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Antônio Houaiss: Entrevista concedida a Veja (30/08/1978), a Humberto Werneck e Zuenir Ventura - Final


Veja - A língua pode ser usada como um instrumento de dominação ideológica. Em que medida isso teria ou estaria acontecendo no Brasil?
HOUAISS - Até o século XIX, o processo é visível. Há um momento em que o objetivo maior é extirpar todas as línguas que não fossem a portuguesa. Até o final do século XVIII, não podemos esquecer, o português era um idioma minoritário no país. A maioria falava a língua geral, o tupi. Nessa época, em São Paulo, as senhoras das
grandes famílias falavam tupi enquanto os maridos, fora de casa, iam discutir em caçanje, um português muito mal falado. Mas, a partir de um momento, já com o marquês de Pombal, baixam-se instruções para proscrever todas as línguas em favor da portuguesa. Porque Pombal tinha consciência de que a língua era um dos componentes fundamentais para a unificação. De lá para cá, o Brasil ficou na vanguarda do processo de padronização da língua portuguesa, através da normativização do idioma. Não é sem razão que desde a metade do século XIX os grandes gramáticos não são portugueses, mas brasileiros. Num processo de complexo colonial perfeitamente compreensível, os grandes puritanos da língua, em sua maioria, são brasileiros, ou portugueses vindos para o Brasil. E eles não só codificam uma gramática como também começam a determinar aquilo que podia e que não podia ser dito. Criaram uma camisa-de-força a qual ninguém podia escapar. Nesse sentido, o português chegou a um momento de disciplina tão rígida, tão dogmática, tão classista, que a condição sine qua non para você aceder á classe dirigente era manipulá-la com esses rigores. A língua se transformou num
instrumento de classe.

Veja - E hoje?
HOUAISS - Hoje, o purismo está sendo arrebentado. A classe dirigente está permitindo que isso aconteça. Ninguém está exigindo que os cânones puristas sejam praticados - a não ser a burocracia tecnocrática, quando tem que mandar a brasa. Quando tem de divergir, ela lembra que você errou no pronome. Para meter o pau, ela invoca a regra; para concordar com você, a regra não tem valor nenhum. Isso no magistério, na jurisprudência, no Direito. No jornalismo também: um jornalista que faz uma reportagem muito a favor de certas situações prevalentes, mesmo que o faça num português ruim, não será criticado: o conteúdo é que conta. Se escrever
contra, vão dizer que ele nem sequer sabe a língua portuguesa.

Veja - O senhor talvez tenha sido o primeiro a detectar, no começo da década, um fenômeno que foi muito sintomático, sobretudo na linguagem dos meios de comunicação: naquele momento de repressão e obscurantismo mais intensos, a imprensa estava usando uma linguagem circunloquial, metafórica, para dizer ou
sugerir o que era proibido. Hoje, com o panorama mudando, já se pode detectar fenômeno inverso?
HOUAISS - Minha tese continua válida. A decadência aparente da língua portuguesa, nos últimos tempos, foi
uma decadência entre aspas: derivava, em grande parte, do fato de se estar obrigando as pessoas a fazerem uso de um instrumento sem terem uma finalidade. Quem está interessado em usar uma língua quando os conteúdos mais importantes - as grandes questões da coletividade - estão proibidos? E esse problema continua talvez um pouquinho menos marcado, mas continua. Menos marcado porque a busca do contrário está sendo feita: onde quer que você convoque um número de brasileiros para assuntos mais sérios, como nos debates no Teatro Casa Grande, é impressionante a audiência, o comparecimento e as perguntas muitas delas elementares é verdade sobre assuntos que não são sequer objeto de consideração dentro dos currículos universitários e secundários, ou na imprensa. Não são tratados senão de uma forma convencional, oficial.

Veja - No pólo oposto à elementaridade, vemos o hermetismo da produção universitária brasileira. Como explicá-lo?
HOUAISS - Um pouco desse barroquismo é um recurso para poder dizer aquilo que muitas vezes não poderia ser dito de outra forma. Boa parte da ciência social, no Brasil, perdeu um pouco sua incisividade porque aspira a ser científica - quer dizer, aspira a não ser um discurso ideológico. Isso, a meu ver, a está comprometendo: a ciência social não pode deixar de ser engajada.

Veja - O que perdemos de mais importante nesses anos de repressão cultural?
HOUAISS - O que perdemos poderemos recuperar. Mas quantos homens de valor deixaram de aparecer? Que oportunidade os políticos tiveram para emergir? O fechamento impediu, também, que cada indivíduo colocasse politicamente sua profissão. Muitas e muitas opções profissionais têm sido determinadas pelas vantagens
materiais. Esse é um critério numa sociedade burguesa, que visa ao lucro, não é o critério das grandes vocações.

Veja - Em Portugal, antes do 25 de abril, dizia-se que as gavetas estavam cheias de boa produção intelectual e artística abafada pela censura. Não estavam. O que haverá nas gavetas brasileiras?
HOUAISS - Muitos livros foram proibidos no Brasil. Mas, no conjunto, não creio que a produção cultural chegue a estar tão comprometida. O que houve é que não se incrementou a produção livreira na proporção que seria de desejar. Só poderemos dizer que liquidamos o analfabetismo quando o consumo médio de livros e jornais dos
brasileiros for considerável. Nós somos, a esse respeito, dos países mais atrasados entre os que se consideram de cultura ocidental. As estatísticas oficiais são engordadas por folhetos do Mobral. O consumo de livros, revistas e jornais é ridiculamente baixo.

Veja - Um dos argumentos para a decantada decadência da língua portuguesa no Brasil seria a pobreza da linguagem da juventude. O senhor concorda?
HOUAISS - Não, não concordo. Se se der o momento em que essa juventude possa explodir, estou certo de que ela explodirá. Os jovens, evidentemente, não estão querendo aceitar as regras do jogo vigente. Mas aceitarão, no momento em que puderem participar da convenção da regra de um outro jogo. Teremos, então, surpresas fabulosas em todas as áreas do conhecimento científico, da ação humana, da poesia, da ética.
Insisto: a juventude está preferindo omitir-se a participar de algo que recusa. Isso se reflete claramente na linguagem. Uma das formas da linguagem presente do brasileiro é o uso de um cifra, de tal maneira que você não saiba o que ele está pensando. A juventude se abstêm com um código extremamente restrito, enigmático e ambíguo.

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