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Leitura(s) torta(s)

 O leitor certamente conhece a frase "O bom filho a casa torna". Vou logo dizendo que esse "a" não tem mesmo acento indicador de crase, mas isso é conversa que fica para outro dia.

Pois bem. Muita gente entende mal uma conhecida sentença, que é "semelhante" à primeira e vem da parábola do filho pródigo. Sabe qual é, não? É só trocar "bom" por "pródigo". Lá vai: "O filho pródigo a casa torna" (também sem acento no "a"). Muita gente acha que as frases se equivalem, como se "pródigo" fosse sinônimo de "bom", "magnânimo" etc., ou seja, como se o filho voltasse para casa porque não esquece os seus, porque lhes é grato e por aí vai. O filho pródigo volta para casa justamente porque é pródigo, ou seja, porque é esbanjador, gastador, dissipador. Leia a parábola, se for o caso.

O exemplo de leitura torta que acabamos de ver decorre do desconhecimento do real significado de uma palavra. Passemos para outro exemplo de leitura torta, que começa com o seguinte raciocínio: "Toda vaca voa; Mimosa voa, portanto Mimosa é...". Quem concluiu o raciocínio dizendo "portanto Mimosa é uma vaca" errou. E errou porque leu mal, porque pensou mal. Dizer que toda vaca voa não equivale a dizer que tudo que voa é vaca. Como vimos, esse caso de leitura torta decorre da deficiência no raciocínio lógico.

Agora vejamos um terceiro caso de leitura torta --para mim, o pior de todos. Refiro-me ao tipo de leitura de que é exemplo aquela que muitos fizeram do lúcido texto escrito por Maria Rita Kehl e publicado na "Ilustríssima" do último domingo. Eu sabia que não deveria ler os comentários postados na versão eletrônica do artigo. Um dos meus filhos bem que me advertiu ("Pai, não estrague o seu domingo"). Mas o burro aqui leu. E o que o burro viu? Caminhões de exemplos de leitura torta, raivosa, fruto do pior dos males, da pior das doenças: a brutalidade, a grosseria, o analfabetismo funcional.

Gente que não consegue diferenciar uma reportagem de um texto analítico se pôs a dizer grosserias como "Essa repórter deveria ir para a cozinha" ou "Por que essa jornalista não leva um bandido para a casa dela?". Santo Deus!

A respeitada psicanalista (psicanalista, não repórter --estava escrito nos créditos do artigo, santo Deus!) Maria Rita Kehl, cujo nome atravessa as nossas fronteiras, escreveu um artigo (artigo, não reportagem!) em que, essencialmente, defende a civilização, e, no estado de direito, civilização significa agir de acordo com a lei, seja quem for aquele que age (civil ou militar).

Para muita gente, no entanto, basta que alguém questione uma ação da polícia, umazinha que seja, para que se configure a defesa do banditismo (!!!), das ações dos bandidos (!!!) etc. Para essa gente, a polícia tem e sempre teve razão, em qualquer situação, fato, circunstância, tempo, período, era etc., o que configura um estado de coisas que tem um nome bem claro: nazifascismo (ou atraso, barbárie etc., etc., etc.).

Sugiro a essa gente que ouça (e entenda) "Nome aos Bois", dos Titãs. Sugiro ainda que leia, leia muito, mas leia o que desarma o espírito, eleva e enleva a alma. Se possível, que inclua na leitura um pouco de filosofia, de textos que aprimorem o pensamento. Para os que gostam de enxergar o que não há nos textos e/ou para os que gostam de atacar o que não foi dito ou ainda para os que atacam a pessoa e não as ideias (realmente) proferidas, sugiro a leitura de "A Dialética Erística", do filósofo Schopenhauer. Quem sabe a compreensão dessa obra fizesse muita gente ficar corada de vergonha por perpetrar tanta bobagem. É isso.


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