Pastilhas coloridas cobrem as paredes do escritório. Isso quando não desaparecem atrás de fotografias de mulheres seminuas, em poses sensuais e despudoradas, coladas uma ao lado da outra.
A assepsia do ambiente de trabalho convencional ainda é rompida pelos tipos que circulam por ali, em roupas chamativas e trejeitos caricatos.
Sobriedade não combina com aquele ambiente, e tampouco com o jornal que tem ali a sua sede. O Notícias Populares, afinal, tinha suas páginas preenchidas por escândalos criativos, de bebês demoníacos a palhaços que roubavam órgãos de criancinhas.
Foi essa sensação de caos que André Barcinski e Marcelo Caetano quiseram trazer para a série homônima, que funciona como uma crônica bem-humorada do diário fundado em 1963 como parte do Grupo Folha, empresa que edita este jornal, e que estreia em meio às comemorações de 25 anos de vida do Canal Brasil.
As pastilhas icônicas foram recriadas, tendo como lastro a memória do próprio Barcinski, que trabalhou no jornal no início dos anos 1990. Elas foram coladas às paredes do mesmo prédio no centro de São Paulo onde o NP, como era chamado, funcionou, ocupado pelo set de filmagem por quatro semanas em agosto do ano passado.
Barcinski e Caetano, que já trabalharam juntos na série "Hit Parade", do mesmo canal, contam que era importante ter um cenário real para a série de ficção, que se apropria de histórias do diário, mas apresenta ao público personagens imaginários.
Também era essencial traduzir o clima da Redação do Notícias Populares, frenética e desordenada, distante do que se costuma ver em filmes americanos sobre jornalismo. Hollywood glamoriza a imagem do profissional, adverte um personagem já no primeiro episódio, denunciando que a produção nacional tomará um caminho bem diferente.
"Notícias Populares" tem uma trilha sonora carregada, cortes de câmera abruptos, visuais cafonas e uma montagem ágil. Tudo foi pensado para emular o sensacionalismo que originava chamadas cabulosas do jornal, como "Mulheres seguram Lúcifer do ABC no colo", "PM procura dono do pênis voador" e "Vampiro atacou 40 japonesas".
"Eu queria que o espectador folheasse o jornal ao ver a
série. Queria reproduzir a experiência, remeter à vertigem que era ler o NP, porque era um jornal do exagero, que provocava sensações extremas. Não dava para ser chique", diz Marcelo Caetano, que também dirigiu o filme "Corpo Elétrico".
"Às vezes as redações dos filmes parecem hospitais, com tudo silencioso. Mas é um
esporro. Você não conseguia pensar na Redação, porque era barulho de buzina com gente entrando, máquina de escrever, fumaça de cigarro. Era uma cacofonia. Foi legal filmar no prédio original, porque evocava nostalgia", acrescenta André Barcinski, que passou pouco mais de um ano no diário.
Ambos reforçam que o Notícias Populares não fazia fake news. O jornal soava sensacionalista porque ouvia todas as partes, do rumor à autoridade, e, na hora de enviar as páginas à gráfica, escolhia o que havia de mais palpitante para alçar às manchetes.
Na cobertura mais lembrada, a do Bebê-Diabo, as reportagens traziam aspas de médicos dizendo que o nascimento da criança com aspecto infernal era mentira, mas davam espaço para padres que não negavam a criatura sobrenatural.
Barcinski e Caetano destacam que o NP tinha relação passional com os leitores, que se apegavam a ele porque suas páginas abordavam temas populares e invisibilizados e por causa de colunas precursoras, como as especializadas no candomblé e na vida gay.
"Não era só um espreme que sai sangue. Era um jornal complexo. As manchetes às vezes eram voltadas para a violência, ao crime, que era o que mais vendia jornal junto com o sexo e o sobrenatural, mas havia prestação de serviço para a população, que tentamos mostrar", diz Caetano.
"As pessoas não compravam o NP para se divertir, mas se informar na época que não havia internet. Ele era a voz da comunidade, mas tinha seus problemas", afirma Barcinski.
Luciana Paes, atriz de veia cômica e olhar forte, vista em filmes como "Sinfonia da Necrópole" e "O Animal Cordial", concorda. Ela diz que o NP servia de espelho do Brasil profundo, um reflexo da cultura do país.
"Fazer essa série me deu a sensação de entender mais a mentalidade do Brasil. É um país onde a verdade sempre fica um pouco ameaçada, porque existe um lugar muito forte de superstição, das crendices populares, que é algo que o NP carregava. Enquanto nação, a gente flerta com o absurdo. Está no DNA", diz.
Ela conta que lá havia nomes como Laura Capriglione, Leão Serva e Fernando Costa Netto. Como Barcinski, eles fizeram parte de uma juventude levada ao NP para modernizar o jornal, como novos guias.
Na série, ambientada nos anos 1990, Paes dá vida a uma jornalista fictícia, Paloma, que chega para chefiar a Redação do Notícias Populares depois de passar uma temporada como correspondente em Paris.
A orientação é reformular o jornal, que precisava ficar mais sério para combater a queda nas vendas e a concorrência, que surgia com programas popularescos da televisão. A cada episódio, dois casos icônicos do jornal são recuperados, enquanto Paloma desce ao que Barcinski e Caetano chamam de "coração maravilhoso e cruel do Brasil".
A linha entre realidade e ficção é tênue, mas embasada na pesquisa nos acervos da Folha, em mais de mil exemplares do NP que foram revirados do avesso na pandemia de coronavírus e em conversas com ex repórteres e fotógrafos.
Alguns deles fazem pontas na série e deram aulas à equipe e ao elenco de "Notícias Populares", falando sobre o diário e os ajudando a encarnar os tipos daquela Redação.
Barcinski e Caetano tiveram o aval de Otavio Frias Filho, filho de Octavio Frias de Oliveira, diretor de Redação da Folha e diretor editorial do Grupo Folha até sua morte, há cinco anos, para gravar a série. No que depender deles —e do acervo de notícias do NP—, ainda há material para outras temporadas.
A última temporada do Notícias Populares, o jornal, por sua vez, foi em janeiro de 2001, quando circulou a edição final.
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