Esperada há mais de sete décadas, a inauguração da estrada vicinal que interliga Barretos a Jaborandi, cidades do interior de São Paulo, já teria sido um evento marcante para a região por si próprio. Porém, a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) na cerimônia de entrega da obra, no último dia 25, conferiu um caráter eufórico à solenidade. Ao chegar ao local, ele foi recebido com aplausos e gritos de “mito” por uma centena de apoiadores. O grupo, que se amontoava para tirar fotos com o ex-presidente, ignorava o tempo seco, o calor de 37º C e até mesmo as investigações sobre um suposto esquema de venda ilegal de joias que avançam contra Bolsonaro e aliados próximos.
O ex-presidente chegou à inauguração da estrada por volta das 17h20 daquela tarde, ao lado do governador do Estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de quem partiu o convite para o evento. Horas depois, Bolsonaro ainda receberia o título de cidadão honorário de Barretos na tradicional Festa do Peão, evidenciando seu prestígio na região. A popularidade do bolsonarismo na cidade, no entanto, não é uma novidade. Em 2018, Bolsonaro recebeu 73,95% dos votos na disputa pela Presidência contra Fernando Haddad (PT) no município. Na eleição do ano passado, o ex-presidente voltou a vencer na cidade com 62,8% dos votos, ante 37,2% de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A força de Bolsonaro na região não se limita à cidade onde esteve para a Festa do Peão. Em 2022, ele venceu a disputa eleitoral em 18 dos 19 municípios que formam a Região Administrativa de Barretos – perdendo apenas em Guaraci (10.530 habitantes, segundo o Censo 2023) por uma diferença de 112 votos. Se todas as 19 cidades fossem um único município, Bolsonaro teria quase 60% dos votos. Na avaliação de lideranças locais, o resultado eleitoral nos últimos anos não deixa dúvidas: a região de Barretos é um reduto da direita e as eleições municipais do ano que vem serão influenciadas por Bolsonaro, ainda que ele esteja inelegível e seja alvo de investigações.
Segundo Caio Pompeia, pesquisador do Programa de Pós-Doutorado em Antropologia Social da USP e autor de Formação Política do Agronegócio (Elefante, 2021), a incidência de algumas das correntes do setor é um dos fatores decisivos para fortalecer orientações políticas mais conservadoras na região de Barretos – como o bolsonarismo e o sentimento anti-esquerda, que são retratados nos resultados das urnas. Em 2020, por exemplo, nenhuma das 19 cidades que compõem a região administrativa elegeu um prefeito de esquerda. Na prática, o vencedor do pleito foi a centro-direita, com DEM e PSDB elegendo cinco prefeitos cada um, seguidos de MDB (2), PP (2), PTB (2), PSD (1), Cidadania (1) e Podemos (1).
“Para entender a importância do agronegócio da região nos resultados eleitorais favoráveis a Jair Bolsonaro, é preciso considerar um conjunto de atores. Primeiramente, houve a aderência ao bolsonarismo de certas bases da agricultura, em cadeias como da pecuária, cana-de-açúcar e frango. Tais bases têm ampla afinidade com Bolsonaro em posições, valores e costumes, incluindo as inclinações anti-esquerda e as contestações aos movimentos ligados à reforma agrária. Essa afinidade se adensou nos anos 2010, com o maior conservadorismo em âmbito global”, explica Pompeia.
Além disso, conta o pesquisador, é preciso considerar o apoio a Bolsonaro vindo de segmentos economicamente articulados com as fazendas, como lojas de insumos agropecuários, concessionárias de máquinas agrícolas, transportadoras, usinas, entre outros. “Esses atores inseridos nas cadeias do agronegócio são complementados por determinados agentes econômicos nas cidades, cujas relações comerciais com fazendeiros são indiretas, embora relevantes. O aumento dos preços internacionais de commodities agropecuárias em anos recentes contribuiu significativamente para visões favoráveis desse heterogêneo conjunto de atores a Bolsonaro nas eleições de 2022″.
Outro fator que explica o fortalecimento do bolsonarismo na região de Barretos – mas não somente nela – é a consolidação do que se pode chamar de “mundo agro”, um ambiente simbólico de pertencimento e orgulho que definitivamente rompe fronteiras entre dimensões rurais e urbanas, diz Pompeia. “Constituído por músicas, imagens e ideias-força que associam o agronegócio à modernidade e à pujança, esse mundo é nutrido por festas como a do Peão de Barretos e feiras como a Agrishow. Não por acaso, Bolsonaro é assíduo e ativo frequentador desses eventos, onde enaltece e se associa a tal mundo”.
Um exemplo da aproximação de Bolsonaro com o mundo agro é o fato dele ter ido a todas as edições da Festa do Peão desde 2017. Pompeia diz ainda que, a depender do destino político de Bolsonaro, partidos e figuras proeminentes da direita continuarão as ações para disputar o espaço do ex-presidente no âmbito do “agro”, de olho nos possíveis dividendos eleitorais.
Eleita a primeira prefeita mulher de Barretos em 2020, Paula Lemos (PSD, à época no DEM), é categórica ao afirmar que a cidade é “vocacionada para a direita”. “A última eleição deixou muito claro que temos um eleitorado, em sua grande maioria, de direita”, diz, em referência à votação expressiva de Bolsonaro no município em 2022. Paula, no entanto, conta que procura manter um bom diálogo com o governo Lula, visto que Barretos precisa tanto de recursos do governo estadual, como do governo federal.
Na manhã do último dia 26, Paula recebeu Bolsonaro para um café da manhã em seu gabinete, um dia após o ex-presidente ser homenageado na cidade. O encontro contou com a participação de prefeitos de cidades vizinhas e secretários da gestão Tarcísio. “Bolsonaro é realmente uma referência na política. Não tem como falar que ele não é”, disse ao Estadão momentos antes de se encontrar com o ex-presidente. Questionada sobre a participação de Bolsonaro em sua campanha à reeleição, Paula disse que não pode afirmar que ele voltará a Barretos em 2024, mas ponderou que “Bolsonaro vai influenciar nas eleições do ano que vem”.
Embora se identifique mais à direita no espectro político, Paula reconhece a desigualdade de gênero na política, uma pauta marcante nos discursos progressistas. “Ainda soa estranho para a maioria da população ver uma prefeita mulher. Sem querer falar de ‘mimimi’, mas a trajetória da mulher é bem mais difícil que a do homem”, diz. “Acho que não podemos esconder da mulher que para ela é mais difícil. Se ela quiser alcançar alguma coisa, ela vai ter que se dedicar mais. Não é igual, a dificuldade é real, é palpável”
Com 35 anos de vida pública, o vereador de Barretos Paulo Corrêa (PL) disputará o sexto mandato na Câmara Municipal no próximo ano. Corrêa, que já presidiu a Casa legislativa duas vezes, é um influente político da região, conhecido pela capacidade de construir consenso entre os pares. Ele também é o autor do decreto legislativo que concedeu o título de cidadão honorário a Bolsonaro – medida que foi aprovada por todos os parlamentares presentes na votação. Em sua avaliação, a força da direita em Barretos é explicada pela forte presença do agronegócio na região. Ele ainda avalia que a esquerda é praticamente inexistente na cidade.
“O que percebo na política é que essa polarização entre esquerda e direita começou com mais força agora, com o Bolsonaro sendo eleito (em 2018). (Mas considero que) a região é de direita. Tanto é que o Bolsonaro teve a maioria dos votos aqui”, diz o vereador. “É uma região do agronegócio e a questão do (apoio do setor ao) Bolsonaro é nacional. Além da afinidade política, ele incentivou o agronegócio (quando estava na Presidência)”.
As estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) corroboram com a avaliação de Corrêa. Desde o início da série histórica, em 2000, a cidade de Barretos nunca elegeu um prefeito de esquerda, apesar dos governos petistas de Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Além disso, o PT nem lançou candidato à Prefeitura de Barretos nas duas últimas eleições municipais. Em 2020, a legenda não conseguiu formar nem sequer uma chapa de vereadores. Com isso, os políticos que desejavam disputar a eleição precisaram trocar de partido, como o caso do vereador Adilson Ventura de Mello, que deixou o PT de Lula e foi para o PL de Bolsonaro.
Adilson foi, inclusive, o único a não votar favoravelmente à concessão do título de cidadão honorário dado pela Câmara da cidade ao ex-presidente. Ele deixou o plenário para não se manifestar e, com isso, agora sofre pressões para deixar a sigla. Ele foi procurado para falar sobre o episódio, mas não retornou os contatos.
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