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Entrevistando Décio de Almeida Prado às vésperas do lançamento do livro Seres, Lugares, Coisas.

Veja - Após sessenta anos de teatro, qual peça não deu para esquecer?
PRADO - São muitas. Uma lembrança que sempre vem em primeiro lugar é Um Bonde Chamado Desejo, a que assisti em 1958, em Nova York. Marlon Brando, muito jovem, fazia o principal papel masculino. Jessica Tandy era sua cunhada, meio louca, que acaba sendo estuprada. O texto, de Tenessee Williams, era ótimo, uma visão de realidade que não era naturalista, mas transformada pela sensibilidade do autor, num estilo que se pode chamar de realismo poético. Marlon Brando tinha um desempenho impressionante, inclusive pelo físico de atleta. Jessica Tandy já exibia aquele talento enorme que sempre se viu no cinema, até como a senhora de Conduzindo Miss Daisy. Um grande espetáculo deixa você emocionado, depois quer ficar em pé e bater palmas. Essa encenação era assim.

Veja - Qual o grande espetáculo brasileiro?
PRADO - A Moratória, de Jorge Andrade, numa direção de Gianni Ratto, em 1955. Era deslumbrante. Trouxe vários atores jovens, entre os quais se destacava Fernanda Montenegro, hoje nossa grande atriz. Alguns anos
antes, nós havíamos tido Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, que foi aquele choque. Até hoje me lembro de uma cena produzida pelo diretor, Ziembinsky, em que, para demonstrar a perda da memória da personagem principal, ele fazia sumir algumas cadeiras que estavam no palco. Pura mágica. A Moratória foi um espetáculo que me tocou muito, até porque toda peça, para ser boa, precisa tocar quem a assiste. Ali havia a emoção estética, de uma apresentação que confrontava no palco presente e passado, antes e depois da crise de 1929. Além disso, a peça fala da decadência das famílias que tinham fazendas de café e faliram, o que aconteceu com o avô de Jorge Andrade. Eu tinha 12 anos na época, e a partir de então a crise era a conversa de todos lá em casa. Não apenas do pai, mas dos primos e dos tios. Falava-se em crise o tempo inteiro.

Veja - Por que o senhor considera Gonçalves Dias, um romântico do século passado, nosso maior autor?
PRADO - Nós temos uma visão errada do romantismo, especialmente de sua primeira fase, de 1830. Era uma coisa destruidora, violenta, muito moderna. Gonçalves Dias, mulato, filho ilegítimo, foi um desses brasileiros que eram modernos em seu tempo. Tratava de temas fortes, pesados. Chegou a ser proibido pela censura do Império porque fez uma peça em que o assunto era o incesto. Mas sua grande peça, Leonor de Mendonça, tratava de temas que permanecem atuais. A partir de uma suspeita de adultério, a peça debate os direitos da mulher e também discute a diferença entre grandes e pequenos nobres. É uma obra-prima, comparável aos grandes românticos europeus.

Veja - Podemos dizer que a grande fase do teatro moderno acabou?
PRADO - Sem dúvida, e quando penso nisso me considero uma pessoa de sorte. Sempre gostei de teatro e tive a chance de acompanhá-lo em sua melhor época. Ela começou no fim dos anos 40 e durou até o final da
década de 60. Nesses anos, nosso teatro amadureceu, pois frutificou o trabalho de diretores estrangeiros que vieram ao Brasil e mudaram nosso jeito de representar, num progresso semelhante ao que mestres como
Lévi-Strauss, Fernand Braudel e outros promoveram no ensino superior quando lecionaram na USP. Tivemos atores se formando, diretores que aprenderam melhor seu ofício. O teatro tornou-se uma atividade cultural por excelência, o que você representava no palco as pessoas discutiam depois, no jantar em família, com amigos.

Veja - Mas as salas vivem cheias...
PRADO - Essa é a diferença. O teatro está lotado, os atores ganham dinheiro, mas algo se perdeu. Antes, era uma atividade refinada. Havia relevância intelectual naquilo que se via no palco, uma peça servia para influenciar a vanguarda da sociedade, as pessoas cultas. Hoje, você vai ao teatro para ver atores da Globo. Não digo que está errado, o trabalho deles. Mas o teatro virou às vezes uma extensão da novela. O ator não é mais o ator, o galã é que agora está no palco. Outro sintoma é a preferência por comédias, especialmente as ligeiras.

Veja - O que há de errado com o besteirol?
PRADO - Não tenho nada contra. Mas a comédia leve é aquele gênero que não compromete você com nada, e, quando a peça é bem-feita, tem retorno de bilheteria assegurado. No início do século, o teatro brasileiro vivia desse tipo de espetáculo, uma imitação do vaudeville francês. Quando começou um movimento de renovação, que levaria ao modernismo no palco, havia muita resistência, e ela partia do pessoal que só queria fazer comédia. Teve um sujeito que chegou ao cúmulo de elaborar a tese, em congresso de escritores, de que o teatro, no Brasil, deveria ser feito apenas na forma de comédia, pois o humor e o riso estavam na gênese do povo. Ninguém precisa enganar-se: foi um progresso fazer drama e encenar tragédias.

Veja - Como é a situação em outros países?
PRADO - Também há sinais de um certo retorno técnico ao palco do século XIX. Nos Estados Unidos, nada faz tanto sucesso como o musical. E o que ele mostra? Efeitos especiais, como em O Fantasma da Ópera, no qual todos queriam ver o momento em que um lustre imenso vem ao chão. Em Titanic, a maior atração, segundo li, é o naufrágio. É o teatro de volta a um tempo em que o cinema não existia, quando os espetáculos tinham de ser cheios de truques, o palco era rico. O que eu gosto do teatro em que se vai para ver o ator, uma representação na qual os truques são impossíveis. No cinema, até um cachorro pode virar ator. No teatro, não.

Veja - O curioso é que essa mudança ocorre numa fase em que não falta dinheiro...
PRADO - Quando eu era jovem, nos anos 30, vivia com medo de que o teatro fosse acabar. São Paulo chegou a ter apenas duas casas de espetáculos em funcionamento, sendo que antes tivera oito. No fim dos anos 40, uma jovem que se iniciava na carreira de atriz me perguntou sobre o futuro da profissão. Eu a estimulei, mas lembrei, inseguro, que ninguém era capaz de garantir nada sobre uma atividade tão instável. Um pouco depois, o industrial Franco Zampari, criador do Teatro Brasileiro de Comédia, ficava muito contente quando conseguia
empatar os gastos. Não podemos esquecer, ainda, que a grande modernização do teatro, nos anos 40, começou com grupos amadores. Eles é que tinham interesse em peças mais atuais, e também aceitavam
novas técnicas de direção. Os profissionais mais conhecidos daquela época ganhavam bem, e talvez por isso não quisessem nenhuma mudança.

Veja - Foi então que surgiram grandes atores.
PRADO - Tivemos uma grande safra. Paulo Autran e Maria Della Costa, por exemplo, realizaram interpretações antológicas em Depois da Queda, de Arthur Miller, outro grande autor americano de nossa época. Mas
raramente vi alguém como Sérgio Cardoso em Hamlet. Sua história é a prova de que a profissão de ator é especial. Um pianista, por exemplo, precisa passar anos no conservatório. Depois, terá de enfrentar temporadas fazendo apresentações menores até que, por fim, terá sua chance em concertos. Um ator não precisa de tanta preparação. Seu material de trabalho é a realidade, e ele está em contato com a realidade desde o nascimento, se for uma pessoa com talento e senso de observação. Um ator também precisa de um tipo especial de
imaginação para construir o personagem. Isso explica como Sérgio Cardoso fez um ótimo Hamlet quando tinha apenas 23 anos. Era muito talento. Nossa grande atriz, quase uma unanimidade, foi Cacilda Becker. Ela era tão popular que, quando morreu, foi um choque comparável ao da morte de Elis Regina.

Veja - O senhor teve a oportunidade de conviver com Mário de Andrade e Oswald de Andrade, líderes do modernismo. Como eram eles?
PRADO - Nós éramos jovens em torno dos 20 anos, e eles eram da geração de meu pai. Mário vivia com a mãe, numa casa simples, na Barra Funda. Tinha uma biblioteca enorme, era muito organizado. Nós éramos mais cerimoniosos com ele, a quem chamávamos de senhor, mantendo uma certa distância. Era muito mais respeitado do que o Oswald, que não disfarçava o ciúme que tinha desse prestígio. É um dado que se esqueceu: quem era importante, quem dava as cartas, era o Mário de Andrade. A sua obra era considerada, lida. A de Oswald só pôde ser avaliada, de verdade, após sua morte. Antes disso, era escondida por seu comportamento de piadista. Ele se arrependeu dessa postura, no fim da vida, quando quis uma cadeira na filosofia da USP, onde fizeram até uma lei para que não pudesse concorrer. Foi triste, mas seria uma
desmoralização. Ele era bem informado e inteligente, mas não tinha vocação de professor universitário.

Veja - Oswald chegou a lhe pedir que apresentasse O Rei da Vela, no tempo em que dirigia um grupo amador. Por que o senhor não aceitou?
PRADO - A peça era da década de 30, e parecia ter perdido atualidade.

Veja - Perdera atualidade ou era ruim mesmo?
PRADO - Eu achava que era ruim. Essa peça não existiria sem o José Celso Martinêz Corrêa, do Oficina. Foi ele quem descobriu o que estava escondido no texto. No início, até o José Celso achava ruim, dizia que era
futuristóide.

Veja - Num de seus livros, o senhor faz uma pergunta: Nelson Rodrigues é um gênio ou um manipulador de melodramas? Qual a resposta?
PRADO - Quem responde é o futuro. A Semana de Arte Moderna de 22 foi uma manifestação artística a que poucos assistiram. O futuro mostrou sua importância. Nelson Rodrigues escreveu a primeira grande obra do
nosso teatro moderno, Vestido de Noiva. Mas eu discordo dessa recuperação que fazem dele hoje em dia. Seus méritos têm sido distorcidos, e ele tem sido apresentado como pensador, como homem que refletia o país, o que nunca foi. Ele está sendo elogiado pelo que tem de pior, o melodrama.

Veja - Num ensaio de grande beleza, o senhor lamenta que Gianfrancesco Guarnieri tenha parado de escrever. Por que isso aconteceu?
PRADO - O Guarnieri começou com uma peça inovadora, Eles Não Usam Black-Tie. Essa peça é um marco: colocou o operário no palco. Pela primeira vez no teatro brasileiro - e em poucos países existe algo parecido - se apresentou o trabalhador em seu cotidiano, seu modo de vida, seus costumes e seus problemas. Guarnieri ainda teve o mérito de apresentar uma família de operários no centro de um drama, gênero que a tradição teatral costumava reservar às classes altas - às pessoas simples do povo estavam destinadas as farsas ou, no máximo, as comédias. Muitas pessoas dizem que a arte, às vezes, é prejudicada por um projeto político. No caso do Guarnieri, aconteceu o contrário. Ele tinha um projeto político, socialista, que foi muito benéfico para sua arte. Era seu grande alimento. Quando esse projeto acabou, ele não pôde mais escrever com a força de antes.

Veja - O senhor dirigiu o extinto Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, em que intelectuais de primeira linha escreviam. Hoje, muitas pessoas dizem que sentem falta de uma publicação com esse padrão. Concorda?
PRADO - Quando eu cuidei do Suplemento, entre 1956 e 1966, já havia muitas reclamações. Diziam que não era jornalístico, que falava de coisas que não interessavam ao leitor comum. Desde então me convenci de que
existe uma incompatibilidade entre literatura e jornalismo. A literatura quer ser eterna, sonha com obras de longa duração - tanto que assistimos a autores como Shakespeare, ou lemos poetas de milênios, como Homero. O jornalismo se ocupa do momento, tanto que não se lê jornal de ontem. Essa incompatibilidade sempre existiu, mas agora aumentou muito. O próprio espaço de debate nos jornais ficou menor. Quase não há lugar para a crítica de espetáculos, dando-se preferência a um relato informativo, falando da estréia que vai ocorrer. A crítica,
como consciência de uma obra, está perdendo espaço.

Veja - O que provocou tantas mudanças, na imprensa, no teatro, no cinema...
PRADO - Foi a vida. Um físico americano diz que nossa época não é diferente das anteriores porque agora ocorrem mudanças. Também havia mudanças, e muito profundas, nas outras épocas. A diferença é que as
mudanças ocorrem num ritmo muito mais veloz. Antes, cantavam-se canções napolitanas que os pais ensinavam aos filhos, e esses, aos netos. Assim, passava-se cinqüenta anos ouvindo a mesma música. No
teatro, havia peças que ficavam trinta anos no repertório de um ator ou uma atriz. Hoje, quando uma música toca por seis meses no rádio já é considerada um estouro - antes, você ouvia a mesma música por vários anos. Isso é que mudou. Às vezes, quando você conseguiu entender o que aconteceu, uma peça, uma música, um livro, isso já não tem importância.

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