A vitória de Fernando Haddad suscita indagações quanto ao futuro e um olhar em relação ao passado. No futuro, a nova gestão da cidade; no passado, fotografias das administrações do PT na principal vitrine do País. Há um processo a recuperar, um balanço a fazer e uma oportunidade histórica: um novo PT pode surgir olhando para trás, na perspectiva do que apreender e do que descartar de tudo que viveu. Se navegar é mais preciso que viver, recordar por que mares e tormentas se passou é também necessário. Recordar é viver. Viver e aprender.
O PT nasceu em 1980 e até a vitória de Luiza Erundina, em 1988, colecionara uma série de derrotas, pequenas e médias vitórias. São Paulo foi seu primeiro grande desafio. Há 24 anos. O Muro de Berlim ainda havia; eleição para presidente da República, não. Havia também a mística do socialismo e da revolução. Os militantes, na maioria muito jovens, cultivavam sonhos vinculados à política; acreditava-se na transformação e o "homem público", de Sennett, por aqui não declinara. O PT supunha fazer história.
De uma prefeitura destroçada pela gestão Jânio Quadros, Erundina e seus companheiros - era o tratamento usual de então - entregaram uma administração reequipada, com iniciativas criativas na saúde, na educação, na drenagem urbana e na gestão das finanças. A pretensão era ensinar ao Brasil um "modo petista de governar".
A atmosfera tinha certo encanto romântico, mas trouxe um amontoado de equívocos. Erundina parou obras, brigou com fornecedores; militantes desconfiaram de servidores; houve caça às bruxas em relação às gestões anteriores. A vontade produzia excessos. Escândalos vieram à tona: o caso Lubeca atingiu o vice da prefeita e a campanha de Lula, em 1989. A propósito, essa campanha demarca o auge e, como todo auge, o início da decadência daquele PT sem a consciência necessária para ter medo de ser feliz.
Até começar a acertar, se pagou caro pela inexperiência. As críticas vieram e o estigma pegou: era um PT de conflitos. O establishment partidário, a Articulação - ala majoritária -, disputava espaço com o grupo da prefeita, o PT Vivo - chamado Light de um modo ofensivo. Lights e xiitas eram apenas rótulos, sabemos hoje. Mas na época isso feria.
Quase tudo residia no campo da disposição do endeusado "militante", que enchia o peito de estrelinhas - como os generais - e ia à sua guerra particular. Rui Falcão, então presidente do PT municipal, tornou-se o bastião da defesa do partido contra o aburguesamento do Estado. Foi pedra no sapato de Erundina, as relações se esgarçaram. Isso ficou evidente e Maluf voltou ao Executivo, pela primeira vez por eleição direta.
A derrota doeu e ensinou que "vontade política" é tão fundamental quanto insuficiente. Política exige mais. Requer jeito, às vezes força; sagacidade, sangue-frio e doses de cinismo. O perigo é passar do ponto, tornar-se mais cínico que bem-intencionado.
Marta Suplicy ganhou sua eleição em virtude de um processo muito particular: no jogo interno do PT, a deputada das causas libertárias e da emancipação das minorias não era o que se chamava "quadro político"; nunca fora liderança. Possuía notoriedade em razão do marido famoso e de um importante programa de TV. Favorecida pela fortuna, quatro anos antes, em 1998, disputara o governo do Estado porque nenhuma das estrelas do PT - Dirceu, Genoino, Mercadante - resignara-se ao sacrifício. Quase solitária, Marta se deu bem e por um triz não foi ao 2º turno.
O desempenho ficou marcado e a candidata acumulou créditos para a particularíssima eleição seguinte: após duas gestões - não havia reeleição -, o "malufismo" entrara em colapso, produzindo o descalabro. Celso Pitta foi a Bósnia de Maluf. O PT capitaneou a oposição a Pitta - a polaridade era entre o malufismo e o petismo - e tirou proveito da CPI dos Fiscais. Venceu a eleição municipal e voltou ao Ibirapuera, em 2000.
Mas Brasil e PT não eram os mesmos de 1988: o Plano Real impusera a estabilidade e a hegemonia dos tucanos. A decepção com seguidas derrotas afetou sensibilidades: a juventude se fora e o romantismo também. Embora ideológico de retórica, o partido se fez pragmático nos métodos. Alguns heróis começam, aí, a morrer de overdose.
Ao contrário da tensão administração-partido dos tempos de Erundina, o PT controlou o governo municipal, deu cartas com lógica eleitoral, estabeleceu sua realpolitik. O apparatchik se expandiu pela gestão. Rui Falcão tornou-se o homem forte da administração. Na estratégica Secretaria do Governo, mirava a vice na chapa da pretensa reeleição de Marta, que sonhava com o Bandeirantes. Jogos de poder deixam mágoas: Hélio Bicudo e Soninha são dissidências da época.
O governo de Marta Suplicy estabeleceu marcas importantes: o Bilhete Único, os CEUs, investimentos na malha viária. Mas a lógica do partido, as "taxas de Martaxa", ao lado da personalidade mais que marcante da prefeita, puseram a perder a reeleição - feito que nem Kassab alcançou. Contrariada, Marta, ainda prefeita, foi a Paris; sua rejeição e o estigma do PT explodiram. Marta, por fim, responsabilizou o governo Lula pela derrota. Impressiona que voltasse a ser candidata.
As lições que Fernando Haddad retirará desse processo só cabem a ele. Mas nem o romantismo militante nem a lógica do partido terão serventia para ele. Um ficou irremediavelmente no passado; reeditá-lo seria tão improvável quanto um embuste; outro lhe imporia uma perigosa dinâmica de submissão e repetição de erros. O eleitor cobrará o novo, prometido pelo prefeito novo. Como o fará? Mesmo que ainda pulsem, as fotografias do tempo que passou são como a Itabira do poeta, "um quadro pendurado na parede". O melhor que poderá fazer é pintar um outro retrato.
CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA (INSPER)
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