14.12.1997
Justiça autoriza aborto de menina de 11 anos
O juiz Luiz Olímpio Magabeira Cardoso, da comarca de Sapucaia (RJ), autoriza a realização de um aborto em M., 11, com
uma gravidez de quatro meses fruto de um estupro. A autorização foi pedida pelo pai da menina, um agricultor pobre e analfabeto do
município. No mesmo dia, M. é internada na maternidade Fernando Magalhães, no Rio
Para entender melhor o fato:
O caso de M., grávida aos 11 anos
Você não verá o rosto nem saberá o nome da menina que se tornou a grande personagem das conversas deste Natal. M., 11 anos completados há uma semana, é uma criança negra, muito pobre, fã da Xuxa, boa aluna, que sonhava em casar, ter filhos e se tornar professora. Há quatro meses M. foi estuprada, ficou grávida e sua família resolveu fazer aborto com autorização da Justiça, que permite a interrupção da gravidez em caso de estupro e também quando a mãe corre risco de vida. Na segunda-feira passada, a autorização saiu. No mesmo dia, M. foi internada para se submeter à operação. Na terça-feira à noite, sem gritaria nem discurso, a família voltou atrás e resolveu: a criança M. terá o bebê decisão que tornará mais difícil ainda à garota conseguir diploma de professora.
“Se fosse minha filha, levava a uma clínica, abortava e pronto”, reconhece um magistrado de um tribunal superior, referindo-se à duplicidade de direitos que vigora no país nessa matéria. A gravidez de uma menina como M. é diferente. Seus pais, os agricultores Valter Oliveira e Maria da Penha, moram num casebre de barro e madeira no sítio Santa Clara, a uma hora por estrada de terra do centro de Sapucaia, grotão de 17.000 habitantes, no Rio de Janeiro. O pai, a mãe, M. e sua irmã mais velha, de 13 anos, trabalham juntos na roça colhendo jiló e berinjela, e recebe um salário mínimo para a família inteira. Falta dinheiro para o dentista, para a roupa e para a condução. Imagine se vai sobrar para um aborto. Na vida de pessoas como M., o aborto acontece em casa, com aqueles riscos que se conhecem, ou na rede pública além de cumprir todas as exigências legais, ainda é preciso achar um hospital onde os médicos não se recusem a fazer a cirurgia alegando razões de consciência. Por isso o caso de M. colocou a discussão sobre o aborto onde ela deve estar. Entre brasileiros comuns e não como um conflito entre feministas e padres em torno da votação de um artigo que pretende regulamentar o aborto em hospitais públicos. Desde 1940, quando Getúlio Vargas assinou o Código Penal, que essa autorização existe. Mas não é fácil fazer aborto na rede pública, especialmente em caso de estupro crime que a polícia tem conhecida má vontade para reconhecer.
A família tomou uma decisão acertada quando resolveu fazer o aborto queria salvar a infância de sua filha. Mas também tomou a decisão acertada quando resolveu que M. teria a criança pois ninguém pode ser obrigado a interromper uma gravidez. “Estou mais tranqüilo agora. Fiquei triste em ter de tirar uma vida, não é certo. Agora eu tenho o apoio das pessoas e soube que minha filha não corre risco de vida”, justificou o pai da menina, ao mudar de decisão. A família de M. é muito pobre, mas, embora o feto no ventre da garota se tenha transformado até em fonte de recursos, chega a ser um insulto preconceituoso dizer que tudo se fez apenas por dinheiro. Grupos católicos deram a seus pais uma TV colorida e a própria M. recebeu uma boneca de segunda mão. Também lhe foi oferecido auxílio médico, apoio psicológico e até financeiro coisa que jamais se viu na pequena casa onde mora. Militantes da comissão diocesana de defesa da vida saíram de São José dos Campos para conversar com a família. Um médico batista e sua mulher deixaram Pouso Alegre, em Minas Gerais, com a mesma finalidade. Na quarta-feira passada, uma das coordenadoras do movimento Pró-Vida, no Rio de Janeiro, o mais vigoroso no combate à regulamentação do aborto, Elizabeth Sá, 40 anos, esteve com Maria da Penha e com M. no hospital, onde ofereceu apoio à família. “Nós fazemos isso há dez anos com todas as grávidas carentes. Já temos mais de 1.000 moças”, diz ela. Na próxima semana, uma comissão irá a Sapucaia levar cobertores, roupas e mantimentos. Mas ninguém ofereceu dinheiro. “Neste caso, não há necessidade porque a família tem condições de se manter”, completa Elizabeth.
Microcesariana
Na família de M., a gravidez aos 11 anos foi uma tragédia. Um dia, quando ajudava os pais na lavoura, ela se distraiu e fez xixi nas calças. Foi para casa trocar de roupa e, na saída, encontrou um lavrador, conhecido na região por beber demais, que a dominou com socos. “Ela não contou nada. Ficou quieta durante alguns dias. Depois, os enjôos começaram. Eu queria me matar quando soube da gravidez”, lembra a mãe. O pai ficou dois dias de cama, com uma dor de cabeça insuportável. Levantou decidido: M. faria o aborto. A mãe hesitou, mas terminou cedendo. “Para um adulto, carregar uma criança é ruim. Para uma criança é pior”, diz Maria da Penha, que ficou grávida cinco vezes mas perdeu três filhos em abortos naturais. Na segunda-feira passada, o juiz de Sapucaia Luiz Olímpio Mangabeira Cardoso concedeu a autorização para o aborto, após meditar por cinco dias. “Pessoalmente sou contra o aborto. É preciso deixar bem claro que eu não determinei o aborto. Apenas autorizei”, diz.
Numa conversa com o juiz, a garota disse que não queria ter o bebê. “Sou muito criança para ter filho agora. Quero estudar antes de casar e ter filhos”, pediu. Quem protestou contra a decisão foi o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales. “Não é atribuição do juiz dirimir quem deve ser assassinado, a mãe ou o feto.” Levada no mesmo dia ao Rio de Janeiro para ser internada, M. chegou ao hospital assustada, chorando. “Ela só dizia que tinha uma coisa na barriga e ia tirá-la”, conta a médica Carmen Athayde dos Santos, diretora do hospital. A equipe médica encontrou um quadro clínico perfeito e recomendou microcesariana para a extração do feto.
O bebê e o debate
Enquanto os médicos faziam os últimos exames, os pais mudaram de idéia. Eles foram convencidos pelo padre Luiz Fraga Magalhães, da paróquia de Sapucaia, e pelo médico mineiro Altamiro Sathler. O interessante é que, se o juiz ficou em dúvida, o padre da cidade também. No começo, nem ele era enfático ao condenar a decisão de interromper a gravidez. “Sou contra o aborto, mas esse caso é diferente. A menina só tem 11 anos”, disse, no sábado, mudando de postura apenas depois de levar um puxão de orelha de seus superiores. O médico Sathler é evangélico e obstetra aposentado. Viajou 500 quilômetros com a mulher, a advogada Vera Lúcia, para impedir o aborto. Em uma conversa com o pai de M., ele contou que já tinha acompanhado a gravidez e o parto de uma menina de 9 anos. “Não há risco de vida para a menina nem para o bebê”, afirma. Sem sequer ter examinado a garota, Sathler saiu do hospital levantando dúvidas sobre a virgindade de M. “Até que ponto essa gravidez não foi resultado de outras aproximações e ainda por cima consentidas pela menina? Não posso afirmar que isso tenha acontecido com ela, mas, muitas vezes, a criança tem prazer e aceita a relação sexual.” Ao levantar essa suspeita, Sathler comete uma grosseria indevida, mas sua questão é irrelevante. O Código Penal diz que qualquer relação sexual com menores de 14 anos é considerada estupro.
“Ela é uma criança. Vai pagar algum custo por isso, mas isso depende da vida que ela teve. Ela poderia até fazer um aborto e não entender o que aconteceu. Mas não tem condições de dar conta de outra criança”, diz a sexóloga e psicóloga Rosely Sayão. “As meninas pobres em geral não têm alternativa a não ser levar a gravidez adiante. Esse é um fenômeno que se repete em mães e filhas”, diz o obstetra João Luis Pinto e Silva, chefe da maternidade do Centro de Atenção Integrada à Saúde da Mulher da Unicamp. “Ela é o retrato do abandono e da exclusão que permeiam a vida da sociedade brasileira. Foi usada e perdeu o direito à infância. Mas ninguém deve ser pressionado a fazer um aborto. Queremos é pressionar o Estado para que a mulher tenha o direito de optar”, diz Eleonora Menicucci de Oliveira, da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. Enquanto o bebê cresce na barriga de M., com o parto previsto para maio, o debate político prossegue em Brasília. Aprovado na comissão de Constituição e Justiça, o projeto de regulamentação está parado por pressão da bancada antiaborto. O debate segue em 1998.
Mais tolerância
77% da população apóia o aborto em caso de estupro
79% são a favor da interrupção da gravidez quando há risco de vida para a mãe
79% do católicos aprovam o aborto nos casos de estupro e risco de vida para a mãe
Fonte: Datafolha, a partir de pesquisa na cidade de São Paulo
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