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NOVA ESCOLA - No livro Cultura Escrita e Educação, a senhora
afirma que adora pesquisar e descobrir que entendeu algo que a intrigava. O que
a deixa intrigada atualmente?
Emilia Ferreiro - Continuo tentando compreender melhor o
funcionamento dos sistemas e das tecnologias de escrita. Indagações surgem a
respeito dos modos de comunicação e estilos que estão sendo criados. Um exemplo
é o chat, que parece um intercâmbio informal, cara a cara, só que por texto.
Outro é o e-mail, que não é uma carta em papel nem um telegrama. Essas novas
formas de diálogo possuem propriedades que não conhecemos. São temas a ser pesquisados,
assim como a interface entre a aquisição da escrita com letras e com números...
NE - Como isso se dá?
EMILIA - As duas são ensinadas simultaneamente porque a
escola e o ambiente pedem. Já conhecemos bastante o sistema de aquisição da
leitura com letras e a maneira de escrever números em situações vinculadas a
representações de quantidade. Quero averiguar como se descobre quando usar um
ou outro. Quando escrevo casa, leio casa e posso traduzir para house, se souber
inglês. No entanto, se escrevo 5, posso ler cinco ou five. nesse caso não está
escrito o nome do número mas o sentido que ele passa. E esse sentido pode ser
passado em qualquer língua. Não posso redigir a palavra casa com números, mas a
palavra cinco posso escrever também com um algarismo. É interessante ver como
crianças muito pequenas, de 4 ou 5 anos, lidam com isso.
NE - O professor deve tentar desvendar problemas em seu
dia-a-dia?
EMILIA - Não. O ofício do pesquisador e o do professor são
distintos. Digo isso porque exerço os dois. Quando estou ensinando, minha
atitude sobre os problemas é diferente da que tenho quando estou pesquisando. É
importante ensinar os alunos a pesquisar, mas isso é parte de meu trabalho de
professora.
NE - Mas não é também papel do docente buscar novos
conhecimentos?
EMILIA - Com certeza. Só que isso é diferente de pesquisar.
Querer saber sempre mais deve ser próprio de qualquer profissional. Um médico
também tem de se atualizar e não se contentar com o que aprendeu na
universidade. Se não há uma certa inquietude em
continuar descobrindo coisas novas terminamos repetindo as
antigas – e o que era válido há vinte anos não continua necessariamente bom
hoje.
NE - O significado de saber ler e escrever também muda com o
tempo?
EMILIA - Usamos esses mesmos verbos na Grécia clássica, na
Idade Média, na revolução industrial ou na era da internet. Por isso, temos a
impressão de que designam a mesma coisa. O real significado, no entanto, vem se
modificando. Ambos têm a ver com marcas visuais, mas o que se espera do leitor
é determinado socialmente, numa certa época ou cultura. Na Antigüidade clássica
não se esperava o mesmo que no século XVIII, nem o que se espera agora.
NE - O que determina a eficiência de um leitor na era da
internet?
EMILIA - O trabalho na internet exige rapidez na leitura e
muita seletividade, porque não se pode ler tudo o que está na tela. E a
capacidade de selecionar não é algo que, há alguns anos, fosse uma exigência
importante na formação do leitor. No contexto escolar, não tinha lugar preponderante
mesmo. Na rede mundial de computadores, as páginas estão cheias de coisas que
não têm relação com o que procuro e existe a possibilidade de um texto me
conduzir a outros por meio de um click. Além disso, quando tenho um livro em
mãos e o abro em qualquer página, sei claramente se é o começo, o meio ou o
fim. Quando abro uma página na internet nemsempre tenho noção de onde estou.
NE - Mas os jovens têm facilidade para se adaptar a essas
mudanças...
EMILIA - Eles aprenderam a usar a internet sozinhos e
rapidamente, sem instrução escolar nem paraescolar. Eles conhecem essa
tecnologia melhor que os adultos – os alunos sabem mais do que seus mestres.
Essa é uma situação de grande potencial educativo, porque o professor pode
dizer: "Sobre isso eu não sei nada. Você me ensina?" A possibilidade
de uma relação educativa realmente dialógica é fantástica. Mas o docente não
está acostumado a fazer isso e, num primeiro momento, fica com muito medo de
não poder ensinar. Em casa, ele recorre aos filhos. No espaço público, na
escola, ele tem mais dificuldades.
NE - Além da questão tecnológica, existe a da língua. A
senhora acha que quem não souber inglês será um analfabeto NEsta era da
internet ?
EMILIA - É preciso aprender o inglês, sem dúvida, mas não só
esse idioma. Nestes tempos de globalização, vemos ao mesmo tempo um movimento
de homogeneização (de um lado) e grupos que manifestam um desejo de manter a
própria identidade (de outro). As duas coisas estão funcionando
simultaneamente. No início da internet tínhamos a impressão de que ela seria
uma das tantas maneiras de converter o inglês na única língua de comunicação.
Hoje a situação mudou bastante. Há cada vez mais uma diversidade de idiomas na
rede. Temos duas direções a seguir: consultar somente sites na nossa língua ou
tomar consciência de que a rede nos dá acesso, por exemplo, a jornais escritos
em países distintos – e procurar entendê-los.
NE - Voltando à alfabetização, o livro Psicogênese da Língua
Escrita foi lançado no Brasil em 1985 e causou uma revolução. Como a senhora
avaliação a repercussão da teoria ali contida?
EMILIA - As mudanças educativas são lentas. É muito fácil
transformar uma escola pequena, privada, que tenha desejo de evolução. Mas num
sistema educativo municipal ou estadual é mais difícil. Tendo em conta a
complexidade da realidade brasileira e levando em consideração que a difusão da
teoria não foi similar em todas as regiões, eu diria que já aconteceram muitas
coisas por aqui.
NE - Quais as mais significativas?
EMILIA - No Brasil havia uma espécie de obsessão em montar
turmas homogêneas. Tenho a impressão de que esse não é mais um problema. E se
isso realmente aconteceu, é um grande avanço. A homogeneidade é um mito que
nunca se alcança. Eu posso aplicar uma prova, dizer que vinte estudantes são
iguaizinhos e colocá-los todos juntos para trabalhar. Daqui a uma semana eles
não serão mais iguais, porque os ritmos de desenvolvimento são muito variados.
Uma coisa são os ritmos individuais, outra, as etapas de desenvolvimento.
NE - Com relação às etapas de desenvolvimento, você crê que
sua importância já foi assimilada?
EMILIA - Num primeiro momento, houve apenas a troca de
rótulos. Os fracos passaram a ser chamados de pré-silábicos. Os que estavam no
meio do processo eram os silábicos e os que eram fortes foram classificados
como alfabéticos. Alguns anos depois ficou mais claro que os rótulos novos
permitiam ver de outra maneira o progresso das crianças, mostravam que elas
estavam aprendendo. É desesperador estar diante de um aluno e dizer "ele
não sabe", "ele ainda não sabe". Quando se pode visualizar as
mudanças como um progresso na aprendizagem, tudo muda. Primeiro porque o
esforço de aprender é reconhecido; segundo porque há a satisfação de ver avanços
onde antes não se enxergava nada.
NE - Ainda hoje chegam cartas à redação de NOVA ESCOLA
perguntando qual a idade ideal para iniciar a alfabetização...
EMILIA - Constatei que, atuando de forma inteligente,
pode-se alfabetizar aos 5 anos, aos 6 ou aos 7. É preciso oferecer oportunidade
para os menores. Alguns vão aprender muito, outros nem tanto. A idéia de que
eu, adulto, determino a idade com que alguém vai aprender a escrever é parte da
onipotência do sistema escolar que decide em que dia e a que horas algo vai
começar. Isso não existe. As crianças têm o mau costume de não pedir permissão
para começar a aprender.
NE - O que um alfabetizador não pode deixar de fazer em
classe?
EMILIA - Ler em voz alta. Especialmente se as turmas forem
pobres, vindas de lugares em que há poucas pessoas letradas. Essa poderá ser a
primeira vez que ela passam por uma xperiência assim. O texto, no entanto, tem
de ser bom e lido com convencimento. Esse aluno de 6 ou 7 anos vai presenciar
um ato quase mágico. Vai escutar um idioma conhecido e ao mesmo tempo
desconhecido, porque a língua, quando escrita, é diferente. Essa maneira de
trabalhar é muito melhor do que usar as cartilhas e as famílias silábicas.
NE - As cartilhas, aliás, já não são usadas como antigamente.
EMILIA - Certa vez um editor brasileiro me acusou de estar
arruinando o negócio de cartilhas, e parece que ele tinha razão. Se tenho mesmo
relação com a queda na produção desses livros, estou muito orgulhosa. Eles eram
de péssima qualidade, horríveis, assustadores. Eram pura bobagem. Apesar disso,
há vinte anos parecia um sacrilégio, no Brasil, dizer que a família silábica
não era a melhor maneira de trabalhar. Tenho a impressão de que isso mudou e de
que esse é um caminho sem volta. Para ensinar a ler e escrever é necessário
utilizar diferentes materiais. Um livro só não basta. É preciso utilizar livro,
revista, jornal, calendário, agenda, caderno, um conjunto de superfícies sobre
as quais se escreve. A maneira como um jornal é redigido não é a mesma que se
encontra num livro de Geografia ou História.
NE - Como deve agir o professor em áreas rurais, onde o
contato com a língua escrita é muito menor?
EMILIA - Ele não pode desperdiçar nem um minuto do tempo em
que sua turma está na escola, porque cada minuto é muito precioso. Terminado o
período da aula, o contato com a escrita quase desaparece, sobretudo se for
numa região em que não haja maquinários sofisticados, que exigem a leitura de
manuais, ou onde materiais impressos praticamente não existam.
NE - Como a senhora avalia a alfabetização na América
Latina?
EMILIA -A América Latina está conseguindo levar praticamente
todas as crianças para a escola, mas nem todas continuam estudando nem aprendem
algo que justifique sua permanência ali.
NE - Ou seja, ainda há o risco de o continente continuar
formando analfabetos funcionais.
EMILIA - Esse problema ocorre no mundo inteiro, ainda que
com nomes diferentes. Na França, por exemplo, há uma distinção entre o iletrado
e o analfabeto. Este não teve uma escolaridade suficientemente prolongada. O
primeiro teve essa oportunidade, mas não pratica nem a leitura nem a escrita.
Então, poucos anos mais tarde, lê com dificuldade e evita escrever. Países que
já resolveram o problema da escolaridade obrigatória têm iletrados; os que não
possibilitaram à população a escolaridade básica têm analfabetos.
NE - O Brasil encontrou o caminho para combater esse
problema?
EMILIA - No Brasil, aparentemente, está em curso uma mudança
sensível em relação à escolarização. Muito mais crianças e jovens em idade
escolar estão nas salas de aula. Esse é o primeiro passo. Agora, vem o mais
importante: desafio da qualidade, da aprendizagem. Não basta ocupar todas as
carteiras. É preciso ensinar.
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