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Chico Buarque - Entrevista concedida a Veja (15/09/1971), , na época em que o compositor enfrentava problemas com a censura.- Partte 1



Veja - Criado mais ou menos vizinho da bossa-nova - inclusive com compositores freqüentando a sua casa, como é que você começou a se expressar mais pelo samba tradicional?
CHICO - Quando eu comecei, antes de Pedro Pedreiro e Sonho de um Carnaval, fiz vários sambas que eram imitação, ou eram bossa-nova. Mas quando fiz meus sambões, isso não coincidiu com a bossa-nova e sim com uma época posterior, o tempo dos sambões pra fora, da Baden e do Vinicius, a fase da Nara no Opinião. A partir da música que fiz para a peça Vida e Morte Severina foi que comecei uma coisa minha mesmo. Alguns sambas fizeram sucesso e ficou essa coisa de dizerem que só faço samba. Isso me atrapalha um pouco, inclusive. Quem te Viu, Quem te Vê, por exemplo, é um sambão tipo Ataulfo Alves, tipo Noel Rosa, A Rita era um samba noelesco e Juca era coisa que eu fiz meio ao gênero.

Veja - Mas o que marcou mais foram exatamente as que não eram bossa-nova.
CHICO - Eu sei. Mas não dependeu de mim, nem eu fiz porque optava. Entre as coisas que eu fazia, estavam algumas que eu ouvia na época, tipo Formosa, Consolação. E as minhas músicas aconteceram porque aquele negócio estava em voga. E eu fiz não por causa do sucesso, mas porque gostava. Como até hoje gosto de Noel, do Tom e de Baden, coisas completamente diferentes - e o Vinicius de Moraes, então, nem se fala.

Veja - Você nunca se interessou pela música estrangeira?
CHICO - Claro. Tem muita música que eu sei a melodia e a letra inteira, sei cantar tudo... O conjunto The Platters, eu era vidrado neles. Lembro que eu entrava no primeiro juke box que apareceu na rua Augusta e botava The Platters cantando Smoke Gets in Your Eyes, o Pat Boone... Eu sei que eu tenho esta carga. Tudo isso existe, e porque não passou, eu não sei. Se isso transparecer algum dia na minha música não é por acaso. É porque está lá dentro.

Veja - Por que você escolheu o violão como instrumento para compor?
CHICO - Por causa do João Gilberto, da bossa-nova. Eu já cantava, minha irmã tocava violão, isso antes de compor. Antes da bossa-nova eu fazia músicas de carnaval, mas, quando ela apareceu, me pegou assim páaaa... Me lembro que ouvia Chega de Saudade a tarde inteira, umas cinqüenta vezes seguidas. Aí pegava o violão - eu e um amigo que tocava bateria, o Oliver - e a gente tentava pegar as batidas do João. E é por isso que eu toco violão errado até hoje: eu comecei a aprender não foi nem de olho.

Veja - Entre suas músicas existem toadas, sambas, marchas, canções: como é que você sente o ritmo enquanto está compondo?
CHICO - Acho que cada música tem seu ritmo. Ela nasce com ele. Às vezes acontece de eu fazer a coisa num ritmo e depois mudar. Não é eu hoje vou fazer tal ritmo.

Veja - O ponto de partida é uma idéia poética ou musical?
CHICO - Às vezes eu parto da idéia musical. Aí as coisas se fundem. Às vezes a idéia musical sugere uma letra, que condiciona a própria música e o ritmo, num negócio que não estava previsto. Não é que a letra puxe a música. Uma puxa a outra, e o ritmo vai. Normalmente ele nasce de um jeito: eu tenho mais predisposição para tocar samba, eu pego um violão e automaticamente sai samba. Agora, se a idéia da música ou da letra puxar para outro negócio, eu vou. Nada me segura, não. Varia muito. Não vai dar para colocar na entrevista, mas eu fiz um negócio assim no violão... (Pega o violão e repete duas notas tocadas rapidamente num só acorde.) Desta vez, isso aqui nasceu antes e não é samba nem nada. Aí veio a idéia da letra, que me fez fazer outro acorde e isso me deu a dimensão da música, o tamanho dos versos. Fiz, também há poucos dias, um samba, que a idéia da letra nasceu toda antes. No começo, eu não sabia que ritmo devia colocar mas depois descobri que era samba mesmo.

Veja - Como se chamam as duas músicas?
CHICO - A que eu fiz brincando é Deus lhe Pague. Mas essa por enquanto está censurada. A outra, que se chama Construção, não foi censurada. Em termos de composição, eu estou num embalo muito bom, fazendo muita coisa, preparando meu disco. O problema é que estou com um medo danado de mandar músicas novas para a Censura, porque a proporção está: de cada três músicas, liberam uma.

Veja - Como é que isso está se refletindo no seu trabalho?
CHICO - É claro que cheguei à auto-censura. Mas, dentro desse limite que já me coloquei, eu acho que ainda tenho campo para fazer o negócio. Esse tipo de música que eu tenho feito, que para mim é uma coisa nova, é a razão de ser de fazer um disco novo. Elas estão dentro de limites que eu acho que no espírito da Censura podem passar. Agora, se eles me fizerem recuar mais ainda, eu paro. Quando eu mando três músicas para a Censura e me liberam uma, essa não me dá vontade de gravar. Não é só o problema de ter que fazer 36 músicas para completar um LP o que dá um trabalhão. É que vai ficar uma visão mutilada e o que me interessa realmente é mandar o recado inteiro.

Veja - Com todas essas restrições, qual é o seu campo de trabalho hoje?
CHICO - Tenho feito shows, durante e depois do sucesso de Apesar de Você. Mas com a Censura a coisa acaba, porque a gente se apresenta em cima de um sucesso e sem sucesso não tem muito o que fazer.

Veja - A Itália também está nos seus planos?
CHICO - Tenho um contrato com a RCA italiana para ficar três meses por ano lá. Vigorou a partir de 1969 e este ano inclusive era o último do contrato, quando ele seria renovado ou não. O contrato é feito na base de estar presente, senão eu gravava um disco aqui e mandava para lá. A ida este ano seria para gravar um terceiro LP e promover o disco. Com o show do Canecão acho que não vai dar para ir lá este ano.

Veja - Esse esquema já é em torno de seu nome na Itália ou ainda do sucesso da Banda?
CHICO - Depois da Banda, meu primeiro disco lá, o Bom Tempo, em italiano, também fez um relativo sucesso. Mas o LP que eu fiz agora - o mais bonito de todos - acho que não fez muito sucesso, não. Para uma certa elite, entre os músicos, a música brasileira é muito respeitada, mas não é popular.

Veja - Mas o sucesso não dava para você se manter como um artista médio?
CHICO - Eu estava me mantendo na Itália. E sei que, se eu for para lá, me mantenho, mas tenho que estar lá e trabalhando. O artista médio de lá vai em todos os programas de televisão, dá entrevista a todas as revistas e eu não estou mais a fim disso, não. Acho que foi bom estar lá.

Veja - Quando você voltou da Itália sentiu alguma mudança na música brasileira?
CHICO - Para mim foi a quebra daquela fase dos musicais da Record. Mas acho que aquilo foi uma época excepcional. O mercado ficou meio parecido com o da Itália: quando fui daqui para lá senti uma diferença enorme. Na volta já não havia tanta diferença. A conversa é nos termos do isso vai funcionar, isto não vai. As pessoas sabem as cifras exatas, os cachês.

Veja - Seu LP
CHICO Buarque de Hollanda, Volume IV, gravado depois que você veio da Itália, tem alguma mudança? Rosa dos Ventos, por exemplo, parece ser um caminho diferente. Rosa dos Ventos talvez não seja o caminho. É uma música meio confusa, que hoje eu faria de um modo diferente, mais simples. É um disco de transição.

Veja - A transição está em quê?
CHICO - Em tudo. No clima, mesmo. Fiz aquele disco na Itália, na época que eu estava mais atrapalhado, com mil problemas na cabeça. Não é um disco fechado, completo, é cheio de brechas. Agora, eu acho que peguei claramente o caminho que estava querendo em algumas músicas daquele disco. Ao mesmo tempo tem músicas de que eu gosto muito, independente de antes ou depois: Nicanor, Samba e Amor. Por outro lado, o samba, para o Cyro Monteiro (Ilmo. Sr. Cyro Monteiro) é uma brincadeira como foi o Juca e como foi esse samba para o Mário Reis.

Veja - Você separa um lado seu com coisas mais leves? Um tronco central e afluentes?
CHICO - Esse tronco central é meio torto, passa por variações. Essas ramificações, tipo o samba do Cyro, o do Mário Reis, Juca, A Rita, não têm nada a ver com meu caminho. São ramificações independentes. Eu podia ter feito A Rita hoje e o samba do Mário há cinco anos. Aquilo é um pouco Noel Rosa, de ouvir muito Noel Rosa.

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