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Entrevista do Dia

Em entrevista concedida a Veja (6/3/2002), dom Jayme Chemello, presidente da CNBB e expoente da ala progressista da Igreja Católica, que apóia o não pagamento da dívida externa e as invasões de terras pelo Movimento dos Sem-Terra, no campo dos costumes defende a mesma linha de pensamento da ala conservadora da Igreja Católica, condenando o sexo antes e fora do casamento, o uso de preservativos e diz que a camisinha estimula os jovens a manter relações sexuais sem estar preparados.


Veja — E então, Dom Jayme, feliz com a canonização de madre Paulina, a primeira santa brasileira?
Dom Jayme — É uma boa notícia para o Brasil, para a Igreja e para as devotas da santa, que devem estar muito felizes. Apenas para deixar claro, madre Paulina ainda não é a primeira pessoa nascida no Brasil a se tornar santa, pois ela nasceu na Itália. E nunca se naturalizou brasileira. O primeiro brasileiro nato que deve virar santo é frei Galvão, um franciscano morto no século XIX e beatificado pelo papa João Paulo II em 1998. Agora, nosso próximo passo é obter a canonização do padre Anchieta. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil queria muito que ele se tivesse tornado santo nas comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, em 2000. Ele seria ideal como primeiro santo da terra. Anchieta foi um verdadeiro herói e grande educador. Ele já é beato e pode ser venerado nos altares, mas, segundo me foi dito, o processo está incompleto.

Veja — O que falta no processo de Anchieta?
Dom Jayme — Para alguém virar santo é preciso que um dos milagres que ele praticou depois da beatificação seja reconhecido pelo Vaticano. E, no caso de Anchieta, isso ainda não ocorreu.

Veja — Nos últimos dez anos, ao mesmo tempo que quase dobrou o número de evangélicos caiu o contingente católico. Onde os senhores estão errando?
Dom Jayme — Não diria que estamos errando, mas não há dúvida de que o Brasil mudou. O país deixou de ser um lugar onde existe um pensamento único. Antigamente, quem dizia que não ia à missa era caso perdido. A pessoa se colocava à parte da sociedade. Hoje, as pessoas têm mais opção de escolha religiosa e podem ser mais autênticas. Nesse cenário estamos perdendo, sim, alguns fiéis para outras igrejas que se movimentam, buscam seguidores. Percebo isso, mas sinto também que melhoramos a qualidade de nosso fiel. O cristão católico está ficando mais maduro, dedica-se a estudar mais a religião, a teologia. Hoje, quem é católico é mesmo. E quem é ajuda mais a Igreja.

Veja — A arrecadação com o dízimo subiu em função dessa nova realidade?
Dom Jayme — Graças a Deus somos pobres. Imagine se a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tivesse muito dinheiro e o povo não tivesse. Nós temos de viver como o povo vive. Mas subiu, sim. O dízimo vem deixando de ser encarado como aquele dinheiro que é entregue porque a pessoa tem um problema de consciência e quer pagar por uma dívida moral. Resultado: o sujeito ajudava a Igreja com algum dinheiro e depois roubava em outro lugar. Chega disso. O dízimo deve ser visto como um sinal comunitário que demonstra que a pessoa está mais engajada com uma causa, indicação de que ela quer participar mais. Esse gesto está mais dentro do espírito da Igreja hoje. Há trinta anos, quando todo mundo falava que era católico, a CNBB precisava de mais verbas do exterior para sobreviver. Agora, temos de aprender a viver com o que arrecadamos aqui.

Veja — O que afasta o fiel da Igreja Católica?
Dom Jayme — Muita gente acusa como responsável a politização dos padres e bispos, mas eu penso de forma diferente. O que acontece é que muitas vezes a pessoa vai à igreja em busca de um tipo de religião espiritualista, como se o cristianismo pudesse ser visto como algo totalmente desencarnado. Essa não é a nossa linha. Perceba bem. Deus é puro espírito. Mas ele se encarnou em Jesus, tomou um corpo, uma carne, tornou-se concreto. Tinha cara de judeu. Era um homem do povo. Jesus se encarnou e veio ao encontro do ser humano e de suas realidades. A espiritualidade tal qual a concebemos encara a problemática do homem comum como um valor fundamental. Para nós é básico discutir questões como a reforma agrária e a corrupção, por
exemplo. Fazendo isso, adotando essa posição criticada por muitos, podemos perder fiéis. Mas não há dúvida de que a Igreja do Brasil se preocupa com uma discussão que leve em conta não apenas a quantidade, mas também a qualidade. Veja o que dizem as pesquisas de opinião. A Igreja Católica sempre está bem colocada quando se listam as instituições nas quais a sociedade brasileira mais confia. Isso não significa que a Igreja esteja distante de sua missão essencial, que é dar assistência espiritual às pessoas. Apenas acreditamos que esse tipo de assistência contém certos valores considerados “terrenos”, digamos assim.

Veja — Os fiéis de hoje não se assustam ao ouvir um padre falar contra o uso do preservativo ou contra o divórcio?
Dom Jayme — Essas são questões modernas, que precisam ser abordadas. O preservativo não deveria ser usado nunca. Porém é claro que podemos falar em exceção, desde que se trate de um problema específico de um casal.

Veja — Que problema específico?
Dom Jayme — Imaginemos um caso possível: um casal em que o marido tenha Aids. O que fazer nesse caso, que tipo de conselho dar? Eles devem usar o preservativo durante a relação ou não? Cabe aí uma discussão. Em determinado momento, podemos ser obrigados a dizer: “Faça o que sua consciência orienta”.

Veja — O que o senhor diria se fosse consultado?
Dom Jayme — Às vezes, como é difícil dar a resposta, a gente diz: “Faça o que sua consciência lhe permite diante de Deus”. Mas eu ressalto que o preservativo é uma coisa má porque termina liberalizando tudo, fazendo o sexo virar bagunça.

Veja — “Bagunça”?
Dom Jayme — Do jeito que o jovem lida com o sexo, ele faz coisas para as quais não está ainda maduro e não guarda nada para depois do casamento. Por essa razão, não concordo com essas políticas públicas que distribuem preservativos. De mais a mais, não existe certeza de que o preservativo evite a transmissão do vírus da Aids. Acho que, quanto menos usar, melhor.

Veja — Essa pregação não é prejudicial?
Dom Jayme — Não, porque estamos fazendo um bem ao jovem, educando-o para as coisas boas e alertando-o para se afastar daquilo que é ruim. Não podemos partir do princípio de que a palavra “liberdade” envolve apenas conceitos necessariamente bons. Os jovens que entram na criminalidade muitas vezes o fazem por causa dessa tal “liberdade”. Não podemos dizer às pessoas que elas podem usar armas, porque um dia elas atiram. Portanto, deve-se pensar muito antes de defender certos pontos de vista sob o argumento de que estão relacionados à liberdade. No caso da posição ouvida dos padres sobre o sexo durante o sermão, cabe ao fiel escolher. Ele chega à Igreja Católica, ouve que o preservativo não é algo positivo e toma a própria decisão.

Veja — Atitudes como essa não estão por trás do crescimento do número dos “sem-religião”, que acreditam em Deus mas não aceitam mais a intermediação de padres ou pastores?
Dom Jayme — Temos nos dedicado muito a estudar a modernidade, que colocou tudo dentro de casa pela TV. Coloca até o prostíbulo. As pessoas têm múltiplas escolhas e muitas vezes um padre não tem facilidade de se comunicar com o povo. Ele fala coisas dentro da igreja para as quais o povo nem liga. A moral, por exemplo, é muito difícil de abordar. Falar de preservativo. O povo não quer saber, ele diz: “Eu quero meu prazerzinho”. Hoje, o mundo virou. Tem gente que não aceita ou diz que não é capaz de cumprir os ensinamentos da Igreja. Tem gente que não consegue ficar sem sexo antes do casamento. Ou fora do matrimônio, por exemplo. É como tomar cachaça. O que adianta um padre dizer a um bêbado para ele não tomar cachaça?

Veja — O avanço evangélico ensinou alguma coisa à Igreja Católica?
Dom Jayme — Os evangélicos fazem bem o chamado acolhimento do fiel. Quando ele chega ao templo, é recebido por um grupo grande de voluntários que se juntam aos pastores durante os cultos. Eu não sei se eles conseguiriam dar esse tratamento aos seguidores se tivessem a legião de fiéis da Igreja Católica. No nosso caso, faltam padres para dar atendimento ao povo, quanto mais voluntários! Há 16 000 padres no Brasil, ou seja, um para cada grupo de 10 000 e poucas pessoas. Em alguns casos, há padres responsáveis por grupos de até 30 000 pessoas. O ideal seria ter 160 000, dez vezes mais do que temos hoje.

Veja — Os padres cantores, como Marcelo Rossi, não ajudaram a conter a migração rumo às igrejas evangélicas?
Dom Jayme — Sempre houve padres cantores na Igreja Católica. A única novidade nesse campo é que eles viraram um fenômeno de mídia. O padre Zezinho, por exemplo, canta há muito tempo. E é um bom cantor, tem músicas muito bonitas. Ele é um padre muito sólido. O que a CNBB procura sempre é fazer com que esses padres tenham mais solidez doutrinária. Fiquei muito contente porque recentemente encontrei aquele padre do Rio que diz que “Deus é 10” estudando teologia em Roma.

Veja — O padre Zeca?
Dom Jayme — É, o padre Zeca. Esses padres receberam dons de Deus e devem se aprimorar para que tenham bases teológicas de formação para ser cantores com fundamento. Para nós, não basta ter voz nem fazer aeróbica. É preciso ser um homem de Deus. Quanto ao Marcelo Rossi, a propósito de sua pergunta, nunca tive contato com ele nem tempo de ouvir o CD.

Veja — Durante o sínodo dos bispos, no fim do ano passado, o senhor criticou a centralização do poder da Igreja nas mãos do Vaticano. Por que a Igreja brasileira acredita que pode questionar Roma?
Dom Jayme — Não fiz uma crítica. Só defendi, como defendo, que nem tudo precisa passar por Roma. O papa estava lá escutando e pode ter pensado: “Que bom que o bispo está falando isso. Realmente não tem sentido mandar tudo para cá”. Eu tenho de ser assim porque é um princípio que quero que usem comigo. Se um subalterno meu só concorda comigo, ele não serve. Eu gosto que ele venha e diga o que pensa. O papa tem sido muito receptivo às minhas falas. Ele é uma pessoa ótima, eu diria até espetacular.

Veja — Mas o tema da discussão era a nomeação dos bispos. Isso não deve passar pelo Vaticano?
Dom Jayme — Eu disse que o assunto deveria continuar nas mãos do papa. Jamais questionei isso. Só acho que deveria haver uma participação maior no processo. Há um segredo muito grande envolvendo a escolha dos novos bispos. Há pessoas que deveriam ser consultadas e não são.

Veja — Os treze bispos do Maranhão divulgaram em janeiro uma carta com duras críticas ao governo de Roseana Sarney no Estado. Essa atitude não extrapola o papel da Igreja?
Dom Jayme — Eu não acho que a governadora Roseana Sarney foi criticada pelos bispos. O nome dela não foi sequer citado na carta. O que os bispos fizeram foi abordar problemas estruturais do Estado do Maranhão. O bispo local pode fazer isso, ele tem toda a autoridade para tecer comentários a respeito de sua região. E eu acho que é bom.

Veja — Dom Jayme, a análise feita sobre o Maranhão foi divulgada numa entrevista coletiva e os bispos se fizeram acompanhar de membros do PT, partido que dá sustentação à candidatura de Luís Inácio Lula da Silva.
Dom Jayme — Isso eu não vi. Muitas vezes estou do lado de pessoas do PT sem querer. Ontem no avião eu encontrei várias pessoas do PT, por exemplo.

Veja — Por que os bispos de outros Estados não divulgam documentos de análise semelhante?
Dom Jayme — Os bispos de todo o país fazem reuniões periódicas com análise de conjuntura. O documento do Maranhão chamou a atenção da imprensa porque Roseana Sarney é candidata à Presidência. Não foi desejo da CNBB fazer uso político-eleitoral das informações. O que pode estar ocorrendo é que grupos contrários a ela podem ter interesse em divulgar os fatos na imprensa para dizer: “Olha, os bispos do Maranhão estão dizendo que a Roseana não está tão bem”. O Brasil é um país pobre e tratamos dos temas mais importantes a todo instante. Isso não autoriza ninguém a dizer que estamos contra ou a favor de algum governo. O Brasil também tem problemas e quando falamos deles não quer dizer que somos contra o presidente Fernando Henrique Cardoso.

Veja — Por que a Igreja Católica não mantém esse mesmo espírito crítico quando o alvo dos debates é o PT?
Dom Jayme — Será que somos assim mesmo? No Fórum Social de Porto Alegre, do qual participei, comentei que o PT explorou um pouquinho politicamente o evento. De vez em quando, criticamos o PT também. Dom Marcelo Carvalheira, vice-presidente da CNBB, recentemente criticou o PT pela aproximação com o PL, um partido liberal e com forte presença da Igreja Universal. A proposta deles de união civil entre homossexuais também foi muito criticada por nós. Assim como a defesa do aborto. O que colabora com a confusão é que o PT faz coro com coisas que a Igreja diz há muito tempo. Falamos da reforma agrária há cinqüenta anos, quando o Lula ainda era criança. Discutimos a questão indígena desde o tempo do padre Anchieta, há séculos. E não temos culpa de o PT agora também falar sobre esses assuntos.

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