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Darcy Ribeiro - Entrevista concedida a Veja (18/01/1995).

 

Veja — O senhor está com medo de morrer?

DARCY RIBEIRO — Não. Fugi do hospital para viver mais. Parece uma repetição do que aconteceu anos atrás quando, no exílio, descobri que tinha um câncer no pulmão. Os médicos me desenganaram e me deram só seis meses de vida. Agora, diagnosticaram um câncer na próstata, mas eles mesmos garantem que a sobrevida nesses casos é longa, dez anos, apesar da metástase. O problema maior foi uma pneumonia que eu peguei porque estava com as defesas imunológicas baixas em função da quimioterapia. Só não corro o risco de morrer de pneumonia dupla porque só tenho um pulmão.

Veja — Mas por que o senhor fugiu?

DARCY RIBEIRO — Passei 21 dias dopado. Não agüentava mais. Fiquei na sala da UTI com tubo no nariz, tubo na traquéia sangue, soro, gente chorando, gente gemendo. Um horror total. Disse ao médico que, se ele não me desse alta, eu iria embora. Ele não podia fazer isso, pois estava e estou em tratamento. Então, decidi fugir. Disse ao médico que ia passar o dia em casa e voltava. Um amigo me ajudou a arrumar uma cadeira de rodas e fui embora. O médico acabou reagindo muito bem, e disse que já esperava por isso.

Veja — Não é arriscado?

DARCY RIBEIRO — Aqui fica o espaço que eu mais gosto, a casa que o Niemeyer desenhou para min. De qualquer parte da casa, deitado ou sentado, você vê o mar. E é onde eu posso trabalhar tranqüilamente. Eu precisava acabar o livro A Gestação do Brasil. Há trinta anos que estou escrevendo esse livro. Estava angustiado e pensei: tenho de escrever esse livro antes de morrer. E já acabei. São 400 páginas. Dentro de uma semana, já estará pronto. Ele já estava em grande parte escrito, mas era preciso acertar as idéias.

Veja — Qual é a idéia central desse livro?

DARCY RIBEIRO — Minha vontade era mostrar como se gestou o povo brasileiro, como se juntarem índios, portugueses, franceses, negros, criando aqui uma população enorme falando tupi-guarani. Mostro, por exemplo, que foi o negro que civilizou o Brasil. Isso aconteceu porque os negros não tinham uma língua comum, cada um vinha de um lugar diferente na África, e então eles foram obrigados a aprender o português e difundi-lo.

Veja — Como o senhor define o Brasil?

DARCY RIBEIRO — O Brasil é a melhor província e o melhor povo do mundo para fazer um país. Mas é muito difícil. É muito fácil fazer uma Austrália. Basta caçar uns ingleses e holandeses, jogar no mato e mandar matar os índios e pedir que repitam a paisagem inglesa. No caso do Brasil, não. É a partir de 6 milhões de índios desfeitos, 12 milhões de negros desafricanizados e a partir de uns poucos milhares de portugueses que se refaz um povo, um gênero novo de gente que nunca existiu. Gente que procura sua vez, tem enormes potencialidades mas que ainda não encontrou o seu destino.

Veja — Se essas potencialidades são tão grandes, por que temos tantas dificuldades?

DARCY RIBEIRO — Nosso problema é continuar existindo para os outros e não existir para nós. Fomos criados para produzir açúcar que adoçava a boca do europeu, o ouro que o enriquecia e continuamos produzindo a soja para engordar porco na Alemanha. Enquanto não fizermos o país existir para si, nós seremos um país-problema. Os Estados Unidos sabem mais ou menos o que eles vão ser no ano 2100. E têm uma idéia do que convém a eles que o Brasil seja. Nós não temos essa idéia.

Veja — O presidente Fernando Henrique Cardoso tem condições de mudar esse jogo?

DARCY RIBEIRO — A política econômica do Fernando Henrique é a mesma do Delfim, do Roberto Campos, da ditadura. Mas o Fernando Henrique é um sociólogo inteligente. Tão sabido como ele é, vai fazer esse mandato para fazer dois. Provavelmente, esse mandato será muito do Marco Maciel. E o segundo pode ser mais do Fernando Henrique. Ou seja, mais amplo. O Fernando é suficientemente inteligente para querer que o país realize suas potencialidades. O Brasil não é Honduras. O Brasil é uma das estruturas histéricas, como a Rússia e os Estados Unidos. E tende a existir como uma presença peremptória, importante no mundo. O pendor do grupo do Fernando Henrique é oportunista neste momento. Diante da crise que está aí o pendor deles é se entregar.

Veja — Como se dá essa entrega?

DARCY RIBEIRO — Esse governo teve a inconsciência privatista de entregar Volta Redonda. Essa siderúrgica foi conquistada pelo Getúlio durante a guerra, que exigiu do Roosevelt a sua construção como condição para apoiar os aliados. Ela foi vendida por um valor menor que o do estoque de seus produtos. As dívidas foram apagadas. Foi uma doação.

Veja — Mas a usina não ficou melhor?

DARCY RIBEIRO — Pode ser que os banqueiros que entraram na privatização ganhem mais que o Estado. Mas quem ganha são os banqueiros. É dessa maneira que vejo outro risco, ainda maior, que é a privatização da Vale do Rio Doce. As jazidas de ferro, ouro e níquel, sobre as quais a empresa tem controle, valem 1 trilhão de dólares. Ainda que os banqueiros possam tirar esse trilhão do solo mais rapidamente e lucrar mais com ele, eu duvido que o país lucre. É uma deformação da economia. Esse é o país que os banqueiros querem e não o país que o Brasil quer. Minha esperança é que o Fernando
Henrique converta essa onda de privatizações numa atividade menor dos meninos dele, não afetando o esqueleto da nação.

Veja — Que recomendação o senhor faria para FHC?

DARCY RIBEIRO — Ele deve ficar atento para o fato de que está ocorrendo um etnocídio no Brasil. Eu lido com crianças nos Cieps e vejo que aquelas que entram com 7 anos tem um tope de 5. Faltam três centímetros nelas. Depois de comer seis meses elas recuperam, felizmente. Por outro lado, a população está diminuindo. É um fato espantoso. O censo mostra que faltam 10 milhões de pessoas na nossa população. Não fizeram planejamento familiar. Mataram. Como é que estão matando? De fome, de miséria e também esterilizando. A metade das mulheres de Goiás está esterilizada. Goiás é um deserto demográfico. Estão guardando Goiás para quem? Para os chineses?

Veja — O senhor, como brizolista, vê algum futuro para o brizolismo?

DARCY RIBEIRO — O Brizola é um homem extremamente vigoroso como líder. Eu vi Brizola chegar à Europa e ser reconhecido de imediato. É carisma. Os gregos diziam que carisma é a quantidade de tempo que uma pessoa que entra num templo leva para enchê-lo. Eu fui uma vez com ele a Paris e foi a única vez que eu fui hospedado no Regines, um hotel de receber reis e chefes de Estado, por conta do Estado francês. Eu vi o Brizola, que não fala língua nenhuma, ser recebido pelo Willy Brandt, que via nele uma liderança da América do Sul, mais vigoroso do que Fidel. O Brasil vai enfrentar muitos problemas no futuro e tem que ter oposição. É claro que gente como Brizola, como Lula, terá espaço.

Veja — Como o senhor vê o intelectual brasileiro?

DARCY RIBEIRO — O intelectual brasileiro raramente foi fiel ao Brasil. Num período de lutas como a da abolição, os intelectuais tiveram a oportunidade única de se colocarem na frente do povo. No início da década de 60, comigo no Ministério da Educação, foi possível levantar com a intelectualidade um movimento formidável que, entre outras coisas, produziu o cinema novo. A tendência do intelectual é acomodar-se. Intelectual não é flor que se cheire. Em nenhum lugar se costuma confiar em intelectual. A Inglaterra nunca pensou que os intelectuais iam salvá-la, tampouco a França.

Veja — E o senhor, é melhor como intelectual ou como político?

DARCY RIBEIRO —Eu sou atípico. O PC não me quis porque me achava um militante muito agitado, e a FEB não me aceitou porque os médicos acharam que eu era muito raquítico para ser sargento. Eu me entendi com o Marechal Rondon e passei dez anos com os índios. Dali fui ser ministro da Educação, criei a Universidade de Brasília, fui chefe da Casa Civil do Jango, tentei fazer a reforma de base e caí no exílio. E foi no exílio que escrevi uma larga obra. Nunca gostei de ser político. No fundo, acho que sou político por razões éticas. Um poeta inglês pode ser só poeta. Mas num país com o intestino à mostra, como o Brasil, o intelectual tem obrigação de tomar posição. Essa é uma briga séria e eu estou nessa briga. Mas, se tiver de dizer do que eu gostei mais na
vida, eu digo que eu gostei mais foi de namorar. No mais, são ofícios.

Veja — Entre seus onze livros, qual o senhor considera o mais importante?

DARCY RIBEIRO — Eu quero crer que é este, A Gestação do Brasil. Com ele, eu esgotei toda a minha possibilidade intelectual. Percebi que era indispensável fazer uma teoria do Brasil para tomar o Brasil explicável. Os americanos podem se explicar, dizendo que seu passado é Roma, é Irlanda. O australiano também. Mas nós não. O nosso presente não é o deles. O nosso futuro não será o deles.

Veja — Por que o senhor levou tanto tempo para escrevê-lo?

DARCY RIBEIRO — Nesses anos, a ocupação política, o exílio muito trabalhoso, e romances que eu fui escrevendo, me impediram de aprontar esse livro. No início achei que seria fácil. Escrevi um texto em 1968 sobre o Brasil e senti que não podia publicá-lo porque não tinha novidade nenhuma. O que eu dizia todo mundo já sabia. Então parti para escrever uma série de cinco livros que são estudos de antropologia da civilização que culminam agora. O primeiro da
série foi O Processo Civilizatório, que é uma revisão de 10 000 anos de História. Eu queria saber como é que a Ibéria explodiu e fez um mundo só, o ato de energia mais feroz da História, muito mais importante que ir à Lua. Como é que isso se deu? Foi num regime feudal? Não. Foi num regime capitalista? O capitalismo poderia ser, mas não existia ainda.

Veja — Como a maioria dos autores, o senhor tem assuntos quase permanentes em sua obra. Qual foi, no fundo, sua grande obsessão?

DARCY RIBEIRO — O livro mais importante do Brasil é o Casa Grande & Senzala, do Gilberto Freyre. Mas é o ponto de vista da classe dominante sobre o que é a casa-grande e a senzala. Não explica o Brasil. Eu sempre tive como preocupação explicar as causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos e, por isso, escrevi As Américas e a Civilização. Por que os americanos, que rezavam em igrejas de tábuas, que viviam da comida que vendiam para o Haiti, fizeram a grande revolução do mundo e o Haiti foi para a miséria e o Brasil também?

Veja — O senhor criou uma teoria para explicar o Brasil?

DARCY RIBEIRO — As teorias das classes sociais da Europa, falando do proletariado, brigando com a aristocracia, brigando com a burguesia, não serviam para nós. Fiz um estado das classes mais pobres. O Brasil tem um bolsão de gente que vem da escravidão, oprimido, marginalizado, que é o peso que leva a nação. Enquanto não incorporar esse bolsão, o Brasil não existirá como gente civilizada. E fiz um outro volume que é Os Índios e a Civilização, que mostra que alguns soldados latinos acamparam na Gália e fizeram a França. Outros acamparam na Ibéria e fizeram Portugal e Espanha. Nós somos,
portanto, romanos tardios. O livro mostra que um soldado atuando sobre indígenas cria uma nação diferente. E fiz outro volume que é a Teoria do Brasil. Esse, eu acho sem importância. Faltava fazer o volume final.

Veja — Qual dos seus livros o senhor recomendaria para um jovem de 18 anos?

DARCY RIBEIRO — Um moleque de 18 anos deveria ler Maíra. É meu romance de indianidade. Dos anos que eu vivi com os índios. E literatura você tem de gostar. E recomendaria outro livro meu que se chama Aos Trancos e Barrancos Como o Brasil Deu no que Deu, em que eu faço um balanço de 1900 até 1980, contando, do ponto de vista da esquerda, o que aconteceu ao país.

Veja — Qual a prioridade que o senhor elegeria para o Brasil de hoje?

DARCY RIBEIRO — Sem dúvida, a educação. Os japoneses perceberam isso e em poucas décadas o Japão transfigurou-se. O Brasil tem de cumprir essa tarefa. No Japão, essa tarefa é fácil porque os japoneses são todos iguaizinhos. Mas no Brasil um é preto, outro é mulato. E ninguém tem muito apreço por preto ou mulato. Por isso fizeram escolas para uns poucos, o que resultou numa educação totalmente deformada. Nós temos uma educação primária de elite. Ela é feita para a criança de classe média que, no fundo, não precisa dela.

Veja — Que ba1anço o senhor faz dos Cieps?

DARCY RIBEIRO — O Ciep é um tremendo experimento. Um sistema de preparação de magistério que, no Rio, formou mais de 20 000 professores. Os Cieps têm 400 000 alunos. A maior estupidez do Brasil é pensar que eu inventei o Ciep. No mundo só há Ciep. É a velha escola em tempo integral, que os padres sabiam fazer para os meninos ricos. No Brasil é que inventaram essa escola de turno para enganar o povo.

Veja — Por que o rendimento de nossas escolas é tão baixo?

DARCY RIBEIRO — Porque o professor aqui é nomeado por disciplina. Um profissional aqui é professor de contabilidade I no curso de Direito e de contabilidade II no curso de Economia. É uma loucura. No mundo inteiro um professor é um profissional, pesquisador ou não, que dá uma matéria e trabalha algumas horas. Nossos professores trabalham de duas a quatro horas por semana, fazendo de conta que trabalham vinte ou quarenta. Eles acham que são mal pagos. Pelo que eles fazem são bem pagos até demais. E o Brasil é o único país no mundo em que se vendem diplomas. É calamitoso.

Veja — O senhor aprovou a ação do Exército nas favelas do Rio?

DARCY RIBEIRO — Foi uma coisa boa. Depois dele, o Rio está desafogado. Era preciso dar um susto nos traficantes. Precisamos estar atentos porque eles estão prontos para responder. Todo mundo sabe que a obrigação do Exército não cumprida é impedir a entrada de armas. Sem armas não haveria tráfico, e é função da Polícia Federal não deixar entrar droga. E há outra questão. No fundo, esse problema nem pode ser considerado apenas nosso. Temos de reconhecer que o consumo de drogas atingiu um ponto tal, nos Estados Unidos, que se pode dizer que o povo americano apodreceu. Os americanos estão tão viciados em drogas fortes que gastam bilhões de dólares com elas. Assim, deformam os outros países e criam essas situações.

Veja — O senhor se considera socialista?

DARCY RIBEIRO — Os idiotas dizem que o socialismo morreu. Não morreu porque o capitalismo não morreu e não vai morrer. E haverá sempre uma briga entre capital e trabalho.

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