Primeiro, foi o frango. Depois, o iogurte. Mais recentemente, a dentadura. Qual será o próximo paradigma do sucesso do Plano Real? Mais um alimento? E por que não? Que ninguém se espante se dia desses o presidente tirar da manga um curinga que há muito, aliás, já podia ter posto na mesa: a cultura, o alimento do espírito.
Antes que o professor Francisco Weffort se assanhe e pense que vou elogiar sua performance ministerial, alerto: a cultura a que me refiro nada tem a ver com aquela entregue aos desvelos de sua Pasta. A cultura que o presidente poderia acrescentar ao frango, ao iogurte e à dentadura é, infelizmente, aquela que sai dos aparelhos de som das classes B, C e D, anima pagodes e forrós, mina os tímpanos nos bailes funk e já impôs sua hegemonia nos canais abertos da televisão.
Certo, ela já existia, mas era restrita, periférica, e não tinha como se expandir porque seus consumidores em potencial mal conseguiam pagar as contas do armazém. Alforriados pelo Plano Real, eles não apenas passaram a comer frango, iogurte e a pedir Corega na farmácia como entraram de mala e cuia na sociedade de consumo, influindo decisivamente no perfil do mercado cultural. Temos de dar a mão à palmatória: sem o Plano Real, não teríamos nas paradas de sucesso tantas duplas sertanejas, tantos grupos do gênero Gerasamba e Só Pra Contrariar, nem o tchan teria chegado a Montreux como um exemplo de nossa pujança glúteo-musical.
Talvez fosse politicamente mais correto de minha parte saudar a ascensão dos mais desvalidos aos produtos da indústria cultural. Um demagogo o faria com a maior cara-de-pau, apoiado pelos populistas de plantão, useiros e vezeiros em confundir o popular com o popularesco, o singelo com o medíocre e a autenticidade com a breguice. Não o faço, acima de tudo, por excesso de pudor. A cultura só tem a perder quando orientada para o gosto rombudo e as almas caipiras.
Sempre que lhe parece oportuno, Fernando Henrique Cardoso compara as intenções (ou as metas) de seu governo às do governo Juscelino Kubitschek. Sublimar não é proibido, mas, no quesito cultura, FHC não tem a menor chance de entrar para a história como um Péricles tupinambá. Pelas evidências disponíveis, em seu reinado, mesmo admitida como líquida e certa a sua reeleição, não desfrutaremos de uma renascença nem sequer remotamente comparável à dos anos JK, quando, à sombra de uma Copa do Mundo (futebol também é cultura), por aqui floresceram a Bossa Nova, o Cinema Novo e outros movimentos inovadores nas áreas das artes plásticas, da poesia e do jornalismo.
Não estou sendo saudosista, apenas realista. Mesmo se levando em conta a indiscutível qualidade de uma e outra revelações mais ou menos recentes, como, por exemplo, o cineasta Jorge Furtado, há muito não vemos surgir alguém que possamos qualificar, sem hipérbole, compadrio ou corporativismo geracional, de gênios da raça, como Tom Jobim, Glauber Rocha e Caetano Veloso. Mas ausência de talentos exponenciais, de resto circunstancial, não é o x do problema. O que mais nos aflige é a ausência de criadores que nos dêem a impressão de que não serão descartados pelo tempo, de que não são meros produtos de hype ou de circunstância, de que afinal deixarão sua cicatriz no mapa.
Pobre FHC. Quis o destino que ele, logo ele, um intelectual de verdade, ascendesse ao trono numa época particularmente difícil para a cultura, órfã de gênios, emasculada pela supremacia mercadológica e desassistida pela mídia, cuja submissão aos mais deletérios interesses da indústria cultural já virou, a meu ver, um escândalo. Foi nesse vácuo que, com a ajuda do Plano Real e a colaboração espontânea de décadas e décadas de ignorância e analfabetismo, aparvalhadas figuras como Tiririca e Carla Perez ascenderam ao proscênio. Nada tenho contra palhaços e cockteasers; sei, inclusive, que faz parte do repertório humorístico dos palhaços maltratar o vernáculo e a gramática, mas o Tiririca exagerou na regressão - e, não satisfeito, lançou um sucedâneo mirim. Já tivemos palhaços de outra estirpe, como Piolim, nosso clown modernista, e Carequinha, cantoras bregas e afrodisíacas bem mais, digamos, expressivas que a rainha do tchan (Gretchen? Claro), e se capricharmos no inventário, descobriremos que até em matéria de roedores pioramos um bocado: o Ratinho que fazia dupla com o Jararaca era infinitamente mais interessante, e sobretudo mais inofensivo, que o seu atual xará televisivo.
Resta ao presidente e a nós todos um consolo: no resto do mundo, as coisas não andam diferente. Também lá fora o nível caiu a níveis assustadores. O cinema foi engolido pela mesmice, pela brutalidade, por efeitos especiais e por uma imbecilização satisfeita cujo emblema é a série Debi e Lóide. Nem mesmo o rock, o ritmo oficial da entropia pop, conseguiu escapar à epidêmica pasmaceira. A deserção em massa para a mídia eletrônica causou estragos, aparentemente irreversíveis, nos índices (e sobretudo na qualidade) de leitura de jornais, revistas e livros. Recente pesquisa da Unesco revelou que, de uns anos para cá, os textos de publicações e livros encurtaram tremendamente de tamanho e empobreceram na mesma proporção no que diz respeito ao estilo e ao vocabulário. O mundo amoldou-se aos zumbis da informática, aos que os americanos chamam screenagers (adolescentes "educados" diante do monitor), aos ignaros, aos semiletrados, aos brucutus. O homo sapiens já fez um sucessor: o homo debilis. Ele é a cara do Tiririca.
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