A viagem marcou a obra de Cendrars. Praticamente todos os livros escritos depois de 1924 contêm alguma referência direta ou indireta ao nosso país. Em Ouro (1925), a história se passa entre a Suíça e a América do Norte. Sutter larga o cantão natal e migra para a Califórnia, então pertencente ao México, e funda uma fazenda, que logo se revela muito próspera: a Nova Helvécia. Adquire fortuna e, quando menos espera, é surpreendido pela descoberta do ouro nas suas terras. A notícia se espalha como um rastilho de pólvora, e logo a sua propriedade agrícola está devastada pela corrida do ouro, da qual ele mesmo não se beneficia.
Como um roteiro de filme, o livro é narrado na primeira pessoa, no tempo presente, o único que a câmera cinematográfica conhece. Cortes secos, economia nas descrições, busca do efeito dramático pela acumulação dos elementos e tensão entre as situações contrastantes. Mas onde está o Brasil nessa história? Além de menções arbitrárias à nossa caninha e aos urubus, citados em português mesmo, o país está de fato presente na atmosfera que Cendrars vai criando para narrar a decadência ocasionada pela febre do ouro, que leva os garimpeiros a negligenciar os meios da própria subsistência. Nas Minas Gerais do século XVII, como na Califórnia de Sutter, os garimpeiros morriam de fome abraçados aos sacos de ouro. De que lhes servira acumular tanta riqueza? A leitura dos cronistas coloniais brasileiros, facultada pelo amigo e anfitrião Paulo Prado, estimulara-lhe a imaginação.
O Homem Fulminado (1945) marcou o reencontro de Cendrars com a alta literatura. Primeiro volume de uma tetralogia, num gênero que chamou de "lembranças" - relatos de coisas vistas, vividas e imaginadas -, nela o escritor assume o papel de personagem que inicia o leitor nos mistérios da vida e confere veracidade às suas fábulas. Depois de uma crise pessoal que se arrastou por boa parte do decênio de 30 e o mergulho na auto-clandestinidade, durante a Segunda Grande Guerra, em que guardou o mais rigoroso silêncio, Cendrars voltava a falar. Numa dicção especial, por ele elaborada para uso próprio, reconstituía, a partir de seu caso pessoal, o inventário de uma geração que, havendo feito a Primeira Guerra, jamais imaginou ter de suportar uma Segunda, provocada por causas semelhantes.
O Loteamento do Céu é um livro sobre seres que voam Passarinhos? Certo, mas também os santos em levitação. O volume é composto de três relatos: O Juízo Final, O Novo Patrono da Aviação e A Torre Eiffel Sideral, No primeiro, Cendrars nos conta a travessia do oceano, no retorno de uma das viagens ao Brasil. Na cabine vazia do navio, situada em frente à sua, fez instalar uma grande quantidade de macaquinhos e passarinhos com que queria presentear a sua amada, uma atriz de teatro, e os amigos dos Balés Suecos. Um único passarinho resiste à viagem para morrer sob a lâmpada que ilumina a mesa da casa da sua musa. Frágil testemunho de seu amor, não resistiu ao choque das culturas, mas sobretudo não tinha como sustentar uma situação de afeto não correspondido.
No segundo, O Novo Patrono da Aviação, o autor recolhe os traços de São José de Cupertino, um devoto cujo comportamento beirava a obtusidade, que viveu no século XVII italiano. Por que seria ele o novo patrono da aviação? Porque levitava sem dificuldade, e podia voar em marcha a ré! Num de seus melhores capítulos, intitulado O Arrebatamento do Amor, Cendrars nos brinda com o encontro de São João da Cruz com Santa Teresa d´Ávila. Sua ascensão conjunta, em dupla levitação, é o apogeu do amor sublimado, que atinge a plenitude num gozo místico. Esse relato, de leitura difícil, sobrecarregado de citações em latim, inspirou Joaquim Pedro de Andrade no roteiro de um filme que não teve tempo de concretizar: O Imponderável Bento Contra o Crioulo Voador, publicado após a sua morte prematura.
A Torre Eiffel Sideral descreve a chegada de Cendrars a uma vila perdida nos confins do Brasil, que está inaugurando a iluminação elétrica, etapa intermediária de sua viagem à fazenda Morro Azul, onde os passarinhos circulavam na mais completa liberdade, sem serem ameaçados pelos caçadores, e onde vivia o seu peculiar dono, Oswaldo Padroso, descobridor da constelação da Torre Eiffel Sideral, apaixonado por Sarah Bernhardt e um devotado cultor da civilização francesa. A personagem de Oswaldo Padroso é emblemática. Nela, o que interessa a Cendrars não é mais o relato dos antípodas, mas o exame das contradições que se instalam na relação entre uma sociedade emergente a brasileira em confronto com o seu modelo de cultura, a francesa. Nesse texto, Cendrars acaba por promover um acerto de contas pessoal com o imaginário brasileiro, que o fascinou desde o primeiro contato.
Em O Homem Fulminado, o escritor declara que pertence à família dos "simples, humildes, inocentes, desclassificados, dos cabeças quentes, pobres vexados que ainda não perderam a esperança". Seu último texto manuscrito, desfecho de um movimento cíclico, evocava a Páscoa, mas não aquela de Nova York, e, sim, a dos pobres vexados de Divinópolis, de Sabará, da viagem a Minas com os jovens amigos modernistas. Lá ele deixara, sem o perceber, seu coração de místico vagabundo, sonhando com a utopia do mundo.
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