A economista-chefe do banco Santander, Ana Paula Vescovi, avalia que a situação fiscal é o ponto de “fragilidade macroeconômica” do País e o que o esforço do ajuste das contas públicas está bem longe de ser concluído.
Ex-secretária do Tesouro, ela diz que o governo deveria buscar melhorar o resultado das contas públicas com foco na revisão de gastos, em vez de buscar um aumento da arrecadação.
“Temos um déficit estrutural e um ajuste que está sendo levado pelo lado da arrecadação, das receitas. Isso não retira o caráter do problema”, afirma. “Provavelmente, a gente vai ter de, a cada momento no tempo, rever de novo esse patamar de carga tributária para dar conta do crescimento de despesas.”
Na avaliação de Ana Paula, o País também deveria encaminhar um ajuste estrutural por meio de uma “reforma do Estado ampla”, com o objetivo de melhorar a eficiência do gasto público.
“Eu volto ao argumento de que o País deveria fazer (o ajuste) pelo lado da despesa, colocar esse processo de reforma do Estado em larga medida e trazer um elemento central, que eu chamo de gestão eficiente dos recursos, para poder fechar finalmente essa equação do ajuste fiscal”, diz.
A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.
A situação fiscal brasileira é o nosso ponto de fragilidade macroeconômica. Temos um déficit estrutural e um ajuste que está sendo levado pelo lado da arrecadação, das receitas. Isso não retira o caráter do problema. Nós temos despesas, em grande medida, obrigatórias. Mais de 90% são obrigatórias e grande parte delas está indexada. E é um crescimento de despesas que ainda não está enquadrado dentro do que a gente poderia acreditar que seja um crescimento potencial do nosso PIB (Produto Interno Bruto), o que nos leva a uma situação em que o endividamento é muito pressionado pelo lado da despesa.
Levando esse ajuste para o lado da arrecadação, ou a gente altera estruturalmente a carga tributária do País ou vamos ter de elevar a arrecadação em determinados anos. Provavelmente, a gente vai ter de, a cada momento no tempo, rever de novo esse patamar de carga tributária para dar conta do crescimento de despesas. Esse é um problema do ajuste do lado da receita, sendo que (o aumento) da carga tributária retira um certo oxigênio da sociedade e também do PIB, da capacidade de o País crescer. Esse é o principal conceito que nos preocupa, porque os ajustes do lado da despesa levam o País a conviver com uma taxa de financiamento mais baixa, por exemplo. E isso já vivenciamos no passado recente, mas escolhas são feitas.
Sobre o momento atual, o governo colocou no Orçamento (um aumento de) cerca de R$ 170 bilhões de arrecadação com base em medidas que estão sendo discutidas ou que foram enviadas ao Congresso. A função da Receita Federal, em grande medida, é fazer esse processo de estimar a arrecadação. Além de nós não termos todas essas medidas aprovadas - ou em vias de aprovação -, há uma certa contestação sobre o valor dessas estimativas. Esse é um ponto de risco de execução do ajuste fiscal proposto. Tem um outro ponto, que é a questão de confiança ou credibilidade ou ancoragem de expectativas no processo de ajuste, ainda que seja no longo prazo e com escolhas que se alterem ao longo do tempo. O marco fiscal veio para cobrir essa lacuna e ancorar as expectativas. Acontece que o marco não está conseguindo fazer isso, dado que a gente vê nas expectativas de mercado um crescimento da dívida de quase dez pontos até o final do governo. Cerca de dois pontos porcentuais por ano.
O novo marco fiscal, de fato, sinaliza que, dado o nível de arrecadação, o governo tem de preservar, pelo menos, 30% para abater a dívida, mas também que, nessa banda de despesas que foi criada, que limita a despesa ao longo do tempo, existem dificuldades e riscos de execução. Se a gente colocar na equação todos os componentes que estão na mesa hoje, como, por exemplo, a indexação das despesas previdenciárias com o salário mínimo, o crescimento real do mínimo, a recomposição do salário dos servidores públicos, a nova indexação das despesas de saúde e educação pela receita corrente, a conta não fecha. Então, eu acredito que a gente vai ter isso mais patente nos próximos meses ou o governo terá de enviar, pelo menos, uma medida para restabelecer essa indexação das despesas de saúde e educação, para que o marco fiscal fique mais crível do lado da execução da despesa.
O arcabouço tem componentes que podem dar alguma flexibilidade a esse marco, como, por exemplo, se não cumprir a meta de resultado primário, é possível acionar alguns mecanismos de ajuste automático. Mas eu acredito que uma medida como essa, se tiver apoio do Congresso, se for votada e trouxer uma regra de indexação nova para as despesas de saúde e educação mais compatíveis com esse compromisso de ter uma banda de despesas em função do patamar de arrecadação, ajuda a dar mais credibilidade ao novo marco fiscal.
A nossa projeção pressupõe algo que já está acontecendo. Nós temos uma expectativa de inflação convergindo para 3,8% no ano que vem, de 4,7% este ano. É uma continuidade de um processo de desinflação no Brasil. Nós temos uma deflação no atacado, uma deflação na área de alimentos, e isso muda um componente importante das receitas em termos nominais. Na comparação interanual, temos dois ou três meses com números negativos na arrecadação federal.
Um outro componente que tende a afetar a arrecadação é o fator cíclico da atividade. Nós sabemos que a política monetária tem a sua eficiência e acreditamos numa desaceleração da atividade econômica neste segundo semestre. Essa desaceleração cíclica tende afetar a arrecadação pública como um todo. Além disso, os preços das commodities estão mais comportados, o que ajuda a explicar um pouco a parte da redução da arrecadação, assim como os lucros corporativos mais contidos.
Na nossa estimativa, o que já foi anunciado tende a gerar uma arrecadação entre R$ 60 e R$ 70 bilhões. E o que está em negociação e acabou de ser proposto, agora, no âmbito do Orçamento, uns 30% (do previsto). Mas de novo: é preciso ter mais visibilidade desse processo, porque, do lado de cá, vemos as estimativas da Receita e temos pouca informação. Há pouca transparência de como essas estimativas são feitas, quais são as bases de cálculo e quanto realizou do que foi estimado.
Desde o início do ano, cessou-se o aproveitamento de créditos do PIS/Cofins sobre o ICMS. Só que a gente não sabe quanto isso gerou. Eu acho que deveria ter uma transparência maior porque ajudaria, inclusive, a formar a opinião do lado de cá, e a gente ter, talvez, uma convergência maior dessas expectativas. É difícil ter os mesmos modelos que a Receita tem. Nós fazemos algumas hipóteses, algumas inferências, inclusive, ouvindo as empresas que estão do outro lado, os atores que estão do outro lado, que vão pagar esses impostos. O que acontece muito é a gente ter uma conversa com um setor que está sendo, de alguma forma, sensibilizado por uma medida, e, às vezes, não coincidir a expectativa de arrecadação da Receita com expectativa ou a capacidade de pagar do outro lado da equação. Eu acho que é por isso que, às vezes, a gente tem dificuldade de chegar aos mesmos números, além dessas hipóteses todas que mencionei, como ciclo de atividade e tudo mais.
Antes de mais nada, tem um conceito que eu acredito muito, por experiência de anos no setor público, que é o nível do gasto não explica sua qualidade nem a sua efetividade. Eu acredito mais no processo de avaliação permanente. O (Ministério do) Planejamento tem um time dedicado a se debruçar sobre isso. É super importante, porque a gente precisa sair em defesa de quem paga imposto e dos cidadãos que precisam do Estado e dos serviços públicos. É saber se o gasto está sendo efetivo, se está impactando a vida das pessoas.
O Brasil está cheio de exemplos de políticas públicas que não são caras, mas que são intensivas em gestão e processos de avaliação permanente e que dão resultado muito bom. Avaliar é muito importante. Isso é fundamental. Essa vertente que viabiliza, de um lado, ter um Estado responsável fiscalmente, que consegue conter ao longo do tempo o crescimento da despesa pública e, de outro lado, entregar mais resultado para a sociedade e ajudar a impactar mais a vida das pessoas ao longo do tempo, tornando a sociedade menos desigual. É a única equação que fecha.
Não é que seja difícil. Ela precisa ganhar cada vez mais visibilidade. É muito mais do que uma agenda de controlar dinheiro público. É saber escolher, saber dizer: ‘olha, esse programa, que já foi importante no passado, não está gerando mais efeito. Por alguma razão, a gente precisa mudar o desenho, aprimorar o desenho ou até descontinuar o programa’. Quando a gente não tem limites claros, dificulta esse processo de escolhas numa sociedade muito desigual e ainda muito dependente do Estado para prover serviços básicos, como saneamento, saúde, educação e segurança. Não é que seja difícil. Precisa dar mais visibilidade, e a gente precisa trazer à luz os bons exemplos que acontecem para fortalecer esse movimento.
O mundo passou por um processo de maior endividamento com a pandemia e a guerra (na Ucrânia). Vemos economias avançadas que também tiveram alta de endividamento muito importante. O mundo está convivendo com juros mais altos e pressões inflacionárias recentes, que ainda estão sendo debeladas. Para o Brasil, que tem uma poupança doméstica insuficiente para o desafio de alcançar um estágio de desenvolvimento mais alto, reduzir as nossas fragilidades é algo importante. Desde 2014, temos o processo de aumento da dívida pública no Brasil. É um esforço de ajuste fiscal que não está concluído, está bem longe de ser concluído e isso é uma fragilidade. Ou seja, a partir do momento que a gente tem algum outro choque, algum outro evento externo, o Brasil tende a ser afetado.
Eu volto ao argumento de que o País deveria fazer (o ajuste) pelo lado da despesa, como é que a gente faz para colocar esse processo de reforma do Estado em larga medida e trazer um elemento central, que eu chamo de gestão eficiente dos recursos, para poder fechar finalmente essa equação do ajuste fiscal. Isso é que fecha equação. A gente consegue conter despesa e, ao mesmo tempo, prover serviços para as pessoas. É uma reforma de Estado ampla, do papel, da eficiência e da vinculação do Estado aos cidadãos, de aumentar a percepção dos cidadãos quanto à importância do Estado, seja grande ou pequeno, porque são escolhas temporárias. É a efetividade, a capacidade de entrega das políticas públicas que concede no que eu chamo de coisa social o reconhecimento da importância do Estado para os seus cidadãos.
Comentários