Qual é a lembrança mais marcante que o senhor tem do período de lançamento do Plano Real?
Havia, naquele momento, um enorme apoio social ao programa. Alguns políticos ficaram na oposição, o PT mais notoriamente, mas a população como um todo endossou o plano. Quando o André Lara Resende e eu escrevemos um trabalho acadêmico em 82, 14 anos antes, dizendo que a maneira de lidar com a inflação brasileira era uma reforma monetária através da introdução de uma moeda indexada, que depois, com o Plano, foi batizada de URV, naquele documento nós prevíamos um prazo de dois anos para que a população gradualmente transformasse os contratos antigos na moeda nova. O que se observou então é que isso aconteceu em um prazo bem menor, de apenas 3 meses, o que dá uma noção do quanto a população apoiou o programa. Essa é uma faceta pouco entendida do programa de estabilização, porque normalmente o programa de estabilização é visto como resultante de uma equipe técnica, que escreveu o plano. Isso até é verdade, mas sem o apoio da população e de boa parte do Congresso, a implementação do Plano Real não seria exequível.
Esse apoio existia também entre economistas e instituições financeiras?
Não. Pelo contrário. Havia um contraste entre o endosso da população, que estava sedenta por estabilidade, e o enorme ceticismo por parte dos colegas de profissão. Isso começou no próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), que se recusou a endossar o Plano Real, com o argumento de que não havia base e nem clareza suficiente de que aquilo de fato tinha sustentação. Eram frequentes também aqui no Brasil artigos dizendo que o real não ia dar certo, que era um equívoco gigantesco. Economistas importantes diziam que aquilo era como "patinar em gelo fino". Também disseram que o País iria direto para a hiperinflação na nova moeda. Enfim, havia um enorme ceticismo entre os colegas de profissão, porque era um plano inovador, algo que nunca tinha sido feito em lugar nenhum do mundo. E ele era inovador porque o Brasil tinha uma característica peculiar, uma questão muito específica, uma jabuticaba brasileira, que era a indexação generalizada de contratos por força de lei. O que André e eu fizemos foi pensar o problema da estabilização brasileira, levando em conta não só os aspectos universais de qualquer inflação, como desajuste fiscal e uma política acomodatícia do Banco Central, mas também as características específicas da inflação brasileira. Como essas características só existiam aqui, era necessária uma equipe de economistas brasileiros, porque a literatura internacional lidava com outros tipos de problemas.
Como era a afinidade entre os membros da equipe que idealizou o Plano Real? O consenso foi fácil?
Estávamos todos unidos por um trabalho comum, ninguém ali tinha outra agenda senão o sucesso da estabilidade. Além disso, havia uma formação intelectual comum, o que ajudou muito. Havia laços de confiança. Quase todos eram egressos da PUC do Rio de Janeiro, havia relações entre professores e alunos. Enfim, de certa forma, havia uma identidade cultural comum entre nós que fez com que as ideias avançassem muito rapidamente.
O Plano Real é um sucesso?
O sucesso de uma estabilização monetária você só confirma com o tempo. A passagem de 18 anos desde a criação do real mostrou que o Plano pode ser considerado muito bem sucedido, já que conseguimos domar o dragão da hiperinflação, que era um desafio específico do nosso País. Mas o tipo de desafio para o real mudou. Temos agora um desafio universal, já que a nossa inflação hoje está mais próxima da de outros países do mundo. Parte do benefício do Plano Real, além da desinflação, foi a construção da confiança na moeda. Hoje, se você perguntar quanto alguém tem na conta, a resposta é em real. Antes do Plano essa resposta vinha em dólar. Essa criação de confiança na moeda foi um processo que levou tempo. Hoje temos confiança no padrão monetário do nosso País. Mas, na época do lançamento do real, havia uma atrofia dos mercados financeiros. O crédito era muito limitado, as taxa de juros eram extremamente elevadas. O crédito, portanto, era pouco e curto. Você tinha que comprar um carro em no máximo seis meses. O crédito imobiliário também era só na Caixa Econômica Federal, não existia no setor privado. Com a estabilização trazida pelo Plano Real e a confiança na moeda, as relações financeiras foram se aprofundando, e o mercado financeiro foi se normalizando. O Brasil, que tinha 10%, 15% de crédito, hoje tem 50%. Hoje você consegue financiar um carro em 5 anos, a taxa de juros caiu para o menor patamar da história. Ao longo desses 18 anos, portanto, o Brasil foi se normalizando. Dou muita importância para isso, porque esse processo ainda não terminou. E zelar pela continuidade dessa estabilização é fundamental.
Como isso deve ser feito?
O real só será um sucesso quando esse processo for concluído, ou seja, quando as taxas de juros brasileiras forem iguais às internacionais, quando o crédito tiver na mesma dimensões de outros países emergentes, e quando a gente tiver crédito muito longo em quantidades expressivas. A boa notícia é que esse processo ainda vai ajudar o país a crescer. Outro vento que sopra a favor do Brasil é a questão da demografia. Somos um país jovem e isso também ajuda a evoluir. Apesar desses dois ventos a favor, o crescimento do País está longe de ser brilhante, e deve ficar em torno de 2% em 2012.
Por que a economia não cresce mais do que isso?
Não é falta de otimismo e nem de empreendedorismo. O problema do nosso País é excessiva carga tributária e o grande peso do crédito direcionado e subsidiado, a excessiva intervenção estatal. É isso que tira o dinamismo da economia brasileira. A boa notícia é que isso é algo de governo, e portanto, em tese, está em nossas mãos para ser resolvido.
O governo Dilma está na direção certa para resolver essas questões?
Obviamente existe boa vontade dos governantes. Mas isso tem que ser analisado objetivamente. A carga tributária como um todo está aumentando ou caindo? O volume de crédito direcionado está aumentando ou diminuindo? Ou seja, se olharmos algumas estatísticas agregadas da intervenção do Estado na economia, vemos uma tendência preocupante, não só de curto prazo. A carga fiscal no começo do real era abaixo de 25% do PIB, hoje está em 37% do PIB. O volume do crédito com intervenção do governo, proporcionalmente ao crédito total, está muito maior hoje do que na época de criação do real. Então, embora o Brasil tenha feito enormes progressos em termos de consolidação da estabilidade, do ponto de vista da modernização e redução da interferência do Estado na economia, o País está retrocendendo, e não evoluindo.
Como o governo poderia melhorar a distribuição de renda no Brasil?
O Brasil tem feito enormes progressos em termos de distribuição de renda, que antes era altamente concentrada, como em países africanos. Em parte, porque conseguimos contornar o problema da inflação, que pesava mais sobre a população pobre. Se o Estado interferir menos na economia, a distribuição de renda vai melhorar mais rapidamente. Por exemplo: se as aplicações no FGTS não fossem penalizadas, a distribuição de renda melhoraria no ato. Do jeito que está, é como se houvesse um imposto sobre os trabalhadores, beneficiando os empresários que tomam crédito no FGTS. Mas precisamos ter em vista que o objetivo não é igualdade de renda e nem de riqueza, mas sim igualdade de oportunidades. O que temos que assegurar é que as condições de partida sejam homogêneas, e isso só ocorre se há educação e saúde para todos. Se o Estado diminuísse suas intervenções e se dedicasse exclusivamente a melhorar o sistema público de saúde e educação, traria um benefício enorme à população. Nesse sentido o País ainda tem muito para caminhar.
Como o senhor vê o interesse dos investidores estrangeiros no Brasil neste momento?
A euforia dos últimos tempos com o Brasil derivava de três aspectos. O Brasil era um país que crescia rapidamente, tinha taxas de juros muito atrativas e era percebido como um país muito amigável aos investidores. Todos esses fatores perderam o brilho recentemente. Hoje, o país perdeu vigor no crescimento, a taxa de juros caiu muito e houve uma série de inciativas do governo percebidas como populistas, contra o capital estrangeiro. Me refiro à mudança abrupta do IPI para os carros importados, a incidência de IOF sobre a entrada de capitais no País e as restrições a compra de terras por estrangeiros. Eu acredito que as intervenções do governo realmente tiveram um impacto ruim, principalmente porque estamos ao lado da Argentina. A ideia de que o Brasil possa dar passos semelhantes aos do vizinho apavora os investidores. O Brasil não está no caminho populista, mas algumas iniciativas tópicas talvez mal comunicadas geraram uma percepção negativa lá fora. Já o crescimento da economia, que desacelerou e fez o Brasil perder o charme aos olhos dos estrangeiros, deve ganhar ritmo no fim do ano. Por fim, em relação à queda da taxa de juros, acho que ela deve persistir, mesmo que afugente o capital estrangeiro. Os juros precisam convergir para os padrões internacionais, assim como a meta de inflação, que deveria ser revista de 4,5% para 3,5%.
Que avaliação o senhor faz do cenário internacional neste momento?
O grande evento do mundo esse ano não é a Europa, que apenas vive mais um capítulo da mesma crise. A principal questão é a China, que sofreu uma inflexão na taxa de crescimento e o mercado agora se pergunta se é um pouso suave ou um pouso forçado. Acredito que não será um colapso generalizado, mas também não é um pouso suave, apenas uma freada para arrumação. A China está passando por uma mudança estrutural que vai fazer com que a sua taxa de crescimento fique permanentemente mais baixa. O país, que crescia entre 10% e 12 % ao ano, vai passar a crescer entre 7% e 8% nos próximos anos. Isso tem uma importância extraordinária para o mundo. Além de crescer menos, a China vai se tornar um país mais voltado para o mercado interno e mais consumista. Como isso não dá manchete, não provoca corrida bancária, as pessoas prestam menos atenção do que à Europa, onde existe uma fuga de capitais em câmera lenta. Essa é uma situação muito perigosa do ponto de vista de administração de expectativas. Mas essa é uma crise sem solução rápida, porque para ser resolvida precisaria haver a construção de uma soberania fiscal europeia que se sobrepusesse às soberanias nacionais. E isso não é fácil, porque passa pela criação de instituições, que precisariam ser ratificadas pelos parlamentos, com alterações das constituições dos países, o que levaria tempo. Já os Estados Unidos equacionaram relativamente bem as duas maiores fontes de desequilíbrio do país, que é o problema bancário e imobiliário. São questões que não estão resolvidas, mas estão bem equacionadas. O crescimento do país, não é nada extraordinário, mas é razoável. O problema lá não é econômico, e sim político. Se não forem renovados os incentivos fiscais no final do ano que vem haverá um tranco muito grande na atividade. Mas se houver bom senso político, o país manterá uma trajetória de crescimento sustentável.
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