É curioso que uma das obras mais marcantes do conhecimento oriental tenha sido escrita por um filósofo alemão. Mas é decerto isso mesmo que faz de A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen uma leitura tão proveitosa para nós, no Ocidente. O professor Eugen Herrigel (1885-1955) interessou-se pelo misticismo oriental ainda bem jovem. Em 1924, teve a oportunidade de ser convidado a dar aulas numa universidade do Japão, onde viveu durante quase seis anos. Nesse período, dedicou-se a praticar o tiro com arco, uma tradição dos antigos guerreiros japoneses, que a chamaram de "Doutrina Magna". A bordo de raciocínios lógicos, cartesianos, Herrigel se submeteu às exigências enigmáticas de um sábio mestre-arqueiro japonês, conseguindo não apenas transformar suas próprias crenças, como também produzir uma esclarecedora narrativa sobre os princípios do zen e sua aplicação em nossas vidas.
Embora trate das dificuldades e resistências do autor durante o aprendizado da arte da arqueria, os parágrafos deste livro são como parábolas, úteis para qualquer pessoa, em qualquer situação ou contexto. Publicada originalmente em 1948, a obra não perde seu magnífico frescor. É leitura obrigatória para quem pretende começar com o pé direito no assunto, e também um manual de consulta entre os iniciados.
Já nos meus tempos de universitário, ocupava-me com o estudo do misticismo. Mas, apesar de todos os meus esforços, sempre tive consciência de que não poderia apreender os ensinamentos místicos de um ponto de vista externo. Na abundante literatura sobre o misticismo, não encontrei o que buscava. Compreendera que não havia outro caminho a não ser o da própria vivência e o do sofrimento. Se faltam essas premissas, fica apenas o inconseqüente palavrório. Assim, logo depois de ter sido designado professor-adjunto, quando me foi oferecida uma cátedra de História da Filosofia na Universidade Imperial de Tohoku, recebi a oportunidade de conhecer o Japão e os japoneses e de entrar em relação com o budismo, suas práticas contemplativas, sua mística. Eu já sabia que existiam no Japão uma tradição cuidadosamente conservada, uma prática viva do zen, uma didática consagrada pelos séculos e, mais importante ainda, mestres com assombrosa experiência na arte de orientação espiritual.
Tão logo me instalei no meu novo ambiente, tratei de concretizar os meus desejos. Um de meus colegas, professor de Direito, considerado o melhor conhecedor de tiro com arco na Universidade, me recomendou como aluno ao seu preceptor, o célebre mestre Kenzo Awa.
De início, o famoso mestre recusou o meu pedido, alegando que já se havia deixado convencer por um estrangeiro para ensiná-lo e que os resultados tinham sido muito desagradáveis. Por isso, não estava disposto a aceitar um novo pedido, pois temia prejudicar o aluno com o espírito peculiar dessa arte. Somente quando lhe assegurei que um mestre que tomava tão a sério sua missão tinha o direito de tratar-me como o mais jovem dos discípulos - porque eu não desejava aprender a arte para me divertir, mas para penetrar na Doutrina Magna -, ele me aceitou.
Desde a primeira aula fomos alertados de que o caminho que conduz à arte sem arte é áspero. Primeiramente o mestre nos mostrou os arcos japoneses e nos explicou que a extraordinária elasticidade era resultado da sua construção peculiar e das características do bambu, ou seja, do material de que eram construídos. Depois, ele nos chamou a atenção para a forma nobre que o arco tem, com quase dois metros de comprimento, quando armado com a corda, e que se manifesta de maneira surpreendente quanto mais é tensionado. "Quando estiramos a corda ao máximo", disse-nos o mestre, "o arco abarca o universo e, por isso, é importante saber curvá-lo adequadamente." Em seguida, escolheu o melhor e o mais resistente de seus arcos e, numa atitude solene, fez a corda vibrar repetidas vezes, extraindo um som ao mesmo tempo grave e agudo que, depois de se escutar algumas vezes, jamais se esquece, tão original e irresistível é a maneira como ele chega ao coração.
Depois dessa significativa introdução, o mestre nos convidou a observá-lo atentamente. Colocou uma flecha, estirou o arco de tal maneira que cheguei a temer que não resistisse a encerrar o universo e, finalmente, disparou. A cena não só pareceu muito bela, como fácil de ser imitada. Então, nos ordenou: "Façam o mesmo, mas lembrem-se de que o tiro com arco não é destinado a fortalecer os músculos. Não estirem a corda usando todas as suas forças, mas procurando dar trabalho unicamente às mãos, enquanto os músculos dos braços e dos ombros ficam relaxados, como se estivessem contemplando a ação, sem nela intervir. Somente quando tiverem aprendido isso é que cumprirão uma das condições para que o tiro se espiritualize".
Logo depois de pronunciar tais palavras, tomou minhas mãos e guiou-as lentamente pelas fases do movimento que, em seguida, teriam que executar, como para acostumar-me àquela nova experiência.
O segredo do grande mestre
Logo na primeira tentativa, realizada com um arco de resistência média, percebi que precisava empregar muita força para curvá-lo. A isso somava a dificuldade de que o centro do arco japonês, ao contrário do europeu, não se encontra na altura dos ombros, não oferecendo, por isso, uma espécie de ponto de apoio. Assim, uma vez colocada a flecha, temos que erguê-lo com os braços quase estendidos, de tal maneira que as mãos do arqueiro fiquem acima da sua cabeça. A ponta da flecha, de quase um metro de comprimento, sobressai muito pouco da borda exterior do arco, tão grande é sua envergadura.
Por conseguinte, não se pode fazer outra coisa a não ser separá-las uniformemente, à direita e à esquerda e, quanto mais se afastam uma da outra, mais descem, descrevendo curvas, até que a esquerda, que sustenta o arco, se encontra com o braço estendido à altura dos olhos, e a direita, que estira a corda, com o braço dobrado à altura da articulação do ombro.
O arqueiro deve permanecer nessa posição durante alguns momentos antes de disparar. A força necessária para sustentar o arco de maneira tão insólita fez com que minhas mãos começassem a tremer e a respiração ficasse mais difícil.
Não me é possível recordar aqueles dias sem deixar de lembrar como era árduo, no princípio, fazer com que a respiração surtisse o efeito desejado pelo mestre. Eu respirava de forma tecnicamente correta, mas quando, ao estirar o arco, me concentrava para que os músculos dos braços e dos ombros permanecessem relaxados, a musculatura das pernas se contraía independentemente. Muitas vezes, o mestre não tinha outro remédio a não ser apertar de súbito algum músculo das minhas pernas, em pontos particularmente sensíveis. Quando, numa dessas ocasiões, eu lhe disse, à guisa de desculpa, que estava me esforçando para permanecer relaxado, replicou: "Esse é seu maior erro: o senhor se esforça, só pensa nisso. Concentre-se apenas na respiração, como se não tivesse de fazer mais nada!" Passou muito tempo até que conseguisse atender suas exigências
Certa ocasião, durante uma longa conversa com o professor Komachiya, perguntei-lhe por que o mestre havia observado impassivelmente e, durante tanto tempo, meus esforços infrutíferos para estirar o arco espiritualmente. Não teria sido mais fácil que ele tivesse me ensinado, desde o princípio, a respiração certa? "Um grande mestre", respondeu-me, "tem que ser ao mesmo tempo um grande educador, pois para nós esses atributos são inseparáveis. Se o aprendizado tivesse sido iniciado com os exercícios respiratórios, jamais o senhor se convenceria da sua influência decisiva. Era preciso que o senhor naufragasse nos próprios fracassos para aceitar o colete salva-vidas que ele lhe lançou."
Certo dia, quando não encontrava mais nenhum vício na minha postura, disse-me o mestre: "Tudo o que o senhor aprendeu até agora não foram mais do que exercícios preparatórios para o disparo. Começaremos agora uma nova etapa, particularmente difícil, através da qual atingiremos um novo nível na arte do tiro com arco". Eu continuava me exercitando com afinco, segundo todos os ensinamentos do mestre, mas meus esforços eram em vão. Tive a impressão de que, antes, quando disparava com espontaneidade, obtia resultados melhores. Eu não podia abrir sem esforço a mão direita e a conseqüência era uma sacudidela que desviava a flecha no momento do disparo.
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