Frei David, presidente da ONG Educafro (Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes), é um notório criador de caso. Também é um tanto amostrado. Já tive a chance de debater com ele na Associação Comercial de São Paulo. Fiquei, como perceberam então os presentes, vivamente impressionado com o sua relação, com o direi?, muito pouco íntima com a Bíblia. Isso não me causaria espécie não fosse ele um frei… Como eu não sou, acho de bom tom que freis tenham São Paulo, o apóstolo, na ponta da língua. Tenho cá certas ortodoxias. Espero que, depois do nosso encontro, ele tenha se interessado pela Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios.
Já escrevi algumas vezes sobre a Educafro, que recebe bolsas de estudo de várias instituições universitárias e as distribui entre seus filiados. O “vestibular” privado da Educafro consiste numa espécie de lista de tarefas. Quem cumpre um maior número faz mais pontos e ganha a bolsa. Parece que muita gente prefere fazer as vontades de frei David para ficar fora do seu radar. Como eu não me importo que ele saiba o que penso e como já tive a chance de lhe dizer, então aponto, sim, sua vocação autoritária, que se revela mais uma vez.
Vocês lerão uma história impressionante. Ela ilustra como poucas o que tenho chamado de sindicalização do espírito. Um estilista e um cabeleireiro estão sendo literalmente assediados moralmente por frei David. Resolveram denunciar num desfile de moda o racismo que consideram remanescente, mas frei David, que se acha o dono da causa, não gostou. Pior: ele reconhece que os dois não fizeram nada de errado. Mesmo assim, exige desculpas. Com que direito e com base em qual fundamento? Leiam o que vai na VEJA.com. Volto depois.
Por Raquel Carneiro:
O penteado usado pelas modelos que desfilaram a coleção de Ronaldo Fraga na São Paulo Fashion Week, feito de palha de aço, não teve a intenção de ser preconceituoso, mas foi infeliz por usar um elemento racista. É esta a opinião de Frei David Santos, diretor executivo da Educafro (Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes), sobre o desconforto causado pelo desfile do estilista, que aconteceu na terça-feira e repercutiu mal nas redes sociais nesta quarta.
“Para nós, esse estilista Ronaldo Fraga foi bem intencionado, mas mal assessorado. Os racistas vão no elemento comum, recurso muito usado por pessoas racistas, de comparar o cabelo de negro com a palha de aço. Esse recurso é delicado, pois todos os racistas o usam maldosamente. No contexto do desfile, deu para notar que ele não quis ofender, ele quis prestar uma homenagem, mas usou um elemento simbólico do mundo dos racistas para provocar a comunidade negra. Esperamos que ele reconheça o equívoco e peça desculpas, comparecendo em uma reunião da Educafro”, afirmou Frei David.
Em 2011, a entidade protestou em frente à Bienal, onde acontece a São Paulo Fashion Week, por cotas maiores de modelos negras nas passarelas. Segundo o diretor, na época a entidade abriu uma reclamação contra a SPFW no Ministério Público, obrigando a semana de moda a se comprometer a ter sempre pelo menos 10% de modelos negras nas passarelas. No entanto, ao fim do prazo, que era de dois anos, ele afirma que a SPFW parou de respeitar a porcentagem.
“Nos dois anos, ela colocou 12% de modelos homens e mulheres negros, mas no terceiro ano, quando acabou a vigência do termo que eles assinaram, caiu para menos de 2%”, afirma. “Eles desconhecem que organizam esse evento no Brasil, onde cerca de 52% da população é afrodescente. Eles insistem em colocar o negro apenas como carregador de peso, montador de palco, servidor de cafezinho.”
Outro lado
Enquanto Frei David falava com o site de VEJA, Ronaldo Fraga e o maquiador e cabelereiro responsável pelo desfile do estilista na SPFW, Marcos Costa, foram ao Facebook justificar o penteado, que, segundo ele, quer fazer “uma crítica ao racismo e ao preconceito”. Leia abaixo os comunicados de Fraga e de Costa na íntegra.
“O meu desfile é uma crítica ao racismo e ao preconceito que respinga até os dias de hoje. Em nenhum momento falo em homenagem. Voltei para um tempo em que o futebol, o tema que escolhi para esta coleção, deixava de ser um esporte exclusivamente branco, de elite, para se ajoelhar diante da ginga, da dança que os negros emprestavam da capoeira pra driblar o time adversário. Tomei como objeto de pesquisa este esporte como formação de identidade, de costumes e da história brasileira. Procurei, como em outras coleções, fazer uma análise crítica e analítica sobre a influência e apropriação do futebol pelo brasileiro”, escreveu Fraga em comunicado divulgado por sua assessoria de imprensa no Facebook.
Já Costa escreve que: “Nunca foi minha intenção ou de Ronaldo Fraga ofender ou discriminar quem quer que seja. A ideia para o look do desfile era ressaltar a beleza de cabelos que podem ser moldados como esculturas, não importando o fato de serem crespos. Depois de testarmos alguns materiais, o Ronaldo Fraga sugeriu a palha de aço. Foi também uma forma de subverter um preconceito enraizado na cultura brasileira. Por que o negro tem de alisar seus fios? Eles são lindos!”
Voltei
Entenderam? Fraga tentou fazer, à sua maneira e como entendeu, uma denúncia. Nem mesmo diz ser uma “homenagem”. O uso da palha de aço repete um procedimento comuníssimo em várias expressões artísticas e assemelhados. Submeteram um clichê do preconceito a uma “ligeira torção”, como diria Roland Barthes, e subverteram-lhe o sentido. Assim, o símbolo que deveria fazer a apologia do preconceito passa a denunciá-lo. Se o cabelo do negro associado à palha de aço é, como quer frei David, um elemento que serviu à discriminação racial, tirá-lo do nicho em que repousa e pô-lo para circular num desfile obviamente glamoroso tem, nesse universo restrito de símbolos, um sentido subversivo. Não é preciso ser muito sagaz para perceber isso.
Assim, é patente, é escancaradamente evidente, que o estilista Ronaldo Fraga e o cabeleireiro Marcos Costa estavam, também eles, protestando contra o mesmo racismo contra o qual frei David diz lutar. Aliás, ele admite que os dois não quiserem ofender ninguém. Mas, mesmo assim, cobra um pedido de desculpas. E exige que seja lá na Educafro, que ele transformou num tribunal racial.
Que grande católico é este senhor! Como lembrou anteontem o papa Francisco, a essência do cristianismo é o perdão, é a misericórdia. E só se pode perdoar quem pecou, quem transgrediu. No catolicismo particular de David, dá-se o contrário: os inocentes é que se penitenciam.
Frei David ousa, ainda, ser um policial da estética. Se faz isso com um estilista e um cabeleireiro, poderia fazê-lo também com novelistas, poetas, artistas plásticos, bailarinos etc. A David não basta que a contribuição do negro à formação do Brasil e à cultura brasileira sejam reconhecidas; a David não basta que o racismo seja denunciado. Não! Uma e outra coisa têm de ser feitas segundo os termos do próprio Frei… David!!! Ele é, a um só tempo, a referência cultura, o denunciante, o juiz e o executor da pena. Ou é assim, ou ele contribui para demonizar pessoas inocentes nas redes sociais. Ou é assim, ou ele “convoca” os “réus” a um julgamento na Educafro.
Pensemos um pouco. Escravo eram colocados no pelourinho, no tronco, tinham correntes presas aos pés. Estilistas que eventualmente levassem à passarela negros impecavelmente vestidos, porém com correntes amarradas aos pés, estariam fazendo a apologia da escravidão ou denunciando eventuais preconceitos remanescentes? Tenham paciência! Frei David é negro e militante. Mas não é dono dos outros negros, da consciência alheia, dos protestos, da história… O que ele pretende? Ser um sacerdote das manifestações antirracistas, julgando quais procedimento são aceitáveis e quais não são?
Eu continuo a achar que David tem de ser um pouco mais fiel ao Livro em nome do qual ele se fez frei. Ainda que ele fosse um militante antirracista exemplar — não creio que seja, e o episódio o prova —, ele é cristão. O ser cristão é mais amplo do que o ser branco, o ser negro, o ser hétero, o ser gay… O ser humano, então, é ainda mais amplo do que o ser cristão, ser branco, ser negro etc.
Eu sugiro a este senhor que considere que só as tiranias obrigam os inocentes a se desculpar.
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