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Entrevista com Domenico De Masi

NOVA ESCOLA - O senhor afirma que o modelo atual de trabalho está saturado. O que mudou?
Domenico De Masi - Antes, o trabalho era totalmente físico. Hoje, a maior parte das tarefas pode ser delegada às máquinas. Ao homem restam as atividades criativas, além de mais disponibilidade para o lazer. A tendência, portanto, é que trabalhemos cada vez menos e possamos cada vez mais exercer o que eu chamo de "ócio criativo", que é uma mistura de estudo, trabalho e diversão.

NE - Como isso se reflete na educação?
De Masi - A escola deve estar sempre se atualizando e acompanhando as mudanças da sociedade. Se o mundo precisa de pessoas criativas, ela deve estimular esse lado. E isso vale para a vida dos professores e dos alunos. Se as pessoas têm mais tempo livre, é para isso que devemos prepará-las. Não podemos mais
continuar formando os jovens apenas para o trabalho e o lucro. É preciso oferecer a formação total. Se a escola não fizer isso, quem vai fazer?

NE - Como professores formados no antigo modelo podem se adequar a essa nova realidade?
De Masi - Ninguém pode ensinar algo que não conhece. Para ampliar a formação dos alunos o educador precisa primeiro investir na própria formação. Como fazer isso? Refletindo sobre as novas exigências da vida moderna, sobre o próprio trabalho e sobre seu papel como educador. E, é claro, aproveitando melhor seu tempo livre: passeando, observando as pessoas, indo ao cinema, fazendo amor...

NE - O que é a formação total?
De Masi - Significa educar não apenas para o trabalho, mas também para o estudo e para o ócio; para as satisfações e NEcessidades mais essenciais do homem: o amor, a amizade, a diversão, o convívio, a solidariedade, a beleza. Significa formar o cidadão em toda sua amplitude de homem econômico, estético, social e ético.

NE - Como educar para o tempo livre – e curtir esse ócio criativo?
De Masi - Desenvolvendo habilidades para aproveitá-lo de uma forma mais produtiva. Escolhendo um livro, vendo um filme, ouvindo música, observando, apreciando e entendendo uma paisagem. Para o professor, meu conselho é ensinar os jovens a dar significado às coisas.

NE - As escolas e os professores estão preparados para isso?
De Masi - Existem diferentes escolas e professores. Muitas delas ainda estão comprometidas com o antigo modelo. Mas outras tantas já oferecem um ensino menos tradicional. Entre os professores, não são poucos os que ultrapassam o conteúdo dos livros e dão aula sobre programas de televisão, livros, filmes... Se a sociedade
segue em frente é porque existem educadores assim.

NE - Como convencer os pais de que é bom educar para o ócio?
De Masi - Você não deve simplesmente dizer que ensina o ócio, mas explicar o que é isso. Deve mostrar que o trabalho representa apenas um sétimo da vida da pessoa e que você está educando para os outros seis sétimos. Que não está preparando trabalhadores, mas cidadãos, com todas as habilidades que eles devem ter. Aí eu garanto que os pais vão gostar. Se eles estão satisfeitos com a escola de hoje, imagine se ela ainda
ensinar o aluno a viver feliz...

NE - Criatividade é algo inato ou pode ser ensinada?
De Masi - Estou escrevendo um livro sobre a história da criatividade humana. Percebi que todo o caminho da humanidade, do homem do Paleolítico ao do neolítico, dos cidadãos de Atenas aos modernos nômades de Nova York, deve-se à nossa criatividade construtiva ou destrutiva. Com ela, fizemos o bem e o mal: aprendemos a caminhar eretos, a acender o fogo, a construir o arco, as pontes, os templos, os arranha-céus, a bomba atômica. Ela é uma síntese dos poderes de fantasiar e de concretizar. Pouquíssimas pessoas são dotadas
desde o nascimento dessas duas capacidades (e por isso ficam conhecidas como gênios). A maioria é dotada de uma ou de outra e, para tornar-se plenamente criativa, deve trabalhar em parceria com alguém que lhe seja complementar.

NE - Ou seja, trabalhar em grupo é importante?
De Masi - Sim, com certeza, pois coloca junto "fantasiosos" e "realizadores". Mas é importante distinguir três
momentos no aprendizado: a reflexão individual, a discussão num grupo pequeno e o confronto das idéias num grupo maior  a classe, por exemplo. Cada uma das três etapas tem importância igual.

NE - O senhor critica o excesso de regras. Na escola, elas limitam a criatividade?
De Masi - Estou convencido de que a criatividade não segue regras constantes. Em alguns casos, nasce num contexto totalmente desestruturado (o ambiente do pintor Caravaggio, por exemplo) e, em outros, muito bem estruturado (caso da família de Mozart). De modo geral, a criação artística desenvolve-se melhor num ambiente
desestruturado (como a escola de jazz Berklee, em Boston) e a científica num ambiente estruturado (como o Massachussets Institute of Technology, um dos mais conceituados centros de pesquisa do mundo). Quase sempre, no entanto, a burocracia castra o espírito inventivo, como acontece nas grandes empresas. Muitas
escolas também são burocratizadas e sofrem os mesmos efeitos.

NE - De que modo a escola pode evitar a burocracia?
De Masi - O burocrata, seja ele um administrador ou um professor, é uma pessoa insegura, que se arma de regras por medo de errar. Ele olha sempre para o passado, nunca para o futuro. Ao invés disso, o que as escolas (centros formadores) precisam é de coragem e visão de futuro. Para obter uma equipe de docentes criativa é fundamental que alguns sejam predominantemente fantasiosos e outros, predominantemente realizadores. Todos eles coordenados por um diretor carismático, que passe entusiasmo, ânimo e espírito
inovador.

NE - Daqui a dois meses nossos alunos e professores entrarão em férias. Como aproveitá-las de forma produtiva?
De Masi - Freqüentando uma escola de samba. As escolas de samba brasileiras são o maior centro de criatividade artística do mundo.

NE - O senhor considera o Brasil um país criativo?
De Masi - Eu divido a criatividade em artística e científica. O Brasil, como a Itália, possui uma grande veia artística, mas sofre no campo científico. Nas artes, exporta música, teatro, dança, cinema; na ciência, importa conhecimento tecnológico. A criatividade artística no Brasil deve-se principalmente aos pobres  é o caso do Carnaval. Já a científica, não pode ser realizada pelos pobres, porque requer escolarização, especialização, investimento financeiro. Portanto, podemos dizer que os pobres contribuem para o progresso do país com as artes, mas os ricos não contribuem com uma adequada atividade científica. Em outras palavras, no plano da criatividade os ricos estão em débito com os pobres. Isso acontece tanto no Brasil como na Itália.

NE - No Brasil, muitas crianças trabalham, principalmente na zona rural. Elas também têm ócio?
De Masi - Se a educação é muito prática (como no caso das crianças pobres) ou muito teórica (como no caso das ricas) há um desequilíbrio. Infelizmente os alunos pobres têm muito trabalho e por isso são privados do tempo livre. Ou então não trabalham nem vão à escola e por isso têm somente ócio. Essa é a maior injustiça social contra as crianças.

NE - Quais as conseqüências de administrar mal o tempo livre?
De Masi - Infelizmente, é fácil encontrar mestres em determinada profissão, mas é difícil encontrar "mestres em vida", porque a maioria está preocupada apenas com o trabalho e com o lucro. A conseqüência é que muitos jovens usam mal seu tempo livre. Ou ficam sem fazer nada e sofrem de tédio ou entregam-se a atividades
insensatas. É nessa hora que surgem problemas como drogas e violência.

NE - O senhor, com tantas palestras, pesquisas e entrevistas, consegue ter tempo livre?
De Masi - Tenho pouco, é verdade. Mas tenho muito ócio criativo. Toda minha vida consiste nessa síntese de estudo, trabalho e diversão. O que faço, respondendo a essa entrevista? Trabalho, estudo e me divirto.

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