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O TRAIDOR DA NATUREZA

O poeta Manoel de Barros não se contenta com a fórmula algo manjada de ser "um fingidor (...) que chega a fingir que é dor", etc.... ainda escrevendo os poemas que vão compor seu 15° livro - Para encontrar o Azul Eu Uso Pássaros -, esse apaixonado por Freud é um enganador, que usa a natureza para despistar o leitor de uma poesia culta, informada, construída com tal rigor que chega a parecer que é inspirada. "Não acredito em inspiração, anoto tudo em um caderninho", diz. Quatro ou cinco anos depois, ele afirma, volta às anotações "para catar os poemas" que estão lá escondidos.

A maior injustiça que se pode cometer, portanto (e ela tem sido reiterada), com a obra do poeta acidentalmente pantaneiro é considerá-lo um cultor espontaneísta da natureza ou da ecologia, esse - com algumas exceções - neobobismo contemporâneo que exibe de boas intenções o que não pode expor de pensamento: "Minha obra tem um lastro da terra, mas não gosto de ser chamado de poeta ecológico - não dou muita importância a isso. Poeta é o sujeito que mexe com palavras. Tenho minha linguagem própria, que descobri, que não tem nada de ecológico". Como toda grande poesia, a de Barros trata do destino do homem, do medo da morte, da sombra da infância se projetando sobre o adulto, da busca da felicidade e conseqüente contencioso de frustrações e da face oculta de um Deus (creia-se ou não nele) que nos perseguem vida afora. Ele traduz essas preocupações em lagoas de significação plenas de imagens pantaneiras porque é essa, afinal, a sua vivência, a sua verdade. Usa essas imagens, como diz, para "esconder-se", mas acaba revelando, como queriam Freud e Machado de Assis (um dos preferidos do poeta), que "o menino é o pai do homem".

Mas é só. No mais, Manoel de Barros, descoberto para um público mais amplo por Millôr Fernandes na década de 80, é um homem cosmopolita, que bebe confessadamente nas águas turvas de onde saíram os textos cristalinos de Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé e Ezra Pound, entre outros. Desse universo e das memórias de um menino antigo vai tecendo os seus cantos, como o poema - Fragmento 14 - que comporá o novo livro, cedido a BRAVO! com exclusividade (leia nas páginas adiante). Tomando "um uisquezinho" para tentar se livrar da depressão que lhe traz o crepúsculo, Manoel de Barros recebeu a reportagem em sua casa, em Campo Grande, para a entrevista que segue, toda ela anotada a caneta. O poeta não permitiu que a conversa fosse gravada porque não fala "com ferros".

BRAVO!: A natureza, em sua poesia, é só pretexto para o sr. estabelecer relações de pensamento, ilações filosóficas. O sr. é um falso poeta da natureza?

Manoel de Barros: Minha obra tem um lastro da terra, mas não gosto de ser chamado de poeta ecológico - não dou muita importância a isso. Poeta é o sujeito que mexe com palavras. Tenho minha linguagem própria, que descobri, que não tem nada de ecológico. Fui criado no Pantanal, onde vivi até os 8 anos. Se as palavras que me chegam mais comumente são do brejo, é devido ao meu lastro existencial, que reflete um pouco a terra. Nossa vivência, principalmente nossa infância, é o que a gente carrega para o resto da vida. Tenho um lastro de coisas ínfimas, mas sou principalmente criado pelas palavras. Elas inventam a gente mais do que a gente a elas. Elas me ocorrem. Costumo dizer que só tenho 81 anos e muita infância para trás. O livro está dentro da gente. Tenho a convicção de que a poesia começa no desconhecer, no subconsciente, e não a partir da sabedoria.

O sr., com uma apreensão cínica da natureza, e Adélia Prado, com uma apreensão cínica do catolicismo, se igualam no alheamento em relação aos temas ditos modernos. O sr. vê essa proximidade entre ambos?

Sim. O que faço é metalinguagem. Tenho a pretensão de que meu personagem principal seja a palavra. O poeta precisa descobrir a linguagem para não imitar os outros. Em poesia, a razão não está com nada, a insensatez funciona melhor. Por trás da criação, não está a teoria, mas minha vivência.

Em entrevista à revista República, o crítico Wilson Martins cita a sua poesia como exemplo de superfaturamento crítico. Ele afirma que o sr. não faz poesia, mas expõe tiradas filosóficas. Ao escrever, o sr. projeta sua intenção apenas no que diz ou também na forma como diz?

Expresso-me especialmente pela forma de dizer. Assunto é coisa banal. Roland Barthes dizia que o que se sabe hoje do homem, Cristo já sabia e dizia melhor do que nós: suas palavras carregavam a eternidade. Não tenho nenhuma intenção de ser um filósofo. Tenho muito gosto é pela maneira de dizer. Meu gozar é no fazer verso. Sou um homem de idade, tenho uma sabedoria que a idade me deu. Posso julgar de uma maneira pessoal, e não pela leitura. O homem vai ficando velho e sábio. Adivinhar vem do verbo latino divinare, que guarda semelhança com o divino.

O sr. sempre diz que seu primeiro livro é o melhor. Por que continuar então?

A evolução de meu trabalho em relação ao primeiro livro é lingüística. Também me tornei mais fragmentado, o que é conseqüência do mundo moderno, sem ideologias. Com o tempo, a gente perde a unidade divina.

O sr. disse que sua poesia é 10% mentira e 90% invenção. Além de ser uma frase de efeito de um poeta, o que isso quer dizer realmente?

Quando você chegou a minha casa, eu poderia ter dito que estava retornando de um bar. Seria mentira. Já a invenção tem a ver com nosso interior, com nossas frustrações. A imaginação busca essas coisas para poder reluzir. Não sou um sujeito doente, um esquizofrênico, porque ponho meus conflitos para fora por meio da escrita. Minha poesia não é cerebral. Não sou um concretista. O concretismo já está no fim. Nem é má vontade minha. Eles são chatos mesmo. Acuso-me por não poder gostar daquele troço.

O poeta latino Horácio dizia que é preciso limar o poema até que ele chegue ao ponto, mas advertia de que não se deve lapidar demais para que não fique falso. O sr. segue essas recomendações?

Eu mudo bastante, lapido os poemas. Não acredito em inspiração. Primeiro, anoto tudo em meu pequeno caderninho, juntando minhas experiências existenciais e lingüísticas. Quando termina essa fase, que dura dois, três, quatro anos, vou aos cadernos para catar os poemas e dar-lhes a forma definitiva. Escrevo a mão e a lápis. Jamais rabisco; uso borracha e desmancho. Escrevo as coisas, junto durante algum tempo e depois cato os trechos e monto o poema. Para o novo livro, por exemplo, criei o poema Jogo de Amar em 12 partes. O trabalho do poeta é esse.

O sr. é lido como um Guimarães Rosa da poesia. Ocorre que sua poesia parece intencionalmente mais culta do que a apreensão que Rosa fazia do homem sertanejo. Embora houvesse na obra dele muita elaboração, havia uma tentativa de esconder essa apreensão...

Tenho muita parecença com o Rosa. Nós temos uma relação saudável com a linguagem erudita. Porém ele mostra mais o caipirismo, e eu mostro mais o meu lado de leitor. Mas ele era muito mais culto do que eu. Tive uma convivência pequena com ele. Ele também tinha um caderninho onde anotava as coisas que via, era muito descritivo.

Com a poesia de quem dialogam os poemas de Manoel de Barros?

Sou leitor de Guimarães Rosa. Gosto de João Cabral de Melo Neto, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa e Camões. Leio muito o Padre Vieira. Foi ele que me desvirginou para a linguagem, foi meu iniciador. Dos estrangeiros, Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Pascal, Montesquieu, Rabelais e Proust estão entre os autores de que mais gosto. Sou muito apegado à literatura de língua francesa. Morei um ano nos Estados Unidos, onde tomei gosto pela literatura de língua inglesa, especialmente T. S. Eliot, Ezra Pound e Stephen Spender.

O sr. é parte de uma tradição literária brasileira?

Não, eu criei um estilo próprio. Já me chamaram de poeta da geração de 45, mas não aceito isso. Eles queriam tornar a linguagem uma coisa imaculada. Sou um estuprador da gramática.

O que faz um homem culto viver recluso em Campo Grande? É timidez? O sr. teme se expor?

Eu não me sinto isolado. Tenho apartamento no Rio, leio jornal, assisto aos noticiários e debates da TV, leio os jornais do Rio e São Paulo, estou antenado. Assisto até a novelas. Em Campo Grande, a gente tem de tudo. Só não tem livro que preste, mas pode-se encomendá-lo rapidamente. Uma vez abri uma livraria junto com minha filha e minha mulher. Os amigos aconselharam-me a vender best sellers, mas encomendei apenas Machado, Joyce, Vieira, Euclydes da Cunha, coisas que enriquecem a sensibilidade. A obra completa de Proust, por exemplo, passou-se um ano sem ninguém comprar. Encomendei a obra de Joyce, ninguém comprou. Vendia dicionários, algum José de Alencar, Machado, mas era só. Desisti.

O sr. se vê longe dos acontecimentos culturais?

Considero um privilégio ter em Campo Grande uma disponibilidade para a leitura que o ritmo de outras cidades talvez não oferecesse. Mas não tenho buscado nada novo, estou sempre relendo minhas principais influências. Aqui não tem teatro, o que faz bastante falta. Já os cinemas geralmente exibem somente filmes de bangue-bangue. Vi todos os filmes iranianos. Também gosto muito do cinema italiano, Fellini, Antonioni, Vittorio de Sica (especialmente Ladrões de Bicicleta), e também do francês. Gostei muito daquela produção da Croácia, Antes da Chuva. Charles Chaplin para mim é o gênio do século. Jim Jarmush é outro grande diretor, mas parece que Hollywood prefere deixar os independentes de lado.

Apesar de se manter distante de polêmicas, sua poesia é saliente ao exibir uma maneira de ver o mundo. O sr. se sente um provocador?

Não, de modo algum. Sou um inocente nesse negócio. Não tenho a intenção de ofender nem provocar. Minha poesia é muito intuitiva. Quisera que fosse mais primitiva! Eu li livros de mitologia indígena e vivi muitos anos com índios chiquititos, da Bolívia. Gostava de tomar chicha - uma aguardente de milho - e pescar. Eu tinha fascinação pelas línguas primitivas indígenas. Eles, primeiro que a gente, fizeram árvore virar tatu, criança nascer de árvore. O poeta é um inocente que é ligado a essas coisas primitivas, apesar dos estudamentos.

O poeta Mário Faustino chegou a criticar Carlos Drummond de Andrade por este não participar dos debates estéticos de sua época. O sr. também evita discussões. Esses debates são inúteis?

Para a poesia, sim. Um professor de poesia não está com nada, pois ela não pode ser ensinada. Quando combino o sentido com o ritmo das palavras para produzir uma ressonância verbal, essa habilidade é produto de um dom, é uma coisa que se recebe. O estudo pode aprimorar.

Seus poemas parecem recorrer sempre a uma certa obsolescência do mundo que o cerca. São metáforas das inutilidades humanas?

Faço poesia sem importância. Tenho esse jeito de cabeça baixa. Acho que nasci com o olhar para baixo. Tenho uma revolta contra a injustiça social. São os pobres seres que me fascinam. Sou uma pessoa que se liga muito ao pobre ser humano - inclusive metaforicamente - como a pobreza de um milionário com dor de corno. Fascina-me explorar coisas e seres desimportantes.

O sr. acredita num mundo transcendente?
Sou absolutamente crente em Deus. Acredito no transcendente. Acho que nós temos de ser religados à natureza. Religião vem do verbo latino religare. Sou católico a meu modo.

Obra completa

Poemas Concebidos sem Pecado - 1937

Face Imóvel - 1942

Poesias - 1956

Compêndio para Uso dos Pássaros - 1960

Gramática Expositiva do Chão - 1966

Matéria de Poesia - 1970

Arranjos para Assobio - 1980

Livro de Pré-Coisas - 1985

O Guardador de Águas - 1989

Gramática Expositiva do Chão (Poesia Quase Toda) - 1990

Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave - 1991

O Livro das Ignorãças - 1993
Livro sobre Nada - 1996

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