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Entrtevista do Dia: Celso Furtado - Entrevista concedida a Veja (8/01/1997), a Rosely Forganes.


 

Veja - O senhor tem falado bastante de sua preocupação com a crise da civilização industrial. Que crise essa?

FURTADO - A crise resulta da incapacidade da Europa de resolver o problema do desemprego em massa, que já dura mais de dez anos. Não se trata de uma crise econômica, mas social. Basta ver as ruas nas festas de fim de ano, todas cheias de gente comprando.

O padrão de vida é ótimo, mesmo com a economia crescendo pouco, a uma média de 2% ao ano. No passado, uma crise conjuntural significava uma queda na produção da ordem de 15% a 20%, como em 1929. Hoje, a crise social, são milhões de pessoas que não conseguem nenhuma forma de inserção social, que estudam sem saber para que e acabam marginalizadas. A crise só será resolvida com a mudança do modelo de desenvolvimento que está em vigor. No sistema atual, todas as soluções para criar empregos foram tentadas, tanto pela esquerda como pela direita. Nada deu certo.

 

Veja - A falência gradual do Estado do bem-estar está ligada a essa crise?

FURTADO - uma crise de civilização. O Estado do bem-estar social foi a maior experiência de solidariedade que já se inventou, a grande vitória e a nobreza da democracia moderna. A sociedade assume o destino das pessoas, ninguém abandonado. A crise atual não pode continuar porque é tão grave que vai exigir mudança. Caso contrário, as coisas vão piorar, e ninguém sabe o que pode acontecer. No passado, as grandes crises levavam à guerra, como nos anos 30. Hoje a guerra não é mais solução porque destruiria a humanidade.

 

Veja - Então como sair da crise?

FURTADO - Alguma solução acabará surgindo, talvez depois de uma crise bem aguda. O sistema monetário domina tudo atualmente. A massa de liquidez é criada pelas empresas, não mais pelo Banco Central, e isso significa que não há mais como ter controle. Existe uma sensação de que algo importante está para acontecer. Mas, se a crise não for resolvida de maneira favorável, e não quero ser pessimista, vamos viver uma época de muita incerteza. O Brasil é um país alegre, preocupado com o Carnaval, e as pessoas acham que os problemas resultam apenas de governos ruins. Na verdade, são muito mais profundos.

 

Veja - O Brasil, então, também enfrenta essa crise de civilização?

FURTADO - Já está experimentando. O setor industrial, o mais dinâmico de nossa economia, não cria mais um emprego. Pelo contrário, está fechando postos de trabalho. Hoje há menos trabalhador na indústria do que há dez anos, e a população brasileira segue crescendo a uma taxa de 2% ao ano. A diferença é que a agricultura está absorvendo gente. De 1990 para cá a agricultura criou 4 milhões de empregos, o que é extraordinário, mesmo sendo de subsistência. O setor urbano deixou de criar empregos. Quer crise maior do que essa? Só que em nosso país temos um milagre: a terra. Há hoje no mundo algum país que crie empregos na agricultura?

 

Veja - Com o avanço da tecnologia, com a informática e a Internet, fala-se numa "quarta revolução industrial que incluiria o fim do comércio tradicional e até do dinheiro. O senhor concorda?

FURTADO - Há exagero, mas é verdade. A tecnologia avançou e desembocou com toda a força nas comunicações instantâneas. Hoje as operações instantâneas de câmbio movimentam 1 trilhão de dólares por dia. Essa revolução atingiu outros setores, e sua conseqüência é poupar empregos na indústria. Isso já ocorreu no passado, com a primeira revolução industrial. O artesanato e a agricultura, que empregavam entre 80% e 90% da população, foram afetados pela mecanização. Mas o desemprego que resultou dessa mudança foi compensado pelo desenvolvimento do setor industrial. Transformação curiosa: ao desorganizar o campo, a revolução industrial forçou a urbanização, o que facilitou a organização social e o nascimento do movimento sindical, que por sua vez trouxe os aumentos de salário, a modificação da distribuição de renda e o crescimento do mercado interno.

 

Veja - E quais são as conseqüências da revolução tecnológica?

FURTADO - Gera desemprego para todos os lados, e a organização sindical está debilitada. O declínio dos sindicatos é um dado fundamental para entender o mundo de hoje. É um fato gravíssimo, pois com sindicatos débeis os salários não crescem. Está surgindo, no entanto, um elemento novo, que pôde ser visto na recente greve dos caminhoneiros na França: a solidariedade da população com o movimento. Mesmo sofrendo as conseqüências, a população apoiou a paralisação, o que é incrível. Um setor está se sentindo

comprometido com os objetivos de outro. Isso indica que a sociedade está mudando, não a economia. Os grandes problemas do mundo atual, como o desemprego e a fome, são sociais, não econômicos. A Europa está abarrotada de comida, não sabe o que fazer da produção.

 

Veja - O declínio do sindicalismo é irreversível?

FURTADO - Foi o movimento sindical que criou a democracia na Europa, mudou as formas de poder.

 

Veja a diferença enorme que existe entre a primeira e a segunda metade do século XIX, quando os sindicatos se organizaram. Foram eles também que criaram o Estado do bem-estar social, que nada mais é do que o uso do Estado para disciplinar e democratizar a distribuição de renda. Em vez de ser ditada pelo mercado, a distribuição obedece a fatores políticos. Se você confiar só no mercado, vira a lei do mais forte. Se você quiser democratizar o poder político, tem de agir, como aconteceu no Estado do bem-estar.

 

Veja - O senhor acha que no Brasil o movimento sindical também é decadente?

FURTADO - Está em declínio, mas na defensiva, pois há o risco de se transformar em corporativismo. No Brasil, com tanto desemprego, subemprego e exclusão social, o mundo sindical não alcança isso. Então, se os sindicatos fazem uma greve para melhorar os

salários no ABC, os de fora vão dizer que eles são privilegiados, porque a situação está difícil para todos. Os sindicatos poderiam agir só se a economia voltasse a crescer. Com uma economia estagnada, sem criação de emprego, eles estão na defensiva. Eles correm o risco de cair no corporativismo, mas não de desaparecer.

 

Veja - Nos anos 50, o senhor foi um dos mentores da estratégia estatizante e protecionista que prosperou na América Latina. Como encara essas idéias do passado?

FURTADO - Não há idéias do passado nem do presente. Há idéias certas e idéias erradas. Para se industrializar, o Brasil necessitou de protecionismo, como ocorreu com o Japão, os Estados Unidos e a Alemanha. A teoria da indústria infantil foi formulada por um alemão que residia nos Estados Unidos. Nós, no Brasil, até tomamos tarde esse bonde.

 

Veja - O mundo se divide em grandes blocos econômicos. O senhor acha que essa tendência é irreversível e que o Mercosul, nesse contexto, tem força para se impor?

FURTADO - Quem não tem cão caça com gato. O Mercosul tem chances de progredir. Os países do norte da América do Sul, como Colômbia e Venezuela, estão em pior situação, já que o bloco deles (o Pacto Andino) gorou. Com a revolução das comunicações e dos transportes, e a unificação financeira, a formação de blocos tornou-se inevitável. Decorre de um imperativo tecnológico, uma etapa a caminho da globalização e do comércio mundial, que se tornou a força mais importante da economia internacional. O difícil é prever as conseqüências para cada país. Em regiões com um nível de vida mais homogêneo, como a Europa, as conseqüências são menos graves. Complica-se bastante onde há mais disparidades sociais, caso da América do Sul. Se os salários são muito mais baixos no Brasil do que na Argentina, como os argentinos vão concorrer? A Europa criou um sistema de compensações para isso.

 

Veja - O país que ficar de fora dos blocos está condenado ao atraso?

FURTADO - Ninguém fica de fora, entra empurrado. Ninguém quer ficar de fora, todo mundo escolhe o seu bloco. O Brasil está construindo o Mercosul, mas há uma enorme pressão para que se abra para o norte, para os Estados Unidos, como o Chile.

 

Veja - O Mercosul é a melhor opção para o Brasil?

FURTADO - É um dos blocos de mais êxito porque vários países, como a Argentina, tiveram um período longo de decadência e ao se aliar ao Brasil, com seu mercado potencial muito maior, criou-se uma dinâmica. O governo está certo em escolher o Mercosul, que pode ser ampliado com a incorporação do Chile e da Bolívia. Mais tarde veremos se é possível um entendimento em escala continental com os Estados Unidos.

 

Veja - O processo de globalização aponta para um mundo melhor?

FURTADO - Depende das políticas que venham a ser adotadas nos diferentes países. A interdependência das economias nacionais é fenômeno antigo. No período compreendido entre a II Guerra e a brutal elevação do preço do petróleo, no começo dos anos 70, o

intercâmbio internacional de mercadorias cresceu bem mais intensamente do que o produto mundial. E o de serviços cresceu ainda mais. O que se observa a partir dos 80 é a intensificação do comércio exterior sem dinamismo interno. O Brasil, com um declínio relativo de seu comércio exterior, constitui caso à parte. De toda maneira, o efeito mais evidente da globalização tem sido intensificar o intercâmbio externo e debilitar o crescimento interno, o que não parece apontar para um mundo melhor.

 

Veja - A queda do comunismo na Europa Oriental e a abertura econômica na China são a prova da vitória do liberalismo?

FURTADO - O que aconteceu foi a falência do tipo de organização econômica praticado no Leste. Eles tiveram muitas vitórias sociais, mas praticaram uma planificação que só funciona em época de guerra ou de grandes reformas. Fizeram uma economia de guerra permanente e foram perdendo produtividade. É claro que havia insatisfação, mas ela nem tinha como se expressar. Não houve nenhum levante social. A China sobrevive mais porque nunca foi totalmente planificada, sempre funcionou de modo mais descentralizado. Como se confundia socialismo com o Muro de Berlim, que era uma impostura histórica, pagou-se um preço enorme no campo das idéias socialistas.

 

Veja - Nada mais se opõe ao triunfo do liberalismo?

FURTADO - Isso vai depender da evolução da própria Europa Ocidental, que está em crise. Os ideais socialistas, que são os da solidariedade social, não foram abandonados por ninguém. O que acabou foi a prática da economia de intervenção estatal, que não se pode comparar com o que aconteceu com a União Soviética, onde o fracasso foi muito maior. É preciso criar outra forma de solidariedade social, que até agora estava ligada ao cimento do emprego. É provável que a sociedade do futuro seja parecida com a Grécia antiga, em que uma minoria trabalhava e a maioria ficava na agora fazendo discursos... Não sei que sociedade vai surgir no futuro, mas é muito provável que seja uma sociedade de lazer.

 

Veja - Quais seriam as novas fontes de renda?

FURTADO - O mercado se cria com a distribuição de renda. O problema que se criou o fetiche de que o trabalho é a única forma de renda, uma remuneração definida no mercado. Numa sociedade de bem-estar, a distribuição de renda se faz por solidariedade entre as

pessoas. O problema é o modelo de sociedade que está em jogo, e a resistência é muito grande. Toda sociedade que entra em crise é muito conservadora. O curioso que as revoluções se fazem em momentos em que o conservadorismo domina. Com a ameaça de

perder o emprego, todos se agarram ao que têm. Isso só pode ser superado com outro modelo de sociedade.

 

Veja - Esse modelo ainda não existe?

FURTADO - Não, e precisa ser inventado. Vamos ter de mudar de modelo sem apelar para uma guerra, como se fazia antigamente. O problema é que os homens não têm experiência de reconstruir uma sociedade a frio, com um projeto. E aí entramos no campo das utopias.

 

Veja - Por que o senhor acha que o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra é o mais importante movimento social brasileiro do século?

FURTADO - Porque é a única resposta significativa dada ao desemprego em massa que se está gerando no Brasil. Em parte, trata-se de recriar uma agricultura de subsistência - mas como não reconhecer que essa é uma forma de sobrevivência melhor que a marginalidade urbana? O MST é o primeiro movimento rural estruturado do país. Além disso é espontâneo, ao contrário dos outros do gênero, que eram fomentados por pequenos grupos urbanos - as Ligas Camponesas só existiam por obra de sua cúpula e acabaram quando ela foi decapitada. O MST é uma organização impressionante, com enorme poder de pressão e grandes lideranças.

 

Veja - O senhor acha que o MST está fazendo uma reforma agrária na marra?

FURTADO - Está forçando uma reforma agrária, porque o Estado está paralisado pelo Congresso. A novidade é que existe uma aceitação, por parte da opinião pública, da necessidade de reforma agrária. No tempo do Francisco Julião e das Ligas Camponesas, quem

falasse em reforma agrária era tachado de comunista e subversivo. Hoje até a TV Globo abre espaço para o assunto. A mudança se dá ao nível de sociedade, não de política - a opinião pública reconhecendo que 30 milhões de brasileiros não podem continuar vegetando, abandonados. Até a bancada ruralista, que antes era arrogante, exigente, agora está assustada.

 

Veja - A estabilidade econômica e o início das reformas estruturais mudaram a imagem do Brasil no exterior?

FURTADO - Quem vive no exterior há muitos anos, como eu, sabe que a imagem do Brasil é muito precária. Ela é marcada pela grave injustiça social, decorrente da escandalosa concentração de renda e propriedade da terra. Além disso, com as taxas de juro mais

altas do mundo, a própria comunidade financeira considera que o Brasil está na defensiva, que não tem confiança na sua política. Há um ano, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, me disse que o governo estava cuidando de mudar a política de juros. Mas nada aconteceu. Só posso atribuir isso ao medo de uma pressão externa que obrigue o Brasil a perder reservas rapidamente e ser arrastado para uma crise como a do México.

 

Veja - Quer dizer que a economia do Brasil não está tão estável quanto parece?

FURTADO - Desde a explosão da dívida externa, ficou muito difícil administrar a política monetária brasileira. O serviço da dívida não é brincadeira - é preciso mandar para fora, para pagar juros, cerca de 20 bilhões de dólares por ano. Nessa situação, é muito difícil ter uma economia estável. O governo é prisioneiro da dívida externa e só a reforma fiscal pode libertá-lo. A aparente estabilidade atual custa um preço muito alto. A inflação de 10% a 15% ao ano, embora alta para os padrões europeus, é quase necessária em uma economia tão desconjuntada quanto a brasileira.

 

Veja - Por que o Brasil não pode conciliar moeda estável e inflação zero com desenvolvimento?

FURTADO - Manter estabilidade monetária é luxo de país rico, com estrutura social homogênea. Quando se têm as disparidades regionais e sociais do Brasil, manter uma economia estável significa pagar um preço enorme - que o país vem pagando com as taxas de

juro astronômicas. O governo já cortou todos os gastos que podia cortar e sabe que a reforma fiscal é essencial. Também é preciso moralizar a administração fiscal. É uma vergonha - os brasileiros nem sabem que metade do imposto de renda não é paga.

 

Veja - O que é preciso fazer?

FURTADO - Há muita coisa a fazer, coisas simples. As mais importantes são a reforma fiscal, que dará estabilidade financeira ao Estado ao criar condições para que não se endivide, e a reforma estrutural agrária, que criará empregos de baixa capitalização. Aliás, o milagre brasileiro é que se pode colocar gente no campo com uma capitalização muito baixa, porque existe abundância de terra.

 

Veja - Ainda faz sentido dividir os países entre subdesenvolvidos e desenvolvidos?

FURTADO - A classificação ainda é válida. Mas é preciso entender como subdesenvolvido o país com marcadas desigualdades sociais. Nesse aspecto, o Brasil é mais subdesenvolvido que a Costa Rica, país centro-americano com renda per capita correspondente à metade da nossa. O Uruguai menos industrializado que o Brasil, mas mais desenvolvido, é menos socialmente heterogêneo.

 

Veja - E a abertura econômica brasileira que vem sendo promovida, com idas e vindas, nos últimos anos? O senhor acha que ela irreversível?

FURTADO - Não. Prova disso é que já fecharam alguns setores, como automóveis e brinquedos. O Brasil não pode promover uma abertura completa porque tem muita atividade econômica frágil, que se for abandonada resultará em quebradeira e desemprego ainda maior. Se nem os países da Europa podem ter uma política de abertura ampla - haja vista o policiamento do setor agrícola na França -, imagine o Brasil, onde os níveis tecnológicos da indústria são tão disparatados.

 

Veja - O senhor acha que o mercado dará conta da missão de criar mais empregos?

FURTADO - A máquina econômica não cria empregos - quem faz isso é o Estado. Nesse sentido, as privatizações são uma boa coisa, porque as empresas públicas absorvem recursos que poderiam estar sendo usados para a criação de empregos. Mas o fato é que o Estado industrializou o Brasil e nós já passamos dessa fase. Hoje, é preciso mudar a estrutura social e o modelo de desenvolvimento, abrir espaço para a criatividade em outros terrenos, criar um modelo social novo. Esse modelo está querendo mostrar a cara, mas ninguém teorizou sobre isso ainda. Ninguém apontou até agora para algo que substitua o fantástico cimento social que foi a criação de empregos pelas indústrias, empurradas pelo Estado. Mas esta civilização é muito inventiva e vai conseguir achar a resposta.

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