Pular para o conteúdo principal

BACH: ALEGRIA DOS HOMENS - FINAL

Bach também faz isso de forma graciosa na cantata de aniversário para seu patrão Wilhelm Ernst, de Leipzig. Nela ele sugere a ondulação das vagas no mar jogando com as aliterações dos versos "Schleicht spielende Welle/und murmelt gelinde!/nein! rauschet geschwinde!" (Deslizai, ondas brincalhonas, e murmurai docemente! não! bramai com toda a força!). Esse lado bem-humorado desmente uma imagem sisuda que uma certa tradição quis passar dele, de um homem fechado dentro de uma hermética espiritualidade, ou cuja música fosse apenas um jogo de armar racional e sem emoção.

Mas o descritivismo musical nas mãos de Bach assume formas muito mais abstratas, quando ele o expressa, por exemplo, através do simbolismo numérico - pelo qual tinha uma atração quase supersticiosa. O "Crucifixus" da Missa em si menor constrói-se sobre uma série de treze variações, pois o 13 - número dos convivas que se sentaram à mesa na última Ceia - está tradicionalmente associado à idéia do infortúnio. Essa fixação fazia com que, muito freqüentemente, Bach usasse ritmos baseados na decomposição do número 14, pois este correspondia a seu próprio nome: como B é a segunda letra do alfabeto, A a primeira, C a terceira e H a oitava, Bach = 2 + 1 + 3 + 8 = 14.
Da mesma forma, valendo-se do sistema alemão de usar letras para nomear as notas da escala, ele converte seu nome em tema melódico: BACH = si bemol-lá-dó-si natural (e, nos séculos futuros, esse será um tema constantemente retomado por outros compositores, em homenagem a ele). Ou então ele usa o número 43 porque J é a décima letra do alfabeto, S, a décima nona e, assim, J.S. BACH = 10 + 19 + 14 = 43. A obsessão pela numerologia fez com que ele atrasasse a sua inscrição na Sociedade para a Promoção da Ciência Musical, fundada em 1738, só entrando para ela em junho de 1747, quando pôde fazê-lo como seu 14º membro.

Mas esse músico intelectualizado, perfeitamente em dia com o que se fazia de mais moderno na música de toda a Europa, nunca foi um homem trancado numa torre de marfim. Ao contrário: juntamente com suas duas mulheres  Maria Bárbara e Anna Magdalena, com quem se casou em segundas núpcias em dezembro de 1721 - , sempre cuidou dos menores detalhes das despesas domésticas. E sabia muito bem brigar com seus empregadores por melhores salários e condições de trabalho. Compleição maciça, nariz grande e o queixo um tanto proeminente que a iconografia mostra, Bach estava longe de ser um eremita: basta lembrar os 21 filhos  sete da primeira mulher e catorze da segunda  que gerou em seus casamentos.

Marido fiel e devotado, ficou completamente desarvorado quando Maria Bárbara morreu de repente, em julho de 1720. E, embora fosse costume da época - e em especial da família Bach - um viúvo voltar a casar-se imediatamente, ele hesitou um ano antes de escolher Anna Magdalena. Bach gostava de comer bem, especialmente arenque ao molho de vinho bem apimentado, com cerveja ou vinho branco, seguido de muitas xícaras de café e uma longa cachimbada. Era econômico, de hábitos moderados, mas fazia questão de ter a casa sempre cheia de flores, de preferência cravos, que eram suas favoritas. E não sabia resistir à tentação de gastar suas economias na compra de instrumentos novos - cravos, espinetas, clavicórdios, violinos - que colecionou em grande quantidade a vida inteira.

Era professor extremamente paciente quando os alunos tinham talento, mas irascível com os medíocres. Contam que uma vez quando diretor da escola de música da igreja de Santo Tomás, em Leipzig, ele arrancou a peruca e atirou-a em um discípulo, gritando: "Por que é que você não vai ser sapateiro?" Gostava muito de transmitir seus conhecimentos aos outros, haja vista os muitos manuais didáticos que escreveu: o Pequeno livro de cravo, para ensinar a seu filho Wilhelm Friedemann; o Livro de Anna Magdalena, que deu de presente à segunda mulher; ou o maior de todos, os dois volumes do Cravo bem temperado, com 48 prelúdios e fugas em todas as tonalidades maiores e menores, que consolidaram o sistema tonal usado até hoje.

É impressionante a liberdade que o Bach professor deu a cada um dos filhos de desenvolver a sua própria personalidade musical. Dos 21 filhos, apenas nove sobreviveram; e, dos cinco homens, Gottfried Heinrich, do segundo casamento, era débil mental, o que foi fonte de grande sofrimento para ele e a mulher. Mas os outros quatro cresceram e se tornaram compositores com idioma próprio, em nada dependentes do estilo do pai. Wilhelm Friedemann (1710-1784), de personalidade instável e dominado pelo alcoolismo, morreu na miséria. Foi o mais visionário deles, antecipando o desenvolvimento da sonata.

Carl Philip Emanuel (1714-1788), o "Bach de Berlim", foi o pioneiro do concerto para piano. Johann Christoph Friederich ( 1732-1795) foi autor de oratórios e um dos precursores da sinfonia. E Johann Christian (1735-1782), o "Bach de Londres", foi o único da família a tornar-se um prestigioso autor de óperas. Essa independência que soube dar aos filhos é fruto típico do individualismo de Johann Sebastian, o que o destacava dos músicos de seu tempo. Naquela época, um emprego de músico de igreja ou da Corte era para toda a vida. Mas ele não hesitava em trocar de posto, toda vez que sentia ter esgotado as possibilidades que lhe ofereciam. Esse individualismo fez com que fosse admirado por Frederico, o Grande, rei da Prússia, a quem visitou em Potsdam, em 1747.
Contam que quando Bach acabou de improvisar, ao cravo, sobre um tema que lhe fora sugerido pelo soberano - que, além de razoável compositor, transformou a Prússia na principal potência militar européia e Berlim num dos grandes centros culturais da época - , este comentou: "Pena que variações tão lindas sejam apenas um improviso e se percam para sempre". Bach, cuja memória era prodigiosa, teria se sentado de novo ao cravo e repetido integralmente o que tocara antes. Foi ainda o individualismo que fez com que, no fim da vida, ao perceber que se acentuava a distância entre seu estilo e o gosto das novas gerações, preferisse renunciar à tentativa de ser aceito pelo público.

Continuou a dedicar-se a obras pessoais, como a grandiosa Missa em si menor ou ao seu testamento inacabado: a Arte da Fuga, obra única na história da música não concebida para algum instrumento em especial. Bach sempre fora robusto e gozara de boa saúde. Mas a vista era seu ponto fraco: míope desde criança, o esforço de escrever à luz de vela, ou de gravar ele mesmo as chapas de cobre para impressão de suas partituras, levou-o gradualmente à cegueira. Em março ou abril de 1750, submeteu-se a duas operações como o cirurgião John Taylor, que visitava Leipzig. Mas ambas fracassaram. Em 18 de junho de 1750, subitamente, ele recuperou a visão; mas, algumas horas depois, sofreu um ataque de apoplexia (lesão vascular cerebral) seguido de febre altíssima. Morreu dez dias depois.

Coincidentemente, a morte de Bach assinala o final de uma época, em que o Barroco que ele representava estava sendo substituído pelo Classicismo, pontuado por grandes mudanças tanto estéticas quanto ideológicas. Abria-se caminho, a partir das idéias dos filósofos iluministas, publicadas na Enciclopédia desde 1751, para a ascensão dos ideais revolucionários de oposição aos regimes absolutistas, que culminaram na Revolução Francesa. Durante muito tempo, as partituras desse extraordinário músico - das quais muitas se perderam - ficaram restritas a fechados círculos de especialistas. Só a partir de 1829, quando se fez a execução pública da Paixão segundo São Mateus, regida por Felix Mendelssohn, é que a obra de Bach passou a ser conhecida por um público mais amplo.

Comentários

Postagens Mais Lidas

literatura Canadense

Em seus primórdios, a literatura canadense, em inglês e em francês, buscou narrar a luta dos colonizadores em uma região inóspita. Ao longo do século XX, a industrialização do país e a evolução da sociedade canadense levaram ao aparecimento de uma literatura mais ligada às grandes correntes internacionais. Literatura em língua inglesa. As primeiras obras literárias produzidas no Canadá foram os relatos de exploradores, viajantes e oficiais britânicos, que registravam em cartas, diários e documentos suas impressões sobre as terras da região da Nova Escócia. Frances Brooke, esposa de um capelão, escreveu o primeiro romance em inglês cuja ação transcorre no Canadá, History of Emily Montague (1769). As difíceis condições de vida e a decepção dos colonizadores com um ambiente inóspito, frio e selvagem foram descritas por Susanna Strickland Moodie em Roughing It in the Bush (1852; Dura vida no mato). John Richardson combinou história e romance de aventura em Wacousta (1832), inspirada na re

Papel de Parede 4K

Chave de Ativação do Nero 8

1K22-0867-0795-66M4-5754-6929-64KM 4C01-K0A2-98M1-25M9-KC67-E276-63K5 EC06-206A-99K5-2527-940M-3227-K7XK 9C00-E0A2-98K1-294K-06XC-MX2C-X988 4C04-5032-9953-2A16-09E3-KC8M-5C80 EC05-E087-9964-2703-05E2-88XA-51EE Elas devem ser inseridas da seguinte maneira: 1 Abra o control center (Inicial/Programas/Nero 8/Nero Toolkit/Nero controlcenter) nunca deixe ele atualizar nada!  2 Clic em: Licença  3 Clica na licença que já esta lá dentro e em remover  4 Clica em adcionar  5 Copie e cole a primeira licença que postei acima e repita com as outras 5

Como funciona o pensamento conceitual

O pensamento conceitual ou lógico opera de maneira diferente e mesmo oposta à do pensamento mítico. A primeira e fundamental diferença está no fato de que enquanto o pensamento mítico opera por bricolage (associação dos fragmentos heterogêneos), o pensamento conceitual opera por método (procedimento lógico para a articulação racional entre elementos homogêneos). Dessa diferença resultam outras: • um conceito ou uma idéia não é uma imagem nem um símbolo, mas uma descrição e uma explicação da essência ou natureza própria de um ser, referindo-se a esse ser e somente a ele; • um conceito ou uma idéia não são substitutos para as coisas, mas a compreensão intelectual delas; • um conceito ou uma idéia não são formas de participação ou de relação de nosso espírito em outra realidade, mas são resultado de uma análise ou de uma síntese dos dados da realidade ou do próprio pensamento; • um juízo e um raciocínio não permanecem no nível da experiência, nem organizam a experiência nela mesma, mas, p

Wallpaper 4K (3000x2000)

Inteligência & Linguagem

Não somos dotados apenas de inteligência prática ou instrumental, mas também de inteligência teórica e abstrata. Pensamos. O exercício da inteligência como pensamento é inseparável da linguagem, como já vimos, pois a linguagem é o que nos permite estabelecer relações, concebê-las e compreendê-las. Graças às significações escada e rede, a criança pode pensar nesses objetos e fabricá-los. A linguagem articula percepções e memórias, percepções e imaginações, oferecendo ao pensamento um fluxo temporal que conserva e interliga as idéias. O psicólogo Piaget, estudando a gênese da inteligência nas crianças, mostrou como a aquisição da linguagem e a do pensamento caminham juntas. Assim, por exemplo, uma criança de quatro anos ainda não é capaz de pensar relações reversíveis ou recíprocas porque não domina a linguagem desse tipo de relações. Se se perguntar a ela: "Você tem um irmão?", ela responderá: "Sim". Se continuarmos a perguntar: "Quem é o seu irmão?", ela r