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O CAMINHO QUE LEVA AO GRAAL

 

A busca pelo "grande romance americano" (GRA), tão perseverante e complicada quanto a do Graal, tem seu Percival contemporâneo: Thomas Pynchon, 60 anos, nascido em Long lsland, Nova York. Ao contrário do cavaleiro medieval, Pynchon de inocente não tem nada. Mas sua diligência - que os inimigos chamam de insistência - é tal, que só se pode compará-lo com figuras lendárias desse porte. Como se não bastasse, ele vive recluso, foi fotografado em raras oportunidades e se mantém alheio aos debates de seu tempo, ao menos por meio da mídia. Tudo isso lhe confere ainda mais a aura de outsider, o que ele de fato é. No entanto, o que ele quer fazer é exatamente aquilo que a América Inocente, a qual ele castiga parágrafo a parágrafo, não conseguiu fazer até hoje: definir a nação, com todas suas contradições, ilusões e atrações. Seu último rormance, Mason E Dixon (sem previsão de lançamento no Brasil), tem todos os ingredientes que caracterizam o autor da V (1963, publicado no Brasil pela Paz e Terra), Gravity´s Roinbow (1973) e Vineland (1990, publicado no Brasil pela Cia. das Letras) e tem também todos os ingredientes que o GRA parece requisitar: é literalmente grande (773 páginas), faz um panorama histórico, usa personagens típicos e, apesar das ironias e sátiras, estabelece um ponto de vista no horizonte nacional.

A metáfora do Graal não é firula do crítico. Nos romances e contos de Pynchon há sempre uma procura de algo além do alcance, ou do simples alcance material. E tal é o enredo subliminar ao american Way: busca-se a satisfação plena, indubitável, ideal - mas o que se consegue é sempre, apenas, a satisfação material e parcial, até que uma nova ilusão venha esgarçar seus limites e a procura recomece. Mas quem olha os Estados Unidos somente como o país dos arranha-céus e dos grand canyons, arrogante e triunfalista, com sua ambição de ser sempre o número 1, perde metade da história. Ciente disso, Pynchon enxerta seus cartapácios da oscilação, da polaridade que divide e dinamiza um país capaz de extremos de auto-acusação como de narcisismo. Sul e Norte. Melancólico e romântico. Mason e Dixon.

Jamais subestime a ambição de Pynchon. Sua pretensão é representar a América, em toda sua complexidade ambivalente e febril, sempre a buscar algo mais e sempre a contestar esse algo mais ao se aproximar dele. Afinal, quem você acha que é, "V" uma aventureira estranha e elusiva que Benny Profane, um inglês puritano de meia-idade, persegue vertiginosamente? O que você entende por "arco-íris da gravidade"? Qual é o "vinhedo" de Vineland? Sim, a América. Em Mason & Dixon, lançado nos Estados Unidos no ano passado e exigindo lançamento no Brasil, Pynchon já não foi tão metafórico: Charles Mason (1728-86) e Jeremiah Dixon (1733-79) São personagens históricos, dois ingleses que traçaram a fronteira entre Pensilvânia e Maryland, conhecida como linha Mason-Dixon. Antes de ir aos Estados Unidos pré-independência, eles são vistos em viagem ao Cabo da Boa Esperança; e, depois das peripécias e facécias mil na demarcação da Nova Inglaterra, voltam a seu país natal, onde a Era da Razão lhes prega ainda outra peça. Nessa trajetória encontramos Benjamin Franklin e George Washington, ouvimos debates cínicos sobre abolir a escravidão, vemos a geografia confundir-se com a geopolítica, conhecemos uma pata-robô, um cão falante e um punhado de imigrantes. Variamos entre as vozes de Mason e Dixon e lemos frases como: "Será que a Britannia, quando dorme, sonha? A América é seu sonho?" De fato, nos sentimos em meio a um pesadelo:

"Cada vez mais fiquei imaginando", diz Dixon, "se em algum lugar na Vastidão Americana haveria um Caminho, ainda não descoberto, que me levasse para fora de minha Perplexidade, para um lugar de Segurança em relação ao que era agora uma longa lista de Perseguidores. (...) Minha vida social estava aos pedaços".

Todos os temas americanos por excelência - especialmente a aventura em oposição à estabilidade, ou seja, o conhecimento em oposição à segurança - estão aí. Mason e Dixon se metem em tanta confusão que começam a pôr em dúvida a necessidade de sonhar: "Romance, você deu o melhor de si", diz um para o outro, que responde: "Ah. Mas não o pior". Na terra das comunidades esotéricas que não raro se auto-aniquilam violentamente, as ilusões são provisórias e recursivas, num ciclo continuo, como o da cobra que morde o próprio rabo; e, na visão demoníaca de Pynchon, este se torna o quinhão de toda a humanidade: logo a dupla de ingleses se sente mais americana do que os próprios americanos e percebe-se que a América é como um extremamento, um estiramento do elástico para os dois lados, de forma que sua tensão é tal, que ele pode pular a qualquer minuto.

O estilo de Pynchon é igualmente elástico para manter a peteca no ar durante toda essa viagem. Seu estoque de recursos tem poucos pares hoje em dia: humor negro, coloquialidade precisa, descrições curtas e ferinas, citações, cortes, pontuação - tudo dá a seu texto um cromatismo e uma energia formidáveis, como se Pynchon quisesse tornar seu livro tudo, menos filmável (tornando-o também quase intraduzível). Ele passeia pelos diversos gêneros e a sensação que temos de sua liberdade é incontestável. Apenas Philip Roth tem instrumental semelhante. Mas Roth tem um senso de construção dramática - de criação do clímax e sua reversão em anti-clímax - com uma empatia direta de que Pynchon não parece capaz, pois até mesmo em seus contos ele soa estratosférico, bizarramente fantasioso, aquilo que os ingleses chamam de whimsical. Pynchon tem feito uma coisa que o tempo mostrará perspicaz: ele usa um repertório científico de imagens e conceitos que muito contribui para a riqueza narrativa de seus livros. Toda história sua lida com termos como entropia, gravidade, heliocentrismo, etc., e Mason & Dixon é todo ele sobre a ansiedade humana de tudo medir e prever, de tudo demarcar e, pois, controlar. Daí a enormidade dos tombos. Aquilo que dá à América sua primazia - a ênfase na organização, na produtividade - lhe dá também seu desassossego. Há um preço alto a pagar para quem decide fundar um paraíso terreno.

Mas aqui entramos numa questão difícil. Talvez seja a miopia de nossa época que não nos permita enxergar Pynchon a uma distância nítida, e certamente sua obra se projeta para o futuro com uma evidência que não encontramos na de John Updike, por exemplo; mas qual é sua real grandeza, talvez só o futuro dirá. A literatura americana, segundo Edmund Wilson, tem duas fortes linhagens: a psicológica, de Henry James, Scott Fitzgerald e Roth, e a naturalista, de Mark Twain, Ernest Hemingway e Cormac McCarthy. A primeira fala a linguagem de Mason, a segunda, a de Dixon. Há, de uns tempos para cá, a vontade de sintetizar ambas em uma só, e dessa fusão nasceria, então, o GRA. Updike de certa forma tenta isso, más não se aprofunda nem nos contornos psicológicos (sua real vocação) nem nos entornos físicos. Norman Mailer, cuja real vocação talvez seja a da segunda linhagem,idem. Harold Brodkey - que durante 30 anos teria finalmente elaborado o GRA, mas, quando The Runaway Soul foi publicado, viu-se que não era bem assim - também buscou o Graal e não o encontrou. Pynchon é, certamente, o que mais se aproximou dele.
Mas a idéia de um romance-definidor não parece combinar com seu estilo. O que se espera sempre de um livro digno dessa classificação é um frescor, um certo gosto de pesar cada palavra com uma balança de alta sensibilidade. Assim são Memórias Póstumas de Brás Cubas, Os Sertões, e Grande Sertão: Veredas - os três grandes romances brasileiros, ainda que não tenhamos o grande romance urbano deste século. Também Twain e James tinham essa abrangência. Proust, Joyce e Mann - autores dos grandes romances europeus da modernidade - têm todos essa inventividade combinada com inteligência e cultura. O ponto não é comparar Pynchon com esses gigantes modernos, mas seus livros tendem a uma saturação e a um excesso, e flertam com o solipsismo. Seu modelo parece ser Laurence Sterne, autor de Tristram Shandy (que muito influenciou Machado, mas por sua visada elíptica), uma grande paródia moderna dos romances de cavalaria, satírica e não ambiguamente elegíaca como Don Quixote. O crítico Ezra Pound escreveu em seu ABC da Literatura que não recomendaria a ninguém escrever outro Tristram Shandy. Pynchon não lhe deu ouvidos, e seus livros são repletos de alusões, redundâncias, referências, como se ele quisesse o tempo todo encaixar sua tese das duas Américas em imagens e falas. Pound cortaria seu livro à metade e, sentimos, ele ainda assim ficaria de pé. O grande romance americano não precisa necessariamente ser um romance americano grande. Pynchon, que tanto ironiza o voluntarismo mecanicista do país, cometeu o mesmo crime de que o acusa. Ainda não demarcou suas fronteiras.

O que e quanto

Mason & Dixon, de Thomas Pynchon. Henry Holt, 773 págs., US$ 27,50

Pynchon no Brasil

V (1963), Ed. Paz e Terra

Leilão do Lote 49 (1966), Cia. das Letras
Vineland (1990). Cia. das Letras

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