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Desiludidos e invisíveis desenham o futuro - Final

Valor: Com essa desesperança e desilusão com o poder público, como se explica o Lula continuar bem colocado nas pesquisas de opinião para as próximas eleições?

Júlio Ribeiro: Estive no mês passado num Congresso, em Miami, que levantou o tema migração. Ninguém percebe, mas o homem ficou nômade outra vez. No passado, as pessoas migravam porque acabava o pasto e levavam o boi para pastar em outro lugar. Hoje é a mesma coisa. Não tem desemprego no México porque um terço dos trabalhadores migrou para os EUA. Os italianos morrem de medo dos africanos que atravessam para lá. Nos Estados Unidos agora eles pegam navios cheios de chineses. Então, o que acontece com essa migração que pode ser a nível internacional ou em nível local? Desenha-se um modelo em que, de alguma forma, os pobres começam a configurar a sociedade. Em Miami não se pode mais ignorar os hispânicos, que são maioria. Então, a configuração da sociedade começa a ser hispânica - e esse cara elege. Quando você pega o Brasil dos anos 70, a elite governava e era de se esperar que os mais preparados governassem. Você pega o Brasil de hoje ele é predominantemente de classe C.

Valor: Os eleitores são predominantemente da classe C, mas os eleitos não são.

Júlio Ribeiro: Por enquanto. Por que isso está acontecendo na Bolívia, na Venezuela, pode acontecer no Peru. Se essas pessoas são maioria eleitoral, elas começam a ter um comportamento próprio, eles dão a tônica de como serão as eleições no futuro. Eles cansaram do modelo em que as elites governavam para elas mesmas. O que está acontecendo na Bolívia? A Bolívia sempre teve gás, só que quem governava eram os bacharéis. No fim do século XIV começo do século XX, uma mineradora americana comprou uma área colossal no Peru e fez uma cerca que dividiu os municípios. A cerca impedia que os índios se movimentassem. A companhia pôs guardas e cachorros para vigiar a área e os índios se revoltaram. Começaram uma luta que durou 20 anos e na qual morreram dezenas de milhares de pessoas. O livro "Garabombo, o Invisível", de Manuel Scorza [Editora Civilização Brasileira] conta a história de um personagem, que se chama Garabombo. Um dia, ele foi num cartório tirar uma certidão e passou quatro dias lá sem que ninguém o visse. Ele chegou à conclusão de que era invisível. Quando veio a guerra, empregaram o Garabombo como espião porque era invisível. Ele ia do lado inimigo e ouvia todas as conversas, todas as estratégias porque as pessoas simplesmente não o viam. Esse cara existiu. O autor, um jornalista, o encontrou. Ele estava há 40 anos preso sem julgamento. Agora essa visão de que ele era invisível é a visão que se tem do caseiro que derrubou o Palocci, o motorista que derrubou o Collor. São as pessoas que não existem. E essas pessoas que não existem no Brasil são maioria colossal, têm título de eleitor e não confiam em mais ninguém. É por isso que o Lula vai ganhar. Porque eles vão confiar em quem, no Alckmin? Eu acho nem a mulher do Alckmin vai votar nele. Esse movimento é porque o Brasil deixou de ser o país dos bacharéis. O povo brasileiro vai determinar como serão as coisas e é isso que vai determinar o amadurecimento político. Pode eleger o Lula, o Garotinho. Esse é o modelo que a gente vai ter que encarar.

Valor: O senhor acha que o progresso econômico, o aumento da renda, o acesso à escola levou essa massa de pessoas de mais baixa renda rapidamente para uma condição de ter voz e poder escolher mas que ainda faltam instituições que os representem?

Júlio Ribeiro: Não tem instituições. A gente está indignado porque eles não estão mais aceitando os valores da burguesia. É isso. Se o Serra não tivesse se candidatado ao governo do estado de São Paulo ia perder para o Lula. Porque eles se desiludiram com as instituições. Você vê essa caça à polícia que tivemos em São Paulo e o que foi que eles fizeram? Nada! As pessoas andam nas ruas e são assassinadas. Você acha que eles vão confiar nesses caras? A gente está indignado por que eles não querem mais aceitar os valores burgueses. A mudança social vem por crença. O Antonio Conselheiro derrotou o Exército brasileiro duas vezes por que? Porque o pessoal acreditava. Mas o que acontece: o pessoal elege um representante deles para ir para o Congresso, como uma Benedita da Silva, que era negra, mulher e favelada, e a primeira coisa que ela fez foi um monte de mutreta. Hoje ela mora numa cobertura, viaja para a Europa e não representa mais os caras. Eles começaram a votar em quem o pastor da igreja evangélica indica. Por isso Lula vai ser reeleito.

Valor: O senhor não vê o populismo com preconceito? A elite usa essa palavra com uma conotação pejorativa, 'o populismo tomando conta da América Latina'?

Júlio Ribeiro: Eles são maioria e têm o direito de eleger quem eles quiserem. Eu posso não gostar, mas eles podem eleger quem eles quiserem, para isso é que têm o voto. Eu acho que só vai piorar. Inclusive a desilusão, essa descrença que eles têm. Veja, nos anos 60 e 70 a maior parte da população do mundo era comunista - somando a Rússia, a China a Europa Central e a Ásia. E o que aconteceu com o comunismo? Ele se desfez sozinho porque acabou a crença no comunismo. Eu acho que vamos ter um surto de populismo na América Latina que vai ter de ser engolido, digerido e excretado.

Valor: Essa população também passou a ter acesso a uma série de bens de consumo e serviços. O senhor acha que as agências de publicidade estão preparadas para fazer a comunicação para esses novos consumidores?

Júlio Ribeiro: Hoje, a situação financeira, a falta de dinheiro ou o acesso a bens e serviços por parte dos mais pobres é só um lado da vida das pessoas. Mas há outros aspectos e nós estamos estudado novos modelos de organização familiar. Por exemplo, as mulheres de alta renda estão dominando as famílias. Deus ainda é um substantivo masculino no dicionário, mas o universo está usando laço de fita e é cor-de-rosa. Quer dizer que o mundo ainda tem uma visão masculina, mas o poder de consumo é das mulheres. Uma pesquisa recente mostra que 65% de quem bebe vinho é do sexo feminino, 33% de toda a cerveja bebida no Brasil é consumida por mulheres. Um terço dos automóveis da Mercedes Benz são vendidos para mulheres. Há um novo modelo de arranjo social, familiar e econômico que modifica o comportamento e os gostos das pessoas que independe da pobreza. Há um outro fator de adaptação que é a presença das mulheres.

Valor: Mudaram os hábitos e a configuração da sociedade. A comunicação está acompanhando essas mudanças, está preparada para lidar com elas ?

Júlio Ribeiro: Vender hoje é suprir carências. Na medida em que a mamãe não almoça mais em casa, ela perde valores que tinha quando estava no lar. O afeto familiar, o hábito de visitar a mãe. Outro dia eu fiz uma palestra para 120 executivas e aparecia isso: 'não sei se é vantagem eu viajar às cinco horas da manhã para Manaus e no dia seguinte ter que fazer um relatório e no outro dia ter que trabalhar até tarde. Não sei se eu gosto desse modelo de vida'. A tensão gera perda de valores que o emprego não dá. Não há espaço para a afetividade no ambiente de trabalho. E as perdas afetivas não se repõem sozinhas. Você tem de compensa-las. O consumo tem feito esse papel. Consome-se muito mais hoje para suprir carências afetivas.

Valor: E a propaganda está conseguindo transmitir essa sensação de suprir carências?

Júlio Ribeiro: Quer um exemplo: a Natura tem metade das consultoras da Avon e vende o dobro. Por que? Porque ela se importa com as consumidoras. A marca Dove usar mulher gorda de calcinha na propaganda é uma manifestação de amor. Na Inglaterra há um estudo que mostra que mesmo na compra de automóveis as mulheres querem saber qual é a atitude do fabricante em relação ao público feminino. Então isso já está virando um ponto positivo, a atitude da empresa com o universo feminino. Por isso que o Itaú dá desconto para seguro de automóveis de mulheres. O que está acontecendo hoje na comunicação é que você tem uma nova realidade. Tem uma pesquisa da BusinessWeek que mostra que 30% das mulheres ganham mais que os maridos.

Valor: O senhor está mais atento ao efeito das mulheres do que no avanço da classe C?

Júlio Ribeiro: Não. Mas na classe C tem mulher também. Estou atento a vários fatores. Por exemplo, tem um que é mais apavorante ainda. As mulheres vão viver mais de 90 anos - os homens uns 80. Alguém está preparado para viver 90 anos? Tem caixa para isso? Como ficam afeto, relacionamentos, amigos? Hoje, mulheres de 50 anos são competitivas na área da afetividade. É um fator novo na psicologia da mulher. Aos 50 anos, estão ótimas. Antigamente, as mulheres aos 40 anos entravam na menopausa, colocavam uma roupa preta e iam conversar com a vizinha porque o marido tinha morrido aos 60 de infarto. Hoje, eles com 60 anos e um pouco de trato e uma pastilha de Viagra estão no mundo. Como é que vai trabalhar depois dos 60 anos? E vão viver até os 80! Tem outro fator que é sobre o universo das aspirações. As mulheres executivas dizem que não têm problema de deixar as crianças em casa: compensam no fim de semana. Mas é falso. É um componente afetivo importante. Os homens, por outro lado, estão perdendo importância dentro das famílias, nas empresas, no mundo em geral. É impressionante a perda de espaço dos homens. Mas há ainda uma outra questão nas classes C, D e E que é a da sobrevivência. Antigamente isso era um problema exclusivamente do homem hoje é uma preocupação de toda a família. Hoje, o sentido da preservação de si, da família, tem um peso enorme para todos. Se o Lula dá cesta básica, aumentou o emprego, aumentou a renda, esses caras vão votar nele. Se a bolsa caiu ou não, não importa. Eles querem salário, querem renda, querem emprego, querem sobreviver. Em países como Paraguai e Bolívia, o fenômeno é igual. Os caras não acreditam mais nas elites. As elites se desmoralizaram. E eu acho teremos um surto populista na América Latina. Não sei quanto tempo vai durar. Então o Lula será imbatível nesse período.

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