Mentora da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, a inglesa Liz Calder ri ao se lembrar da euforia e do nervosismo da primeira edição, quando os visitantes eram esperados às centenas, mas vieram aos milhares. Calder, que ajudou a fundar a Flip em 2003, diz que continua se impressionando com o crescimento vertiginoso da festa. O público dos debates foi de cerca de 20 mil pessoas no ano passado, contra 6 mil no primeiro ano.
Primeiro festival literário do Brasil, a Flip chega a sua décima edição em julho. Inspirou festivais em outras cidades brasileiras, como Porto de Galinhas (Fliporto), Ouro Preto (Flop) e Poços de Caldas (Flipoços).
Em entrevista à BBC Brasil em Londres, Calder diz que o sucesso de Harry Potter contribuiu indiretamente para viabilizar a Flip. As vendas estrondosas da série de J.K. Rowling catapultaram os lucros da Bloomsbury, editora que Calder ajudou a fundar, e os lucros viabilizaram um patrocínio para as primeiras edições da feira.
Conhecida por ter editado os primeiros livros de autores como Salman Rushdie e Julian Barnes - além de J.K. Rowling - Liz tem ligação com o Brasil desde os anos 1960, quando morou no Rio durante quatro anos.
A programação da Flip deste ano foi divulgada nesta quinta-feira e inclui nomes como Jonathan Franzen, Le Clézio, Ian McEwan, Enrique Vila-Matas e Adonis. O homenageado será o poeta Carlos Drummond de Andrade.
BBC Brasil - Como você descreveria hoje a primeira edição da Flip, em 2003?
Calder - A primeira Flip foi uma surpresa completa para nós. Até o mês anterior ao festival, esperávamos não mais que algumas centenas de visitantes. Tínhamos uma sala na Casa da Cultura com espaço para cerca de 200 pessoas, e isso era tudo. Mas estávamos trazendo nomes muito bons, como Eric Hobsbawm, Julian Barnes e Hanif Kureishi.
Quando esses nomes foram anunciados, despertaram um interesse enorme, foi um alvoroço. Logo percebemos que não seriam centenas, e sim milhares de pessoas. No fim das contas, 6 mil pessoas vieram.
Então foi assim, caótica, empolgante, absolutamente mágica, porque de repente todo mundo percebeu o que estava acontecendo. O público ficou muito entusiasmado e perseguiu alguns dos escritores pelas ruas. A cidade toda já estava infectada pela Flip-mania. Foi ao mesmo tempo emocionante e nos deixou muito ansiosos, porque mal sabíamos o que fazer com tanta gente.
BBC Brasil - O que te levou a participar da criação de um festival literário no Brasil?
Calder - Eu sempre gostei muito de festivais literários internacionais, onde pessoas do mundo todo podem se encontrar e conversar sobre seus livros. Tendo conhecido Paraty, um lugar tão maravilhoso e cheio de restaurantes, bares, hotéis e pousadas, me ocorreu que seria uma cidade perfeita para um festival.
Isso foi ainda no início dos anos 1990. Eu estava publicando alguns autores brasileiros na época, como Chico Buarque, Rubem Fonseca, Patrícia Melo e Milton Hatoum. Levamos um grupo deles para Hay-on-Wye (cidade inglesa onde é realizado o prestigiado Hay Festival) e foi lá que a ideia realmente nos pegou (em 1997).
O Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, e o Mauro Munhoz, que hoje dirige a Casa Azul (ONG que realiza a Flip), estavam conosco e todos embarcaram na ideia. Juntos começamos a planejar.
BBC Brasil - Quando a Flip começou você estava na Bloomsbury, que lucrava com os livros do Harry Potter. Isso contribuiu para a Flip?
Calder - Sim. Quando começamos a publicar os livros do Harry Potter, a sorte da Bloosmbury mudou. Deixou de ser "ok" para ser um sucesso estrondoso. E a Bloomsbury ajudou muito a Flip no início. O presidente da editora veio nas duas primeiras edições e foi um dos nossos primeiros patrocinadores. Obviamente isso também me beneficiou porque eu era uma das diretoras, então isso me permitiu ir e vir ao Brasil muito mais do que eu poderia antes. Então acho que podemos agradecer ao Harry Potter.
Eu queria muito convencer a J.K. Rowling (autora dos livros do Harry Potter) a vir para o festival, mas para ela é difícil ir para esse tipo de evento, porque seria engolida.
BBC Brasil - E como você vê a Flip hoje, crescida, chegando a sua décima edição?
Calder - A festa cresceu mais do que nossas expectativas mais ousadas. No início, as pessoas me perguntavam se a Flip deveria crescer ou não, e eu sempre dizia que não, mas claro que continuou crescendo.
Mas conseguiu manter algo do sentimento e do espírito originais, e espero que sempre consiga. Acho que isso tem a ver com a natureza de Paraty. A festa se expandiu o máximo que pode geograficamente, e agora não se pode ir muito além, a não ser que se entre no mar.
Não pode acontecer como em Hay-on-Wye. O festival sempre era na realizado na vila, mas se tornou tão grande que já não comportava, e uns cinco anos atrás se mudou para um campo a uns 10 km da cidade. A vila pequena e charmosa era parte da atmosfera. É como se a Flip decidisse descer a estrada e sair de Paraty, não seria a mesma coisa. Acho que a festa não deve crescer além do tamanho a que chegou hoje.
BBC Brasil - E hoje há filhotes da Flip em várias cidades brasileiras. Como você vê essa influência?
Calder - Acho bom que esteja se espalhando. Espero que continue assim, porque há claramente um apetite (para isso). Também há que se dizer que Paraty é um atrativo especial. É como uma recompensa extra para os visitantes. Você não está apenas tendo uma experiência rica e prazerosa ouvindo os autores, mas está neste lugar estonteante.
Encontrar o lugar certo é muito importante, mas certamente há muitos lugares no Brasil onde eles (outros festivais) vão surgir e prosperar. E hoje a Flip é organizada inteiramente por brasileiros. No início, nós (ela e o marido, o cofundador da Flip Louis Baum) estávamos mais envolvidos.
BBC Brasil - Na festa que celebra os dez anos do festival, quais serão os principais destaques?
Calder - É um aniversário significativo, e será comemorado com alguns eventos especiais. E teremos diversas pessoas que estamos querendo trazer há anos, como o Javier Cercas, um escritor espanhol maravilhoso. Eu pessoalmente estou encantada com a vinda da Jennifer Egan, porque seu livro, A visita cruel do tempo, é simplesmente ótimo. E o Jonathan Franzen (autor de Liberdade) é um ótimo nome.
Também teremos escritores como Hanif Kureishi, que participou da primeira edição, e Ian McEwan, que estava na segunda. Como eles estão voltando, vai ser interessante ver a impressão que terão do festival hoje. O programa deste ano tem uma mistura muito forte, com brasileiros muito interessantes e um grupo eclético de visitantes do exterior.
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