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Burle Marx - entrevista concedida a Veja (19/09/1973) após fazer uma viagem de 4 mil quilômetros pelo Brasil. - Parte 1



Veja - Nos países desenvolvidos, de um modo geral, existe uma preocupação clara e bastante antiga com a preservação da natureza. Alguns deles dificultam ao máximo o funcionamento de indústrias excessivamente poluidoras, além de defender, como a um tesouro, seus bosques e florestas. E no Brasil, dono de uma das maiores reservas florestais do mundo, qual é a situação?

BURLE MARX - Infelizmente, é desoladora. Acabo de fazer uma viagem de carro, através de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo, num giro de mais de 4 000 quilômetros, a fim de recolher material botânico para parques e jardins. Fiquei acabrunhado com o que vi: uma destruição tenaz e impiedosa, liquidando reservas florestais de valor inestimável. Algo profundamente lamentável.

Veja - Essa destruição...

BURLE MARX - ...é muito maior do que se possa imaginar, sobretudo no sul da Bahia e norte do Espírito Santo, onde as florestas são totalmente destruídas pelo fogo, após a retirada das árvores de valor comercial. Com isso, a vegetação de sub-bosque, as árvores e a vegetação epífita - que vive fixada em outra, sem ser parasita - são

devastadas por completo. Em conseqüência, a fauna também vai sendo exterminada. A sensação que experimentei, e que muito me deprimiu, é que nos encaminhamos a passos largos para o completo extermínio de nossa cobertura vegetal, com nefastos resultados para o país.

Veja - Quais seriam as conseqüências mais graves desse desmatamento?

BURLE MARX - Uma severa modificação climática, com uma enorme diminuição de nossos mananciais. Nascentes vão secar, rios vão virar riachos, simples regatos. E muitos deixarão de ser perenes, como já acontece no seco e sofrido sertão nordestino. Uma vez perdida a capa protetora da cobertura vegetal, a terra fica inteiramente à mercê da erosão. Nas áreas equatoriais, a incidência dos raios solares sobre o solo também costuma ser devastadora, por calcinar sua camada fértil. A superfície úmida vai cedendo lugar a um solo gretado e estorricado, num fenômeno conhecido como laterização.

Veja - A erosão, nesse caso, surgiria como um fator secundário de empobrecimento da terra?

BURLE MARX - A erosão é um problema muito mais sério do que se pensa. Basta lembrar que são necessários quatrocentos anos para se criar uma polegada e meia de terra arável. Enquanto isso, a erosão destrói 15 centímetros dessa terra em pouquíssimo tempo. E, como se não bastasse isso, a destruição provoca outra: a da fauna aquática, pela obstrução do leito dos rios, ribeirões e córregos. É a marcha para a desertificação total.

Veja - Os órgãos encarregados da defesa de nossas reservas naturais tomam alguma providência para impedir essa destruição? Existem fiscais em número suficiente?

BURLE MARX - Por onde andei, não vi nada nem ao menos parecido com fiscalização. Nada contém a fúria dos destruidores de florestas. Infelizmente, o brasileiro ainda não aprendeu a amar as árvores. E esse deplorável desamor pelas florestas é atávico. Na época da colonização, as florestas infundiam medo. Nela se escondiam os índios, com suas flechas envenenadas. Elas eram o covil da serpente, da aranha, dos mosquitos sem conta entre eles, os transmissores da malária, das formigas. Tudo isso contribuiu para que a agressão à floresta fosse um processo continuado. E hoje a agressão é muito maior, porque há mais gente derrubando matas e mais recursos para isso. Não falta nem mesmo o estímulo oficial. Quando o presidente vai inaugurar um trecho de rodovia na amazônia, joga-se ao chão um gigante da floresta, para se colocar uma placa no tronco decepado. Por que não colocar a placa num tronco de árvore viva, conservando-a perenemente como um imponente monumento vegetal?

Veja - Em sua luta contra a selva, o brasileiro já obteve que tipo de vitórias?

BURLE MARX - O que vi nessa viagem de Belo Horizonte a Cachoeira, na Espírito Santo, passando por Governador Valadares (MG) e Feira de Santana (BA) e, depois de Cachoeira, descendo pela BR-101, a Translitorânea, foi deprimente. A destruição é de tal maneira violenta que a gente tem a impressão de que se está querendo criar uma paisagem lunar naqueles lugares. Tiram a madeira de lei e depois põem fogo na floresta, transformando o resto em carvão. Na região de Morro do Chapéu, na Bahia, onde me encantei com o belo espetáculo da cachoeira do Ferro Doido e onde se descobriu uma espécie de beija-flor que se supunha extinta há mais de um século, a flora riquíssima está sendo destruída, para facilitar a criação de gado. Ali, surpreendi um vaqueiro ateando fogo a um grupo saxícola (vegetação que cresce entre pedras). Quando lhe perguntei qual a razão da queimada, respondeu-me que estava limpando o terreno. Na verdade, estava destruindo um jardim natural que, em outros países, já teria sido transformado em reserva biológica ou parque nacional.

Veja - A região mineira, por onde o senhor passou, sofre o mesmo tipo de ataque do homem?

BURLE MARX - Entre Três Marias e Pirapora, na região guimaraniana dos sertões gerais, o viajante assiste a uma sucessão de grandes queimadas, que alcançam até 5 quilômetros de frente, como presenciou recentemente o urbanista Radamês Teixeira da Silva, de Belo Horizonte. E, ao longo de toda a estrada Belo Horizonte-Brasília, o triste espetáculo da destruição dos cerrados é uma constante. Numa simples viagem, fiquei horrorizado com a seqüência de queimadas. Tive a sensação de estar atravessando um mar de fogo. Ora era asfixiado pelo torvelinho de fumaça, ora o calor era tão grande que tinha medo de não chegar ao outro lado. Essas terras, que já não são boas, ficarão rapidamente muito piores, pelo sistemático e impiedoso desmatamento, incentivado por uma grande siderúrgica, que tem uma fome crescente de carvão vegetal. Quem viaja por ali, nessa época do ano, vê a cada instante a fumaça dos fornos de carvão extinguindo o que ainda resta de cerrado. Ainda em Minas, uma das mais notáveis florestas da região leste foi destruída, atacada ao mesmo tempo pela fúria dos extratores de madeira de lei e pela cobiça das siderúrgicas. O vale do Rio Doce, antes cheio de grandes matas, foi dizimado. E, em conseqüência do gradativo empobrecimento do solo, até mesmo o capimcolonião, base de seu desenvolvimento pecuário, por ser nativo daquela zona, está deixando de nascer. A situação é triste. Hoje, Minas tem apenas 7% de áreas cobertas de matas.

Veja - O senhor viaja regularmente, há muitos anos, por esses Estados. E, pelo que observou, as alterações da paisagem são recentes ou antigas?

BURLE MARX - Em território baiano, até oito anos atrás, as matas orlavam as estradas. Hoje, estão a muitos quilômetros e se distanciam cada vez mais, porque a destruição não pára. E, onde existiu uma flora exuberante, crescem apenas as espécies invasoras, que inibem o desenvolvimento das demais. No Espírito Santo, vi uma região que me deslumbrou há trinta anos, pela sua beleza, inteiramente transformada. O vale do Pancas, perto de Colatina, foi um dos mais belos monumentos da natureza que vi em minha vida. Há sessenta anos, tinha tribos de índios. Além das matas, crescia nas encostas e nas grandes montanhas de pedra uma flora sui generis, de uma riqueza extraordinária. Há vinte anos, quando estive lá pela segunda vez, a região ainda era bela. Da última vez, recentemente, fiquei assombrado com a modificação, não só climática, como pelo desaparecimento de um grande número de espécies que faziam o encantamento de todos os botânicos. O que resta continua sendo destruído pelo machado e pelo fogo, esses velhos inimigos das florestas. A crosta, também, se processa de modo violentíssimo. Ainda se pode salvar uma pequena parte desse autêntico tesouro vegetal. Mas é preciso andar depressa. Do contrário, nada restará.

Veja - Em suas andanças pelo Brasil, o senhor presenciou destruições desse tipo em outros Estados?

BURLE MARX - Infelizmente, por todos os lugares, por todas as partes. Ainda agora, vi a incrível devastação que uma companhia mineradora está fazenda na bela serra do Curral, em Belo Horizonte, um local de flora variadíssima. empobrecendo a paisagem de uma das maiores cidades do país. A destruição ao longo da Belém-Brasília é assustadora, com uma faixa devastada de 2 a 3 quilômetros, para os lados da estrada, se alargando em alguns trechos até 40 quilômetros. E isso em todo o percurso. No Maranhão, vi uma estrada estadual, aberta para ligar São Luís à Belém-Brasília, na altura de Açailândia, com 1 quilômetro de desmatamento de cada lado, quando deveria ter apenas 40 metros. Passei por lá em 1969 e vi os troncos fumegantes na margem da estrada. Voltei agora ao Pará e encontrei uma série de grandes indústrias madeireiras se espalhando pelo Estado. No Paraná e em Santa Catarina, a "Araucaria brasiliana", as florestas de pinheiros, está desaparecendo. Em seu lugar, planta-se o "Pinus elliottii", que cresce rapidamente nos dois primeiros anos, mas que está condenado ao fracasso por seu comportamento ecológico.

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