José de Anchieta poucas vezes é lembrado como o patriarca da vida intelectual brasileira, o que efetivamente foi. A publicação de Poemas - Lírica Portuguesa e Tupi (Martins Fontes, 226 págs., R$ 22,50), com organização de Eduardo de A. Navarro, repara essa injustiça histórica.
A poesia de Anchieta é mística. Não a mística dogmática e clerical, com que a Igreja tridentina tentou enquadrar os êxtases dos seus pares; nem mesmo a mística ortodoxa, inaugurada por Inácio de Loyola, com os Exercícios Espirituais, que controla os sentidos e organiza as imagens de acordo com padrões previamente estabelecidos. Na verdade, a mística do jesuíta atualiza construções eróticas - bem como concepções pouco ortodoxas na relação do homem com o divino, além de revelar sua filiação a um "cristianismo popular" e supersticioso. É o caso, por exemplo, de alguns versos do poema Cordeirinha Linda, que sugerem menos os suplícios do martírio do que uma velada relação amorosa entre a santa e Jesus: "Naquele lugar estreito,/ Cabereis bem com Jesus,/ Pois ele, com sua cruz,/Vos coube dentro do peito, ó virgem de grão respeito". Os exemplos são muitos, mas a comunhão amorosa não se dá apenas na esfera das divindades. No poema tupi Pitangi Porangeté, em versos consagrados à Virgem Maria, observamos um "eu lírico" que deseja estar no lugar de Jesus para mamar nos seios da mãe, como sugerem os versos seguintes: "Como mãe de Deus estás/Seu filhinho a amamentar./Vem-me bem alimentar,/Seja-te eu qual filho em paz". Na verdade, essa comunhão mística com a Virgem não se configura como heresia da parte de Anchieta, mas deve ser entendida como produção histórica, bastante comum no catolicismo ainda não reformado.
O exemplo é ilustrativo da existência, no texto do autor, de procedimentos inscritos em um "prática discursiva" do seu tempo, e que devem ser compreendidos como tal. Por outro lado, concebida de forma anacrônica, essa heterodoxia de Anchieta passa a ser lida como necessidade de adaptação dos dogmas católicos à colônia inculta - lembremos dos manuais de literatura, que nos ensinam que o uso que ele faz da redondilha é meramente didático, como se se tratasse de algo intencional e exterior, e não de uma visão de mundo incorporada internamente aos textos. Na verdade, essas imagens "profanas" e sensuais, tão ao gosto popular, vão de encontro ao monumento histórico que é o Anchieta culto, erudito, filiado ao humanismo, além de profundo conhecedor de teologia. Sob tal perspectiva, as fontes do lirismo só admitem, além da Bíblia e da Tradição Católica, as narrativas das legendas dos santos. Acredito, no entanto, que um detalhado levantamento daria conta do que revela um rápido passar de olhos: os temas bíblicos não são de forma alguma os privilegiados pelo jesuíta.
Uma última palavra sobre a lírica em tupi. Os temas são os mesmos da sua lírica portuguesa, e o preferido continuou sendo o da Virgem Maria e o menos canônico dos seus mistérios, qual seja, o da Assunção. Ainda aqui, a "contrafação ao divino" como Peter Burke chama o processo em que os jesuítas adaptam os dogmas católicos à cultura nativa empreendida por Anchieta deve ser considerada não apenas no âmbito da condição colonial ou da destruição da alma indígena, mas de uma técnica empregada tanto na América Portuguesa quanto na China por Matteo Ricci, quando queria explicar o evangelho aos mandarins.
A poesia de Anchieta é mística. Não a mística dogmática e clerical, com que a Igreja tridentina tentou enquadrar os êxtases dos seus pares; nem mesmo a mística ortodoxa, inaugurada por Inácio de Loyola, com os Exercícios Espirituais, que controla os sentidos e organiza as imagens de acordo com padrões previamente estabelecidos. Na verdade, a mística do jesuíta atualiza construções eróticas - bem como concepções pouco ortodoxas na relação do homem com o divino, além de revelar sua filiação a um "cristianismo popular" e supersticioso. É o caso, por exemplo, de alguns versos do poema Cordeirinha Linda, que sugerem menos os suplícios do martírio do que uma velada relação amorosa entre a santa e Jesus: "Naquele lugar estreito,/ Cabereis bem com Jesus,/ Pois ele, com sua cruz,/Vos coube dentro do peito, ó virgem de grão respeito". Os exemplos são muitos, mas a comunhão amorosa não se dá apenas na esfera das divindades. No poema tupi Pitangi Porangeté, em versos consagrados à Virgem Maria, observamos um "eu lírico" que deseja estar no lugar de Jesus para mamar nos seios da mãe, como sugerem os versos seguintes: "Como mãe de Deus estás/Seu filhinho a amamentar./Vem-me bem alimentar,/Seja-te eu qual filho em paz". Na verdade, essa comunhão mística com a Virgem não se configura como heresia da parte de Anchieta, mas deve ser entendida como produção histórica, bastante comum no catolicismo ainda não reformado.
O exemplo é ilustrativo da existência, no texto do autor, de procedimentos inscritos em um "prática discursiva" do seu tempo, e que devem ser compreendidos como tal. Por outro lado, concebida de forma anacrônica, essa heterodoxia de Anchieta passa a ser lida como necessidade de adaptação dos dogmas católicos à colônia inculta - lembremos dos manuais de literatura, que nos ensinam que o uso que ele faz da redondilha é meramente didático, como se se tratasse de algo intencional e exterior, e não de uma visão de mundo incorporada internamente aos textos. Na verdade, essas imagens "profanas" e sensuais, tão ao gosto popular, vão de encontro ao monumento histórico que é o Anchieta culto, erudito, filiado ao humanismo, além de profundo conhecedor de teologia. Sob tal perspectiva, as fontes do lirismo só admitem, além da Bíblia e da Tradição Católica, as narrativas das legendas dos santos. Acredito, no entanto, que um detalhado levantamento daria conta do que revela um rápido passar de olhos: os temas bíblicos não são de forma alguma os privilegiados pelo jesuíta.
Uma última palavra sobre a lírica em tupi. Os temas são os mesmos da sua lírica portuguesa, e o preferido continuou sendo o da Virgem Maria e o menos canônico dos seus mistérios, qual seja, o da Assunção. Ainda aqui, a "contrafação ao divino" como Peter Burke chama o processo em que os jesuítas adaptam os dogmas católicos à cultura nativa empreendida por Anchieta deve ser considerada não apenas no âmbito da condição colonial ou da destruição da alma indígena, mas de uma técnica empregada tanto na América Portuguesa quanto na China por Matteo Ricci, quando queria explicar o evangelho aos mandarins.
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