica. É impressionante que os políticos americanos estejam reclamando dela.
Veja — Os políticos querem controlar a ciência quando se metem na questão da clonagem, por exemplo?
Baltimore — A clonagem é um processo controverso porque é feita com a manipulação de células de embrião. Muitas pessoas são contra o uso de embriões em pesquisa. Acreditam que devem ser respeitados da mesma forma que um ser humano já completamente desenvolvido. Não acredito nisso. Mas quem acredita não quer ver
células de embrião sendo usadas em laboratórios, em hipótese alguma. O Congresso americano tentou entrar nesse debate científico, mas se viu incapaz de tomar uma decisão. Desde então os políticos têm silenciado sobre a questão.
Veja — Do ponto de vista científico, a clonagem é um grande feito? Que benefícios ela pode trazer?
Baltimore — A "clonagem terapêutica" é, a meu ver, o objetivo mais atraente. Com ela será possível produzir células diferenciadas de qualquer órgão do corpo humano, partindo das células indiferenciadas chamadas "células-tronco" embrionárias. Isso permitirá produzir órgãos ou parte deles com material genético da própria pessoa, evitando os danos que costumam provocar as rejeições nos transplantes atuais. Posso vislumbrar alguns desenvolvimentos muito úteis para indivíduos que sofrem de uma variedade de doenças. O processo será valioso também quando se tratar de investigar doenças. Poderíamos clonar células de pessoas que têm determinadas doenças genéticas, e isso nos ajudaria a entender os principais fundamentos dessas moléstias.
Veja — De tanto ver falsas promessas de tratamento contra o câncer, as pessoas estão muito descrentes. Há razões para otimismo na luta contra o câncer?
Baltimore — No curto prazo, costumo dizer que sou pessimista. O câncer não é uma doença única. O câncer é uma série de doenças diferentes. Cada um tem uma natureza distinta e tem de ser tratado separadamente. Então, não acredito que alguma vez teremos um tratamento único eficaz para todos os tipos de câncer. Acho
que será mais provável vermos muitas maneiras de lidar com os diferentes tipos da doença que, juntas, podem trazer enorme progresso no controle do câncer. Mas nenhuma delas será considerada uma forma de cura.
Veja — A abordagem do professor Judah Folkman, de Harvard, que consiste em matar o tumor de fome, impedindo quimicamente a formação de vasos sanguíneos a sua volta, é uma esperança real?
Baltimore — Essa abordagem, chamada de antiangiogênese, é ainda largamente uma incógnita. Ela não foi devidamente testada. Os experimentos com animais são interessantes, mas ainda temos um longo caminho a percorrer antes de sermos capazes de dizer que essa é a via mais promissora para combater a doença.
Veja — O fato de sua mãe ter sofrido de câncer serviu de estímulo para pesquisar ainda mais sobre a doença?
Baltimore — Quando ela adoeceu, eu já tinha recebido o Prêmio Nobel por pesquisas relacionadas com o câncer e outras doenças. Por isso, a doença dela não me trouxe nenhuma sensação de culpa de não ter feito o melhor possível por ela e por outros doentes. Meu maior estímulo são meus interesses intelectuais, e não meus interesses pessoais ou emocionais.
Veja — A biologia molecular também é vista pelas pessoas leigas como um campo de pesquisa que prometeu mais resultados que os efetivamente conseguidos, não?
Baltimore — Por muitos anos, as pessoas chamaram a atenção para o fato de que a biotecnologia estaria absorvendo uma quantia enorme de investimento sem produzir muitos remédios. Mas acho que paramos de escutar isso. Existem tantos remédios que chegam às prateleiras e tantos outros em fase de testes que acredito que veremos a revolução da biotecnologia florescer. Os produtos já obtidos pela biotecnologia são bastante úteis. Do ponto de vista empresarial, a biotecnologia tem um desempenho bem mais satisfatório que as empresas de internet e alta tecnologia. A biotecnologia perdeu valor em bolsa, mas produziu muita coisa boa
para a saúde das pessoas.
Veja — Como é ganhar um Prêmio Nobel aos 37 anos?
Baltimore — Embora estivesse trabalhando na área científica havia muito tempo e não me considerasse assim tão jovem, foi surpreendente. Hoje, olhando para trás, acho que eu era, de fato, muito jovem. Acredito que o importante é não fazer sua vida girar em torno do Nobel. O que importa é dar continuidade ao que você julga
importante pesquisar. A ciência sempre foi tremendamente central em minha vida. Penso que é um dos mais nobres empreendimentos no qual podemos nos engajar. Publiquei muito mais pesquisas científicas depois de ganhar o Prêmio Nobel que antes.
Veja — Seu biógrafo, Shane Crotty, escreveu que o senhor pesquisa mais por curiosidade e não com o objetivo de beneficiar a humanidade...
Baltimore — Isso é a pura verdade. Essa é uma das razões pelas quais gosto da Caltech. Há muitas pessoas aqui que têm esse mesmo sentimento pela ciência. Elas estudam não pelos resultados práticos, mas porque querem compreender como o mundo funciona.
Veja — O senhor apoiou muito sua colega brasileira Thereza Imanishi-Kari quando foram acusados de fraudar determinados resultados de pesquisas. Como o caso da fraude afetou sua carreira?
Baltimore — Esse episódio fez parte de minha vida por dez anos. Tive de lidar com isso diariamente. Ao mesmo tempo, tive de filtrar os problemas, para ter a capacidade de fazer o que realmente me interessava. Isso testou, mais uma vez, meu compromisso com as coisas com as quais me preocupo. Um fato desses é capaz de absorver toda a sua vida, porém me recusei a deixar que isso ocorresse. Eu poderia realizar algo muito mais produtivo, mas tinha de gastar meu tempo brigando no Congresso americano, enfrentando pessoas muito
poderosas, para salvar minha reputação e também a de Thereza. Como ela é brasileira, na época houve muito interesse sobre o caso no Brasil. Ela hoje leva uma vida relativamente normal lecionando na Universidade de Tufts, em Boston.
Veja — No www.longbets.org, internautas fazem previsões e apostas sobre o futuro da ciência. Que podemos esperar, digamos, dentro de 25 ou cinqüenta anos?
Baltimore — Diria que saberemos como lidar com o câncer muito melhor do que sabemos hoje. Não diria que haverá uma cura médica, mas as pessoas estarão vivendo com a doença de uma forma bem mais tranqüila do que hoje. Gostaria muito de poder dizer que teremos uma vacina contra a Aids, mas tem sido tão difícil que não
tenho certeza absoluta disso.
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