Nesta biografia de Sigmund Freud, são revelados alguns gostos convencionais de um dos homens que mais influenciou o pensamento do século XX.
Trecho do livro Freud, uma vida para nosso tempo.
Freud, assim, manteve-se muito tempo receptivo aos prazeres dos sentidos. Expressava uma certa simpatia pela máxima de Horácio — carpe diem, “aproveite o dia de hoje” —, defesa filosófica de agarrar o prazer do momento que apela à “incerteza da vida e a natureza infrutífera da renúncia virtuosa”. Afinal, confessava ele, "cada um de nós teve horas e épocas em que admitiu que essa filosofia de vida é correta". Em tais momentos, somos propensos a criticar a impiedosa severidade dos ensinamentos morais: “Só sabem fazer exigências sem oferecer compensações". Embora rígido moralista, Freud não negava a vez do prazer.
Os objetos que Freud reuniu em seu apartamento ao longo dos anos depõem sobre o tipo de gratificação sensual que ele, médico e homem de família, considerava agradável e, ao mesmo tempo, aceitável. A Berggasse 19 era um pequeno mundo refletindo escolhas deliberadas; seguramente situava Freud em sua cultura mais ampla tanto pelo que continha como pelo que, admiravelmente, não continha. Freud era um citadino culto da classe média de sua época; no entanto, sua atitude em relação ao que sua classe afirmava admirar, e muitas vezes realmente admirava — a arte, a música, a literatura, a arquitetura —, não era totalmente previsível. Freud não era, em absoluto, insensível à beleza feita pelo homem. Em 1913, gostou de saber que Karl Abraham estava apreciando a estância holandesa de Noordwijk aan Zee, onde Freud já havia passado férias. "Principalmente os crepúsculos”, rememorava ele, "eram grandiosos". Mas apreciava ainda mais as obras humanas. “As pequenas vilas holandesas são encantadoras. DeIft é uma pequena jóia." Os pintores e escultores — e arquitetos — proporcionavam-lhe grande deleite visual, ainda mais do que as paisagens naturais.
Aberto ou não à beleza, as preferências de Freud, de modo geral, seguiam o convencional. As coisas que escolheu para circundá-lo são de um inflexível conservadorismo, celebrando tradições estabelecidas. Ele gostava daquele tipo de lembranças que inúmeros burgueses do século XIX julgavam indispensáveis a seu bem-estar: fotografias de membros da família e amigos íntimos, souvenirs de lugares visitados e de bom grado lembrados, águas-fortes e peças esculpidas que, por assim dizer, eram legados do Antigo Regime no campo das artes — todas acadêmicas e sóbrias. As revoluções na pintura, poesia e música eclodindo à sua volta deixaram-no impassível; quando se impunham à sua atenção, o que era raro, ele as desaprovava energicamente. A partir dos quadros nas paredes da casa de Freud, quando se mudou para a Berggasse 19, não se poderia saber que o impressionismo francês vinha florescendo há algum tempo, nem que Klimt, Kokoschka e, mais tarde, Schiele trabalhavam em Viena. Comentando com enfático desgosto um retrato desenhado, “extremamente moderno”, de Karl Abraham, ele lhe disse que estava horrorizado em ver “quão cruelmente deve ser punida sua tolerância ou simpatia em relação à ‘arte’ moderna”. As aspas irônicas em “arte” são expressivas. Freud admitiu francamente a Oskar Pfister que, frente ao expressionismo, era um filisteu.
Fonte: Gay, Peter. Freud, uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, págs. 163-164.
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