Blaise Cendrars (1887-1961), escritor franco-suíço que fez do Brasil sua segunda pátria espiritual e a este país dedicou parte substantiva de sua obra, há tempos merecia ter sua prosa traduzida em português. Em 1976, uma saborosa antologia de prosa e poesia, que leva o sugestivo título de Etc... Etc... Um Livro 100% Brasileiro, com tradução de Teresa Thiériot, apareceu pela editora Perspectiva, mas já se esgotou. Também Sergio Wax, italiano que aportou em Belém do Pará, traduziu toda a poesia de Cendrars entre 1991 e 95, em edições bilíngües.
Agora, a editora Francisco Alves anuncia a reedição de Ouro e o lançamento de O Homem Fulminado e de O Loteamento do Céu, São livros capitais, nos quais o Brasil comparece implícita ou explicitamente, compondo a paisagem de uma terra alçada à dimensão de mito, que o escritor não hesitou em chamar de a sua "Utopialândia". Esse, aliás, foi o tema do seminário promovido pela USP em agosto último, que reuniu estudiosos brasileiros e internacionais em torno do Brasil de Blaise.
Nascido Frédéric-Louis Sauser numa cidadezinha perto de Lausanne, cedo revelava uma inquietação que o levaria a romper as fronteiras do bem-comportado mundo burguês. Depois de estudar medicina e comércio, com resultados medíocres, adolescente ainda foi bater em São Petersburgo para adquirir a profissão de joalheiro. Lá se enfurnava na biblioteca pública até chamar a atenção do bibliotecário que o conduziria ao mundo fabuloso das letras e se tornaria seu primeiro editor, quando da publicação de A Lenda de Novgorod, recentemente redescoberta.
Em 1912, Frédéric está em Nova York, onde passou fome e frio. Atraído pela Criação de Häendel, entrou numa igreja protestante. Lá teve a inspiração para seu primeiro grande poema: Páscoa em Nova York. Em versos livres, exortava o Senhor a olhar para os pobres e deserdados do amor e da fortuna. E cunhava o pseudônimo sonoro: Blaise Cendrars. Sua publicação em Paris causa sensação. A reputação de poeta ultramoderno foi confirmada pela publicação, no ano seguinte, de Prosa do Transiberiano ou da Pequena Joana da França, cuja edição de luxo combinava os versos livres com manchas coloridas de autoria de Sonia Delaunay. Uma obra simultaneísta, que promove o diálogo entre a poesia e a pintura.
Com a eclosão da guerra de 1914, Cendrars se apresentou como voluntário para ir combater no front. Em 1915, numa batalha na Champagne, seu braço direito foi atingido por estilhaços de granada. A amputação salvou-lhe a vida, mas o poeta ficou aleijado. Uma crise terrível se sucedeu. Em 1917, recuperou a capacidade de escrever, agora com a mão esquerda, mas decidiu "abandonar a poesia." Dedicou-se ao trabalho editorial e namorou o cinema, uma de suas grandes paixões. Sem emprego nem profissão, envolveu-se com o grupo dos Balés Suecos e escreveu o argumento de A Criação do Mundo, bailado negro com cenografia de Léger e música de Darius Milhaud. O sucesso o repôs no centro do movimento artístico e literário, mas ele já demonstrava sinais de fadiga com as intrigas do meio.
Estamos em 1923. Paris está repleta de jovens brasileiros debutando nas artes modernas: Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Villa Lobos, Brecheret, Sérgio Milliet, Oswald de Andrade, Aflita Malfatti e Souza Lima, enquanto Paulo Prado, intelectual e exportador de café, chegava, como era seu hábito, para lá passar o verão. O fervilhante ambiente de Paris aproximou os brasileiros do escritor disponível. Cendrars, boêmio, divertia-se com a irreverência deles, tornando-se camarada de Di Cavalcanti, Oswald e Sérgio Milliet. Não escapou ao fascínio da beleza e doçura de Tarsila e decidiu patrocinar a sua aprendizagem da língua cubista, que cedia vez à nova ordem.
No final daquele ano, Oswald, no apogeu de sua breve carreira de empresário, quando torrava a fortuna herdada do pai, acenou com negócios fabulosos além-mar, e Cendras mordeu a isca. Consultado, Paulo Prado aceitou de bom grado arcar com as despesas da viagem. Em janeiro de 1924, Cendrars embarcou no Havre com destino ao Brasil. A travessia do Atlântico revelou-se altamente estimulante: embalado pela chegada do calor e pela luminosidade crescente, Cendrars anotava os poemas que iriam constituir a sua primeira obra "brasileira", as Feuilles de Routes.
Instalado no Hotel Vitória do largo do Paissandu, o poeta começou a conquistar os meios literários e cultivados da Paulicéia pacata e provinciana. O grupo que o hospedara levou-o para conhecer o carnaval do Rio, o circuito do Ouro das Minas, as fazendas de café. A marca profunda dessas paisagens só seria percebida pelos contemporâneos quando a obra futura denuciasse o seu impacto na memória do estrangeiro.
Certa feita,retornando da fazenda São Martinho, Paulo Prado imtroduziu Cendrars e Oswald no fascinante mundo da fazenda Morro Azul, propriedade de seu amigo e ex-funcionário da Cia. Prado Chaves, Luís Bueno de Miranda. O extraordinário anfitrião, criador de um método revolucionário de plantar café e astrônomo amador, que se gabava de ter descoberto a constelação da Torre Eiffel, impressionou imediatamente os dois poetas camaradas, que cuidariam de transfigurar essa experiência em suas respectivas obras. Oswald lhe dedicaria o poema Morro Azul, em Pau Brasil; e Cendrars, a narrativa fantástica de A Torre Eiffel Sideral, no Lotissement du ciel, em que o fazendeiro-astrônomo é chamado de "Oswaldo Padroso", uma evidente combinação dos nomes dos dois melhores amigos brasileiros.
A amável temporada brasileira transcorria mundana e intelectual demais para as expectativas do turista que, afinal, viera fazer a América. Cendrars propôs a realização de um filme de propaganda do país, uma superprodução para o circuito internacional que ele dirigiria, mas a revolução do general Isidoro Dias Lopes, que estourou em julho de 1924 com violência surpreendente, mudou o cenário político e trouxe intranqüilidade econômica. Os projetos mais ou menos grandiosos ficaram suspensos.
Apesar disso, Cendrars não voltou para a França de mãos abanando. No Brasil, havia recuperado a inspiração e a confiança para recomeçar a carreira de escritor, agora como "romancista". Instalado na sua casa de campo, em pouco menos de um mês escreveu Ouro, a saga do general suíço Johann August Sutter, que fundara Sacramento, na Califórnia, e ficara arruinado com a corrida do ouro nas suas terras. Cendrars retornaria ao país em 1926 e 27, sempre pela mão amiga de Paulo Prado. O objetivo dessas viagens continuava sendo o desejo de ingressar no mundo dos altos negócios. Nenhum deu certo. Desnecessário lembrar que o poeta morreu na miséria.
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