Ele não inventou novas formas musicais. Mas sua síntese magistral de todas elas alcançou uma perfeição até hoje incomparável.
Ser um Bach significava ter a música no sangue. Dos 33 membros da família de que se tem notícia desde o século XVI, antes do nascimento do grande Bach, 27 tinham sido músicos. E quatro dos filhos de Bach foram compositores tão importantes que, por si sós, já teriam bastado para garantir a imortalidade desse nome. Ser um Bach significava também ter aquela fervorosa religiosidade herdada da tradição luterana, que associou o nome de muitos deles ao serviço da Igreja. E aquela exigente concepção de disciplina profissional, que fazia deles requisitados músicos da Corte ou das escolas de música da municipalidade. Era esse o caso de Johann Ambrosius, compositor oficial de Eisenach, na Turíngia - hoje, centro da Alemanha Ocidental -, onde a 21 de março de 1685 nasceu o seu terceiro filho, batizado com o nome de Johann Sebastian.
Ao contrário de Mozart, que, aos 30 anos, já era dono de um conjunto de obra impressionante, Bach não foi um menino prodígio. Suas composições realmente geniais só começariam a despontar sistematicamente lá pelos 35 anos. Como instrumentista, isto sim, desde muito cedo ele foi excepcional. Já em seus primeiros empregos - em Arnstadt e Mühlhausen (entre 1703 e 1708) e depois na devota corte luterana de Weimar (de 1708 a 1717) - ele se impôs como um dos maiores organistas de seu tempo. E depois, no período que passou na corte de Köthen (1717-1723), cujos hábitos religiosos mais moderados permitiram-lhe dedicar-se mais intensamente à música instrumental profana, ele se revelou também um extraordinário cravista.
Ao órgão, além de uma incrível agilidade nos pedais, suas mãos enormes cobriam doze teclas, com que pôde desenvolver uma revolucionária técnica de dedilhado. Bach foi o primeiro a usar o polegar, e não apenas os quatro dedos, como os organistas anteriores a ele. E conseguia tocar a melodia básica com o polegar e o mínimo, enquanto improvisava ornamentos com os três dedos do meio. Era ainda capaz de cruzar o terceiro dedo sobre o quarto e o segundo sobre o terceiro - procedimento que seu próprio filho Carl Philip Emanuel, ao elaborar a moderna técnica do dedilhado ao teclado, eliminaria por considerá-lo muito difícil.Seu virtuosismo era fruto da observação dos grandes mestres da época. Entre eles, Dietrich Buxtehude, a cujos concertos na igreja de Santa Maria ele assistiu durante os quatro meses que passou em Lübeck, em 1706. Sua dedicação e talento fizeram com que Buxtehude o convidasse para ser seu substituto, quando estava para aposentar-se. Mas Bach recusou, pois para isso teria de aceitar também casar-se com Anna Margarete, a filha solteirona, de 30 anos, do velho organista. E não só porque, a essa altura, ele já estava apaixonado por sua prima Maria Bárbara - com quem viria a casar-se em 1707 - mas também porque Fräulein Buxtehude era totalmente desprovida de encantos. Tanto assim que Haendel, Telemann e Matheson, músicos também, declinaram da oferta pelo mesmo motivo.
De todos os gêneros musicais existem em seu tempo, a ópera foi o único que Bach não praticou, embora não lhe faltasse senso dramático. Não foi o inventor de novas formas ou novos gêneros. Mas, como Mozart e Beethoven depois dele, tomou todas as formas que lhe tinham sido legadas por seus predecessores e de tal modo as ampliou, tanto na estrutura quanto nos recursos expressivos, que as levou a um grau de perfeição antes desconhecido. "Se tentássemos caracterizar a arte de Bach com uma só palavra", escreveu seu biógrafo Karl Geirenger, "esta teria de ser unificação. Os mais heterogêneos elementos foram fundidos por ele numa entidade de caráter completamente novo e coerente."
De fato, a obra de Bach oferece uma síntese magistral de todas as formas musicais existentes em seu tempo. Das influências externas, do que havia de mais moderno na música italiana ou francesa da época; mas também de formas musicais originárias das mais diversas regiões germânicas. Nessa época, a Alemanha ainda não existia como país unificado; fragmentava-se em principados, ducados e eleitorados com sistemas políticos, costumes religiosos e tradições culturais próprias. Ritmos de dança, melodias folclóricas, canções populares, hinos de igreja, tudo era amalgamado com um estilo muito pessoal e, recebendo uma roupagem harmônica nova, soava realmente como fruto exclusivo de sua inspiração.
Essa apropriação não se fazia apenas no nível do cancioneiro anônimo. No século XVIII, a noção de plágio ainda não existia como hoje. Os músicos, assalariados da Corte ou da Igreja, não precisavam preocupar-se com a defesa da propriedade intelectual para garantir o seu sustento. E Bach também - como todos os seus contemporâneos - não hesitava em reutilizar música alheia; mas, ao fazê-lo, reelaborava-a de modo a dar-lhe um tom inequivocamente pessoal. Ele transpôs, por exemplo, os concertos para violino de Vivaldi - por quem tinha grande admiração - para uma virtuosística combinação de quatro cravos.
A experimentação, de resto, foi um traço fundamental da personalidade artística de Bach. Ele aplicava recursos técnicos do cravo ou do órgão ao escrever para as cordas. Tinha em alto grau aquele traço - típico do compositor barroco - que desconhecia a existência da diferença de tom entre a música sacra e a profana. Com a maior desenvoltura, passava trechos de uma obra para outra; reaproveitava numa peça para cravo uma melodia de igreja escrita para órgão muitos anos antes. Bach não rompeu com as formas fixas de seu tempo. Mas teve inesgotável imaginação para retrabalhar suas estruturas; não há duas fugas, invenções, tocatas, cânones ou prelúdios que sejam rigorosamente no mesmo molde de outro.
A visão arquitetônica, em sua composição, é um traço marcante: em todas as suas peças há uma simetria, um senso de ordem, um perfeito equilíbrio entre as diversas partes, que se contrastam e complementam, evidenciando a organização lógica, matemática, de sua mente criadora. É claro que esse gosto pela construção ao mesmo tempo contrastante e simétrica não é exclusivo de Bach; é uma característica comum aos compositores barrocos. Mas ninguém, como ele, levou-a a um tal grau de complexidade e perfeição. Comum a seus pares é também o gosto pelo descritivismo musical, ou seja, a evocação de fenômenos naturais através dos sons - o que leva Vivaldi a escrever suas famosas Quatro estações, ou enche as óperas de Jean-Baptiste Lully de sinfonias descritivas que são retratos sonoros de tempestades, naufrágios, alvoradas ou crepúsculos.
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