Confusão colorida
As cidades latino-americanas têm sido uma página em branco na qual cada geração desenhou as formas da sua utopia, habitualmente distanciando-se dos sonhos da geração ou cultura que as precedia. Não conheço outra cidade mais heterogênea na sua composição do que Santiago. Como em nenhuma outra da América Latina, pode-se ver o rastro das modas e estilos que a foram constituindo em grande metrópole com a anarquia de um plano delirante que nunca regulou nada. Uma cidade crescida sem Deus nem lei, onde convivem escondidas algumas casas coloniais entre cromados edifícios pós-modernos, lojas ordinárias com opressores supermercados assépticos e música de aeroportos, deterioração e progresso, Miami e Castilha, o jaguar e carroções puxados com tração humana.
Num livro encantador, o escritor cubano Alejo Carpentier, amante da arquitetura e com sutil formação francesa, definira as características das cidades latino-americanas como um "terceiro estilo", ou seja, "o estilo das cidades que não têm estilo". Tantas são as vozes a habitar Santiago que nenhum visitante pode levar consigo uma impressão da cidade com esse golpe emocional único que produzem metrópoles como Nova York, Paris ou Toledo.
O encanto de Santiago é confuso, matizado, colorido e muitas vezes secreto. Daí as agências de turismo considerarem Santiago quase como um trâmite. Vão do aeroporto ao hotel, e dali dispersam a sua clientela para as belezas naturais: os centros de esqui da Cordilheira dos Andes, fronteira natural e opressora que faz de nós - os chilenos - pessoas "tristes, solitárias e finais"; ou as belezas do Oceano Pacífico, com sua turbulenta majestade; ou o sul dos colonos alemães, os icebergs como templos da Antártida, os mercados indígenas de Temuco, os desertos implacavelmente siderais do Norte.
Somos poucos os que amamos esta Santiago tutti-frutti, caótica, fechada no smog durante o inverno e borbulhante de calor no verão, sem que os formais chilenos abandonem suas gravatas de burocratas nem seus paletós "decentes". Ao amparo de um boom econômico, a cidade experimentou uma febre de construção: do lado da cordilheira já há uma little Manhattan, com centenas de edifícios modernos e um animado tráfego cosmopolita. A periferia da cidade se ampliou com tal energia que, da placidez de uma capital de 1,5 milhão de habitantes na minha juventude, passou para uma massa fervente de 5 milhões de santiaguenses, todos habitantes de setores fortemente determinados pelo poderio econômico de cada um.
Por isso, a tradição de Santiago, o ponto de confluência dessa massa por momentos melancólica, por momentos arrogante, encontra-se no centro. A expansão leva os santiaguenses à dispersão e à ambição das arquiteturas pretensiosas, mas a pesquisa de uma identidade impregnada nos seus muros, praças, cinemas pobres, atrai-os para o centro.
Assim, devo confessar que o centro de Santiago é meu "aleph", o ponto onde todas as minhas emoções e lembranças confluem, meu espaço mágico. Minha esposa alemã, acostumada às harmonias européias, não pode entender minha teimosia em avançar todos os dias no caminho do centro para depositar uma carta aérea na central do Correio na Praça de Armas, para comprar uma revista estrangeira no colorido paseo Ahumada, para engraxar os sapatos em frente à Catedral, para comer um cachorro-quente completo nos estabelecimentos Bahamondes do Portal Fernández Concha. O "completo" é uma experiência que qualquer turista com estômago de ferro deveria ter. Trata-se de uma salsicha vienense, alongada sobre um pão, à qual se acrescenta tudo o que uma imaginação tropical poderia conceber: chucrute, maionese, catchup, salada de batatas com ervilhas, cebola com salsinha, purê de abacate e pimentão. Para submergir a bomba na boca é preciso tentar abri-la no mínimo uns dez centímetros e contemplar com espanto como os molhos escorrem sobre a lapela do paletó ou o peito da camisa. O estrago se contempla com o que os santiaguenses chamam um schop, ou seja, uma caneca de cerveja vendida certamente como alemã e que na verdade provém das adegas do local.
O centro, que foi sacudido pela modernidade, mantém ainda uma identidade colonial e "fim-de-século" enrustida. Continua sendo um lugar aonde as pessoas vão, a única instância em que as classes se fundem e os burocratas e suas vítimas se engravatam e fazem eternas pausas para tomar "expressos". As pequenas xícaras de café são servidas em dezenas de locais, por moças de amplos glúteos e oníricos seios que ajustam seus atributos em vestidos três números abaixo dos que realmente precisam. Além disso, usam minissaias que mais parecem publicidade de algum afrodisíaco.
No centro, as saias das mulheres são curtas e os olhares dos homens, compridos.
Apesar da modernidade me fascinar, busco no centro a convivência com os restos do passado colonial: os pátios do templo de São Francisco e as exposições das suas salas, a austeridade franciscana das suas linhas, a estreita calçada que me conduz à Casa Cobrada (Casa Vermelha) ou à Posada del Corregidor (Morada do Corregedor). Na Rua Moneda, entre as Ruas Ahumada e Bandera, pode-se ver o esforço da cidade para sobreviver às construções modernas. Ali, uma pequena e doce igreja, sem nenhuma beleza especial, debruça-se como uma lágrima entre as bochechas de dois opulentos edifícios.
A Igreja de São Francisco, em plena Alameda, é um símbolo de como a tradição se defende do desmantelamento com unhas e dentes. O estrangeiro que a contemplar verá que a avenida central tem de fazer uma dificultosa curva. Muitas vezes houve quem defendesse a sua destruição para tornar mais fluido o tráfego de veículos, mas sempre triunfou a tese de que os carros deveriam se submeter ao império desse templo que é para os santiaguenses um sinal de identidade.
Minhas ruas prediletas estão atrás da igreja. Chamam-se Paris e Londres e têm uma serena beleza, uma certa curva de frieza, um certo recolhimento, que seus arquitetos souberam acentuar com uma esplêndida iluminação. Essa era uma zona de hotéis galantes, para casais jovens ou adultos, mas não 100% legais; agora, os discretos hotéis dividem as calçadas com escritórios ou casas "decentes".
A boemia santiaguense encontra guarida em dois locais do centro. Um é o café-restaurante El Biógrafo, localizado na Rua Lastarria, a um quarteirão do Santa Luzia, um "cerro" muito vegetal, onde se encontram os amantes pobres. Daí que o poeta cubano Nicolás Guilién escrevesse: "Cerro Santa Luzia, tão culpado à noite, tão inocente de dia". Pois bem, o Biógrafo é freqüentado pelos que vão e vêm do "cerro", cineastas de sucesso e iniciantes, atrizes da moda e garotas punk, hippies, yuppies e grunges. Essa promiscuidade não deve surpreender, já que Santiago deve ser a única cidade do mundo onde nenhuma moda desaparece. Todos mantêm o estilo de vida, cabelo e roupa que usaram na juventude.
Nós, os escritores, dividimo-nos entre El Biógrafo, onde os mais maduros e céticos se sentam, e os que vão à Praça Mulato Gil, poucos metros adiante, um enxerto cultural ocupado pelos artistas mais jovens.
Ali brotou boa parte da Nova Narrativa Chilena, com homens e damas trintonas, que posicionam seus livros na lista de best-sellers chilenos e que consomem com rigor profissional o pisco-sour, nosso trago nacional, que, como tudo neste país, é um híbrido digno da atual situação política: contém pisco, uma espécie de cachaça, para deixá-lo forte; coloca-se muito gelo, para torná-lo fraco; limão, para torná-lo ácido; acrescenta-se açúcar, para que fique doce; é pedido duplo, para "conversá-lo" com os amigos; e bebe-se rápido, para repeti-lo.
Os que visitam Santiago não deveriam sair em disparada para os centros turísticos sem destinar algumas horas de imprecisa atenção ao centro: na parte ocidental da cidade escondem-se maravilhosos cités, essas pequenas ruelas fechadas por portões, que, com variadas cores e tons, representam algumas das peças arquitetônicas mais cheias de atmosfera de toda a América Latina. Os cités do lado oeste são, para minha alma romântica de santiaguense incorrigível, o que os canais são para Veneza.
E, com essa frase digna do "realismo mágico" latino-americano, despeço-me de vocês, pois devo ir ao centro.
Morros, progresso e fumaça cinza
Se o Chile está crescendo 7% ao ano e eu estou crescendo 3%, existe um problema. Estou ficando para trás. Já não tenho nem a energia nem o entusiasmo de antes. Não é questão de velhice prematura. Tem a ver com o ambiente geral. A euforia atual me deprime, me marginaliza. Já não agüento mais.
Houve uma época, não tão longínqua, em que vivíamos submergidos no centro do Terceiro Mundo. Atrasado, pobre, bananeiro. Mas tranqüilo, em escala humana. O Chile via-se a si mesmo como um país sub-desenvolvido. Já não é mais. Isso está claro. Não há volta. E mais: nesse ritmo, talvez o único caminho seja para cima. E essa meta - ser um país desenvolvido - tem um custo: viver num país em via de desenvolvimento. Em via. Ao ponto, quase, al dente. Segundo Mundo, entre o Primeiro e o Terceiro. A maldição dos que não são nem uma coisa nem outra. É crescer, crescer e crescer, e não ter tempo para amadurecer.
Santiago, nesse sentido, é a capital perfeita do Segundo Mundo. As demolições não param e as construções - que têm acabamento pontiagudo para desafiar uma regulamentação municipal e assim aproveitar a maior quantidade de metros quadrados -, tampouco. Aqui não há memória nem monumento que sejam respeitados. No meio de bairros antigos surgem pavorosos condomínios. E os supermercados, nossos novos templos, crescem em espaço cada dia maior.
A cidade de Santiago é imensa e já não cabe dentro de um vale cercado por morros e pela imponente Cordilheira dos Andes, que, sufocantemente, só é vista quando chove. Quando isso ocorre, todo o ódio que temos contra Santiago se transforma em veneração. Pena que dura tão pouco. Como um arco-íris. isto é, o smog. Essa camada de fumaça cinza que não nos deixa ver quem somos e que alguns confundem com o cheiro do progresso. Eliminá-lo seria retroceder.
Santiago é uma cidade de carros, extensa, eterna. Obviamente não tem free ways, como Los Angeles. As ruas mais largas têm quatro pistas, embora a maioria tenha duas, o que é patético. Tampouco há vagas para estacionar. Em Santiago, os congestionamentos são uma praga, as pessoas demoram mais de uma hora para chegar a suas casas, a isso se deve o infinito poder dos programas de rádio pela manhã e às sete da tarde. Além disso, todos os dias há restrição veicular: se a placa do seu carro termina em um determinado número, a ditadura urbana o proíbe de circular. Por sorte, há ônibus. Milhares e milhares de ônibus amarelos que avançam a metros por hora e ocupam todas as pistas do trânsito. O verdadeiro coração de Santiago está no corredor de um desses ônibus.
Talvez seja por tudo isso que eu tenha vendido meu carro. E fiquei um pouco recluso, no melhor bairro de toda esta cidade: Providencia. Famosa pela sua avenida cheia de butiques e lojas que agora, com o reinado dos maus suburbanos, já não é mais o que um dia foi, embora mantenha os seus cinemas, restaurantes e demasiados bares e pubs onde as pessoas vão para ver e serem vistas. Providencia é verde e antiga e, se a maioria das casas localizadas nas suas ruas escondidas foi demolida, os prédios pelo menos são baixos, dignos e, durante as tardes, o setor se enche do aroma das flores. Em Providencia há metrô, pode-se andar e tudo está próximo. A população divide-se em idosos e profissionais jovens, o que não é uma má mistura, embora as crianças façam falta.
Providencia está no sopé do Morro São Cristóvão, o morro onde termina meu romance Mala Onda e que, quase sempre, subo de bicicleta. O São Cristóvão - nosso Central Park vertical - é um imenso morro que domina a cidade. Tem piscinas, bosques, antenas de televisão, zoológico, uma escola de cachorros policiais, funicular e teleférico, além de uma imensa Virgem de cimento branca que vigia e perdoa os pecados cometidos na cidade que se move a seus pés.
Graças ao fato de que o Chile é estreito como uma adolescente com anorexia, Santiago se encontra perto de tudo (praia, campo, deserto), o que é uma bênção, salvo nos feriados. As pistas de esqui de Farrellones e Valle Nevado estão a menos de uma hora. Nos finais de semana, não é raro ver jovens com coloridos snowboards pedindo carona, querendo chegar o mais rápido possível ao alto e desligar-se de tudo o que está aqui em baixo. É claro que, no final do dia, não demoram em descer. Santiago, aos poucos, promete pouco, mas cumpre bastante. Por isso, apesar de tudo, continuo aqui.
Com as cores do coração
"Na Isla Negra tudo floresce... Neste último inverno começaram a florescer as bordadeiras de Isla Negra", escreveu Pablo Neruda em 1969 para apresentar o trabalho de um grupo de mulheres da ilha, onde ele tinha uma casa. Essa era a casa preferida de Neruda. Hoje transformada em museu, revela o gosto do poeta pelas coleções - de estátuas de proas de navios, de garrafas de vidro, de canecas de cerveja. Há, ainda, uma série de tapeçarias singelas, de motivos primitivistas em cores fortes, que guardam a ligação do poeta com a população local, tapeçarias das bordadeiras de Isla Negra.
As tapeçarias começaram a ser produzidas quando Leonor Sobrino, uma senhora da sociedade local, hoje com mais de 80 anos, preocupada com a situação econômica da população, que vivia do turismo e da pesca, decidiu reunir 16 mulheres de pescadores e incentivá-las a bordar em sacos de farinha. A única recomendação: que fossem espontâneas. As obras tiveram um resultado surpreendente. Eram de tal qualidade que, já em 1969, foram expostas no Museu Nacional de Belas Artes, em Santiago. Depois a exibição viajou o mundo. Em 1972, quando Neruda era embaixador na França, ele organizou uma exposição na Galerie du Passeur y L´Espace Cardin, em Paris, que no mesmo ano esteve no Instituto de Arte Contemporânea, em Londres. Em 1973, os trabalhos foram mostrados na Bienal de Artes de São Paulo. Depois seguiram viajando.
E o poeta escreveu: "Cada casa que conheço há trinta anos colocou para fora um bordado como uma flor. Essas casas eram antes obscuras e caladas; de repente se encheram de fios de cores, de inocência celeste, de profundidade violeta, de vermelha claridade. As bordadeiras eram povo puro e por isso bordaram com as cores do coração."
O sucesso não mudou substancialmente a vida das bordadeiras de Isla Negra. Cada tela custa cerca de US$ 160 e leva mais de um ano para ser feita. Em 1981, foi inaugurada a Fundação Isla Negra, com sede nos Estados Unidos, que compra anualmente cerca de quatro telas para exposições. Mesmo assim o grupo de mulheres não cresceu muito. Hoje, 22 senhoras trabalham com esse tipo de tapeçarias. "As jovens não se interessam pelo bordado", diz Narcisa Catalã, 65, presidente da Associação de Bordadeiras de Isla Negra.
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