Entrevista concedida por Ferreira Gullar a Veja às vésperas de retornar ao Brasil, após seis anos de exílio político.
Veja - Algumas pessoas comentam o fato de que o Poema Sujo modifica toda uma estrutura da nossa poesia, do ponto de vista da linguagem. Como você vê isso?
FERREIRA GULLAR - Quero que, de princípio, fique bem claro que não fiz o Poema Sujo para modificar nada. Não fiz o Poema Sujo para criar uma nova forma de poesia nem para revolucionar a poesia brasileira. Fiz o Poema Sujo para sobreviver, como em geral sempre faço poesia - no último instante. Quando não é possível fazer mais nada, faço poesia. Agora, é preciso também que seja possível fazer poesia, porque às vezes nem mesmo isso é possível.
Veja - Como você vê o desenvolvimento da literatura hoje no Brasil?
FERREIRA GULLAR - No campo da poesia, especificamente, vejo uma coisa muito positiva: o abandono de certo preconceito formalista que dominou e castrou a poesia brasileira durante mais de vinte anos, a partir do concretismo. Quer dizer, um preconceito formalista. Chegou-se a dizer que a poesia deveria ser feita segundo estruturas matemáticas...
Veja - Sobre isso você teve uma conversa com João Cabral de Melo Neto.
FERREIRA GULLAR - É. Eu estava conversando com ele, em Barcelona, em 1968, e ele me perguntou por que é que eu tinha rompido com o concretismo. Disse-lhe que foi porque o pessoal inventou que a poesia tinha que ser feita segundo estruturas matemáticas e eu achava isso uma bobagem. Aí ele me disse: Não, mas pode ser feita, sim. Por exemplo: a Educação pela Pedra’ que eu fiz é tudo dois. O ritmo é de dois em dois, os versos são dois em dois, o conjunto do poema é dois, é tudo dois. Então eu perguntei: Mas esse dois veio de onde? O que é que determinou esse dois? Não podia ser três? quatro? E ele disse que podia. Então essa estrutura matemática aí está curada. Você não pode criar uma estrutura a partir da qual nasça necessariamente a linguagem. Você pode, isso sim, criar uma estrutura e justapor a ela a linguagem, mas isso é arbitrário. A verdade da poesia é a verdade que comove. Quando Newton diz que matéria atrai matéria na razão direta das massas, isso é uma verdade científica que pode ser aferida. Agora, quando Hegel diz que o concreto é a soma de todas as determinações, isso é uma verdade filosófica que não pode ser aferida como a da ciência. Mas quando Drummond diz: como aqueles primitivos que carregam consigo o maxilar inferior dos seus mortos e eu te carrego comigo tardes de maio, não é verdade, mas é bonito demais, não é? Se você for aferir no nível da verdade, essa frase não vale nada. O que é que sustenta essa frase? É que ela comove. Esse é o conteúdo da poesia. Quando alguém quer transformar a poesia numa coisa racionalista, objetivista, dá com os burros n’água, e castra. Se você elimina do homem o direito de se comover e dizer sua emoção, você pode até adoecer as pessoas. Se numa sociedade se proibisse a expressão da emoção - e às vezes, se proíbe, não diretamente, mas pela imposição de uma censura violenta - se criaria uma enfermidade social, impedindo não só a manifestação da emoção lírica como a da revolta, do protesto.
Veja - E a censura? Há quem diga que ela já está anexada naturalmente a produção de determinada camada de intelectuais.
FERREIRA GULLAR - Se isso é verdade, é uma coisa terrível. Eu confesso que me nego a acreditar nisso. Pode ser até que seja verdade, mas simplesmente não quero acreditar. Sou radicalmente contra a censura. Agora, todos esses anos de censura rigorosa sobre as atividades artísticas e culturais no Brasil demonstraram que a intelectualidade brasileira não se rendeu. Ficou provada uma forte resistência à censura, além da grande vitalidade da nossa literatura. Tudo isso que tem saldo de livros, revistas, jornais não foi de graça, não. Representa uma luta enorme porque desde 1968, 1969, tem havido prejuízos. Mas a observação direta mostra que o pessoal resistiu apesar de tudo, e continua criando. Eu não sou ufanista, não, mas a gente tem que reconhecer que o Brasil é um país de enorme vitalidade.
Veja - O que é que você acha dessa descoberta repentina da América Latina que está havendo nas artes em geral?
FERREIRA GULLAR - Eu que vivi durante algum tempo em alguns países latino-americanos posso dizer o seguinte: o Chile tem pouco a ver com a Argentina, a Argentina pouco a ver com o Peru e os três juntos muito pouco a ver com o Brasil. Não acredito em arte internacional porque a fonte da arte é o particular. Evidentemente, quando um romancista brasileiro fala de sua experiência e da realidade brasileira, está falando da América Latina também. Mas está falando igualmente do mundo contemporâneo. Agora, se a literatura brasileira quiser fazer García Márquez, aí não dá pé, porque García Márquez é produto de uma cultura específica. Vai empobrecer muito. Mas o que acho positivo nisso tudo é que, na medida em que nós, latino-americanos, tomamos consciência da nossa realidade, que o brasileiro conheça o que é a Venezuela, a Colômbia, o Peru, o Chile... e na medida em que eles também se conheçam entre si e ao Brasil... todos conhecerão os graves, profundos e inacreditáveis problemas do continente latino-americano. A solidariedade latino-americana é um dado fundamental na solução desses problemas, mas, para que isso seja feito com autenticidade e conseqüência, é preciso que
antes cada um se conheça a si mesmo, porque, para que o argentino conheça o brasileiro, é preciso que o brasileiro fale de si mesmo e não de um brasileiro misturado com peruano, chileno, etc.
Veja - O que você pensa fazer no Brasil?
FERREIRA GULLAR - Olha, ainda não tenho idéia. O que tenho que fazer é voltar para a minha profissão. Sou jornalista e foi como jornalista que sempre ganhei a vida. Então a perspectiva é essa: procurar emprego num jornal, numa revista e ganhar minha vida.
Veja - O que é que vai mudar em sua vida quando você voltar?
FERREIRA GULLAR - Não sei, não, mas acho que vai ser uma mudança muito séria, porque, depois de quase seis anos fora, o Brasil deve ter mudado muito e, segundo me dizem, mudou mesmo - para pior. As pessoas me dizem, por exemplo, que o Rio está uma cidade insuportável, uma barulheira dos diabos, ônibus, táxis, carros, metrô, buraco pra tudo quanto é lado, que as pessoas quase não conseguem se mover. Um outro aspecto da minha saída daqui é que sempre vivi sozinho todos esses anos, exceto alguns intervalos em que minha família esteve comigo aqui e no Peru. Estou sempre em minha casa lendo, pensando, às vezes pensando até demais, falando sozinho... Vou estranhar muito essa mudança.
Veja - É curioso pensar que você está vivendo há seis anos fora do Brasil e escreveu um poema que fala tanto de suas coisas em São Luís do Maranhão.
FERREIRA GULLAR - Sim, mas na verdade, se não estivesse tanto tempo fora, jamais teria escrito esse poema. O conhecimento das diferenças e semelhanças desses países em que vivi é que deu origem ao poema. Aprendi, também, a confirmar coisas que sabia em teoria. Se falo de São Luís, estou falando da América Latina. Está aí uma resposta concreta e outra pergunta. Não preciso misturar São Luís com Santiago, nem misturar as palavras, os símbolos, os elementos culturais, geográficos ou políticos para expressar a América Latina. O problema é exatamente esse: que eu encontre a expressão universal da coisa particular. O poema nasce disso e da enorme carência que é você viver no exílio. Pelo menos eu, nesse caso, me sinto completamente
desenraizado, sinto um vazio em torno de mim...... Por exemplo: alguém vive numa cidade anos e anos, essa cidade faz parte da história dele e em todos os lugares dessa cidade, do bairro em que ele viveu, das ruas por onde ele andou, está tudo impregnado dele. O poste não é um poste. A esquina não é uma esquina, um pedaço de praia não é apenas um pedaço de praia. Está tudo impregnado da história dessa pessoa, da sua geração e da gente dela. O mundo, dessa forma, não é tão inumano e imaterial, mas sim histórico, cultural e social. Agora, quando alguém está numa cidade que não tem nada a ver com ele, um poste é só um poste, uma fachada é só uma fachada e um crepúsculo é só um crepúsculo, cósmico... é esmagador, porque não tem nada a ver com ele. É uma experiência que até enriquece, mas é uma experiência terrível porque a pessoa se defronta com uma realidade alheia a ela, que não lhe responde, e na qual ela não se reflete.
Veja - Você não tem definitivamente nenhum projeto?
FERREIRA GULLAR - Tenho alguns artigos para o Brasil e penso em juntá-los em livro, discutindo o problema da arte e da literatura. Talvez faça isso. Já escrevi dois livros sobre o assunto, Cultura Posta em Questão, em 1956, e Vanguarda e Subdesenvolvimento, em 1969, discutindo os problemas da cultura brasileira.
Veja - Você podia identificar alguns deles?
FERREIRA GULLAR - Esse é um assunto que se discute muito hoje no Brasil e é um problema que está ligado ao que se colocou anteriormente sobre a literatura latino-americana. No fundo, é tudo uma questão de busca de identidade, já que a América Latina, como continente, foi colonizada e sua cultura é um ramo da cultura européia. É certo que ela se desenvolveu, ganhou formas particulares em cada país, mas na verdade é um desdobramento da cultura européia. Durante séculos essa cultura se desenvolveu com características de dependência, mas pouco a pouco esse caráter de dependência foi se reduzindo e sobretudo a consciência do nosso caráter de dependência foi aumentando, o que é um passo para realmente se conseguir uma independência.
Esse é um problema importante ligado a um processo de libertação econômica e política. Em muitos casos, a discussão do problema cultural é exatamente reflexo dos debates em torno das questões econômicas e políticas. Quero escrever um novo livro para atualizar o meu pensamento com relação a esses problemas, porque não gostaria que certas coisas que escrevi e das quais hoje discordo continuassem a aparecer como sendo o meu pensamento, sobretudo porque, de uma maneira ou de outra, isso passa para outra pessoa e as idéias vão tomando curso. Assim, na medida em que você errou, tem obrigação de rever esses conceitos, mesmo porque isso é um trabalho coletivo de esclarecimento, de entendimento da realidade e do problema cultural, que
é uma tarefa de todos.
Veja - Que tipo de revisão você faria do problema da cultura?
FERREIRA GULLAR - É muito difícil dizer. Mas, quando releio os livros e me defronto com os problemas expostos, percebo que em alguns pontos fui estreito, esquemático e que a coisa é mais complexa. No fundamental, estou de acordo com o que disse no Vanguarda e Subdesenvolvimento. Quer dizer, estou de acordo com a idéia de que a literatura e a arte nascem da experiência particular. Então, quando se coloca o problema da cultura nacional, não é
por chauvinismo ou nacionalismo. Isso é simplesmente condição fundamental para você criar. Criar a partir da experiência vivida, particular. Você pode fazer literatura a partir da literatura, mas isso nunca será uma experiência criadora. Muitos garotos por aí fazem música a partir da música americana e inglesa. Mas que contribuição essa música está dando para a música? Não está dando nenhuma porque fazem pior que os outros, porque a fonte da experiência não
está no Brasil. Mesmo que o cara não copie simplesmente, ele já parte não de uma coisa vital, que permita a criação, mas de uma coisa já formulada. No máximo, ele dilui uma experiência que não teve. Isso, também do ponto de vista da própria atitude do cara diante da realidade, me parece uma coisa negativa. É uma condição da própria dependência cultural, é claro, mas exatamente por isso os intelectuais, os artistas têm que fazer um esforço de crítica do que é importado para varar essa camada de cultura colonizadora e chegar à sua própria realidade, para exprimi-la.
Veja - Você não acha que esse esforço de crítica de que fala estaria hoje um tanto enfraquecido?
FERREIRA GULLAR - Em princípio, arte e literatura verdadeiramente criadoras são uma coisa sempre difícil e rara em qualquer época e lugar. Muita gente faz literatura e pouca gente consegue realmente criar dentro da literatura. Há épocas, entretanto, que, por motivos mais intrincados, favorecem o aparecimento de um número maior de escritores, poetas, romancistas, músicos, etc. No Brasil, até onde percebo de longe, de alguns anos para cá, em função mesmo das condições políticas, houve certa tendência em interromper o processo de tomada de consciência da realidade brasileira. Houve certa tendência em se adotar de novo elementos e padrões de fora, como o estruturalismo, por exemplo. Isso ocorre porque certo tipo de concepção filosófica não favorece o conhecimento da realidade - pelo contrário, favorece uma alienação, uma visão alienada do processo social. O estruturalismo, por exemplo, em suas diversas manifestações, tende muito a favorecer, no campo da literatura, o formalismo, um certo elitismo literário. É curioso isso, porque certas filosofias que de vez em quando aparecem e ficam na moda durante algum tempo surgem sempre com um caráter pseudo-revolucionário, e depois, quando
você vai ver, elas terminam se acovardando e se dando muito bem com as posições reacionárias anteriores no campo da política, da arte, da literatura. Portanto, o fundamental nisso tudo é que se mantenha viva a experiência criadora, a tentativa, a paixão por dizer, por criar.
Veja - Como surgiu o Poema Sujo?
FERREIRA GULLAR - Parti da estrutura de um poema que fiz sobre o formigueiro, no início do movimento concretista. Há uma lenda em minha terra que diz que onde tem formiga tem dinheiro enterrado. Na minha casa tinha muita formiga, era aquele tipo de casa antiga, muito úmida... e, quando chovia, no pé da parede surgia aquele monte de formigas pretas, verdadeiros exércitos, um negócio que me impressionava muito. Então eu quis fazer um poema que
estivesse ligado a essa lembrança da minha infância e fiz esse poema sobre o formigueiro. De outra vez, uma noite aqui em Buenos Aires, me veio a lembrança de São Luís, minha casa, meus irmãos, o quintal e as formigas saindo da parede, e me lembrei do poema da formigas. Aí eu disse: Puxa, eu podia fazer um poema em que vomitasse tudo que tenho dentro de mim logo na primeira página e a partir dessa matéria bruta fosse desfiando todo o poema. Como já era tarde da noite, fui me deitar com aquela idéia sem sair da cabeça e no dia seguinte cedo me sentei na frente da máquina e disse: Agora vou vomitar tudo. Mas o vômito não saía porque não existe uma garganta verbal onde você meta o dedo e vomite a linguagem. Então fiquei assim meio besta, frustrado e pensando: Pombas, o grande poema da minha vida é inviável porque não consigo vomitar o meu passado. Aí fiquei andando um pouco, voltei para a máquina e comecei a escrever o princípio do poema: turvo, turvo, a turva mão do sopro contra o muro..., que era a tentativa de ir o mais longe que a minha memória podia alcançar, ali onde ainda não existe nada, é tudo impreciso, escuro, mais que escuro, claro.... E aí começa um bicho que vem sonhando...,
eu entro dentro de mim e disparo o poema. Nessa hora fiquei muito excitado e achando que alguma coisa se tinha aberto dentro de mim, que realmente eu tinha rompido alguma coisa que começava a manar lá de dentro.
Veja - O que é que desencadeou essa vontade de vomitar toda a sua vida?
FERREIRA GULLAR - Acho que isso é fruto de todos esses anos e de tanta paulada que levei. Vontade de escrever um poema brasileiro e que não fosse uma coisa pessoal apenas. Uma coisa que fosse minha gente, que fosse mais do que eu, que fosse minha vida toda, na medida em que minha vida toda é a vida de todo mundo. Sempre achei que tudo que tinha feito até então era menos do que tinha que fazer e dizer. E, claro, na medida em que você vai amadurecendo, em que você assimilou uma série de coisas, aquilo passa a fazer parte de uma estrutura dentro de você. De certo modo eu sempre buscava isso. Saber, mas saber no corpo, não na cabeça. Quer dizer, um aprendizado poético que ficasse inserido em mim como sei falar, comer, dançar. Como
uma coisa integrada em minha carne, nos meus nervos, em meu cuspe. Foi um aprendizado difícil; eu poderia ter escolhido um outro caminho por onde chegaria mais fácil e rapidamente ao que chamam por aí de forma coerente, o poeta tem a sua linguagem, essas coisas... Mas achei que tinha que me preparar como um todo, como gente para fazer poesia e não como um artesão. Por isso, quando me perguntam o que é que vou fazer amanhã, digo que não sei. A vida está me acumulando de coisas, eu vou vivendo, vou aprendendo, conhecendo e, um dia, um fato qualquer, um acontecimento ou uma idéia, precipita a junção de tudo isso e bum, se transforma em poesia.
FERREIRA GULLAR - Quero que, de princípio, fique bem claro que não fiz o Poema Sujo para modificar nada. Não fiz o Poema Sujo para criar uma nova forma de poesia nem para revolucionar a poesia brasileira. Fiz o Poema Sujo para sobreviver, como em geral sempre faço poesia - no último instante. Quando não é possível fazer mais nada, faço poesia. Agora, é preciso também que seja possível fazer poesia, porque às vezes nem mesmo isso é possível.
Veja - Como você vê o desenvolvimento da literatura hoje no Brasil?
FERREIRA GULLAR - No campo da poesia, especificamente, vejo uma coisa muito positiva: o abandono de certo preconceito formalista que dominou e castrou a poesia brasileira durante mais de vinte anos, a partir do concretismo. Quer dizer, um preconceito formalista. Chegou-se a dizer que a poesia deveria ser feita segundo estruturas matemáticas...
Veja - Sobre isso você teve uma conversa com João Cabral de Melo Neto.
FERREIRA GULLAR - É. Eu estava conversando com ele, em Barcelona, em 1968, e ele me perguntou por que é que eu tinha rompido com o concretismo. Disse-lhe que foi porque o pessoal inventou que a poesia tinha que ser feita segundo estruturas matemáticas e eu achava isso uma bobagem. Aí ele me disse: Não, mas pode ser feita, sim. Por exemplo: a Educação pela Pedra’ que eu fiz é tudo dois. O ritmo é de dois em dois, os versos são dois em dois, o conjunto do poema é dois, é tudo dois. Então eu perguntei: Mas esse dois veio de onde? O que é que determinou esse dois? Não podia ser três? quatro? E ele disse que podia. Então essa estrutura matemática aí está curada. Você não pode criar uma estrutura a partir da qual nasça necessariamente a linguagem. Você pode, isso sim, criar uma estrutura e justapor a ela a linguagem, mas isso é arbitrário. A verdade da poesia é a verdade que comove. Quando Newton diz que matéria atrai matéria na razão direta das massas, isso é uma verdade científica que pode ser aferida. Agora, quando Hegel diz que o concreto é a soma de todas as determinações, isso é uma verdade filosófica que não pode ser aferida como a da ciência. Mas quando Drummond diz: como aqueles primitivos que carregam consigo o maxilar inferior dos seus mortos e eu te carrego comigo tardes de maio, não é verdade, mas é bonito demais, não é? Se você for aferir no nível da verdade, essa frase não vale nada. O que é que sustenta essa frase? É que ela comove. Esse é o conteúdo da poesia. Quando alguém quer transformar a poesia numa coisa racionalista, objetivista, dá com os burros n’água, e castra. Se você elimina do homem o direito de se comover e dizer sua emoção, você pode até adoecer as pessoas. Se numa sociedade se proibisse a expressão da emoção - e às vezes, se proíbe, não diretamente, mas pela imposição de uma censura violenta - se criaria uma enfermidade social, impedindo não só a manifestação da emoção lírica como a da revolta, do protesto.
Veja - E a censura? Há quem diga que ela já está anexada naturalmente a produção de determinada camada de intelectuais.
FERREIRA GULLAR - Se isso é verdade, é uma coisa terrível. Eu confesso que me nego a acreditar nisso. Pode ser até que seja verdade, mas simplesmente não quero acreditar. Sou radicalmente contra a censura. Agora, todos esses anos de censura rigorosa sobre as atividades artísticas e culturais no Brasil demonstraram que a intelectualidade brasileira não se rendeu. Ficou provada uma forte resistência à censura, além da grande vitalidade da nossa literatura. Tudo isso que tem saldo de livros, revistas, jornais não foi de graça, não. Representa uma luta enorme porque desde 1968, 1969, tem havido prejuízos. Mas a observação direta mostra que o pessoal resistiu apesar de tudo, e continua criando. Eu não sou ufanista, não, mas a gente tem que reconhecer que o Brasil é um país de enorme vitalidade.
Veja - O que é que você acha dessa descoberta repentina da América Latina que está havendo nas artes em geral?
FERREIRA GULLAR - Eu que vivi durante algum tempo em alguns países latino-americanos posso dizer o seguinte: o Chile tem pouco a ver com a Argentina, a Argentina pouco a ver com o Peru e os três juntos muito pouco a ver com o Brasil. Não acredito em arte internacional porque a fonte da arte é o particular. Evidentemente, quando um romancista brasileiro fala de sua experiência e da realidade brasileira, está falando da América Latina também. Mas está falando igualmente do mundo contemporâneo. Agora, se a literatura brasileira quiser fazer García Márquez, aí não dá pé, porque García Márquez é produto de uma cultura específica. Vai empobrecer muito. Mas o que acho positivo nisso tudo é que, na medida em que nós, latino-americanos, tomamos consciência da nossa realidade, que o brasileiro conheça o que é a Venezuela, a Colômbia, o Peru, o Chile... e na medida em que eles também se conheçam entre si e ao Brasil... todos conhecerão os graves, profundos e inacreditáveis problemas do continente latino-americano. A solidariedade latino-americana é um dado fundamental na solução desses problemas, mas, para que isso seja feito com autenticidade e conseqüência, é preciso que
antes cada um se conheça a si mesmo, porque, para que o argentino conheça o brasileiro, é preciso que o brasileiro fale de si mesmo e não de um brasileiro misturado com peruano, chileno, etc.
Veja - O que você pensa fazer no Brasil?
FERREIRA GULLAR - Olha, ainda não tenho idéia. O que tenho que fazer é voltar para a minha profissão. Sou jornalista e foi como jornalista que sempre ganhei a vida. Então a perspectiva é essa: procurar emprego num jornal, numa revista e ganhar minha vida.
Veja - O que é que vai mudar em sua vida quando você voltar?
FERREIRA GULLAR - Não sei, não, mas acho que vai ser uma mudança muito séria, porque, depois de quase seis anos fora, o Brasil deve ter mudado muito e, segundo me dizem, mudou mesmo - para pior. As pessoas me dizem, por exemplo, que o Rio está uma cidade insuportável, uma barulheira dos diabos, ônibus, táxis, carros, metrô, buraco pra tudo quanto é lado, que as pessoas quase não conseguem se mover. Um outro aspecto da minha saída daqui é que sempre vivi sozinho todos esses anos, exceto alguns intervalos em que minha família esteve comigo aqui e no Peru. Estou sempre em minha casa lendo, pensando, às vezes pensando até demais, falando sozinho... Vou estranhar muito essa mudança.
Veja - É curioso pensar que você está vivendo há seis anos fora do Brasil e escreveu um poema que fala tanto de suas coisas em São Luís do Maranhão.
FERREIRA GULLAR - Sim, mas na verdade, se não estivesse tanto tempo fora, jamais teria escrito esse poema. O conhecimento das diferenças e semelhanças desses países em que vivi é que deu origem ao poema. Aprendi, também, a confirmar coisas que sabia em teoria. Se falo de São Luís, estou falando da América Latina. Está aí uma resposta concreta e outra pergunta. Não preciso misturar São Luís com Santiago, nem misturar as palavras, os símbolos, os elementos culturais, geográficos ou políticos para expressar a América Latina. O problema é exatamente esse: que eu encontre a expressão universal da coisa particular. O poema nasce disso e da enorme carência que é você viver no exílio. Pelo menos eu, nesse caso, me sinto completamente
desenraizado, sinto um vazio em torno de mim...... Por exemplo: alguém vive numa cidade anos e anos, essa cidade faz parte da história dele e em todos os lugares dessa cidade, do bairro em que ele viveu, das ruas por onde ele andou, está tudo impregnado dele. O poste não é um poste. A esquina não é uma esquina, um pedaço de praia não é apenas um pedaço de praia. Está tudo impregnado da história dessa pessoa, da sua geração e da gente dela. O mundo, dessa forma, não é tão inumano e imaterial, mas sim histórico, cultural e social. Agora, quando alguém está numa cidade que não tem nada a ver com ele, um poste é só um poste, uma fachada é só uma fachada e um crepúsculo é só um crepúsculo, cósmico... é esmagador, porque não tem nada a ver com ele. É uma experiência que até enriquece, mas é uma experiência terrível porque a pessoa se defronta com uma realidade alheia a ela, que não lhe responde, e na qual ela não se reflete.
Veja - Você não tem definitivamente nenhum projeto?
FERREIRA GULLAR - Tenho alguns artigos para o Brasil e penso em juntá-los em livro, discutindo o problema da arte e da literatura. Talvez faça isso. Já escrevi dois livros sobre o assunto, Cultura Posta em Questão, em 1956, e Vanguarda e Subdesenvolvimento, em 1969, discutindo os problemas da cultura brasileira.
Veja - Você podia identificar alguns deles?
FERREIRA GULLAR - Esse é um assunto que se discute muito hoje no Brasil e é um problema que está ligado ao que se colocou anteriormente sobre a literatura latino-americana. No fundo, é tudo uma questão de busca de identidade, já que a América Latina, como continente, foi colonizada e sua cultura é um ramo da cultura européia. É certo que ela se desenvolveu, ganhou formas particulares em cada país, mas na verdade é um desdobramento da cultura européia. Durante séculos essa cultura se desenvolveu com características de dependência, mas pouco a pouco esse caráter de dependência foi se reduzindo e sobretudo a consciência do nosso caráter de dependência foi aumentando, o que é um passo para realmente se conseguir uma independência.
Esse é um problema importante ligado a um processo de libertação econômica e política. Em muitos casos, a discussão do problema cultural é exatamente reflexo dos debates em torno das questões econômicas e políticas. Quero escrever um novo livro para atualizar o meu pensamento com relação a esses problemas, porque não gostaria que certas coisas que escrevi e das quais hoje discordo continuassem a aparecer como sendo o meu pensamento, sobretudo porque, de uma maneira ou de outra, isso passa para outra pessoa e as idéias vão tomando curso. Assim, na medida em que você errou, tem obrigação de rever esses conceitos, mesmo porque isso é um trabalho coletivo de esclarecimento, de entendimento da realidade e do problema cultural, que
é uma tarefa de todos.
Veja - Que tipo de revisão você faria do problema da cultura?
FERREIRA GULLAR - É muito difícil dizer. Mas, quando releio os livros e me defronto com os problemas expostos, percebo que em alguns pontos fui estreito, esquemático e que a coisa é mais complexa. No fundamental, estou de acordo com o que disse no Vanguarda e Subdesenvolvimento. Quer dizer, estou de acordo com a idéia de que a literatura e a arte nascem da experiência particular. Então, quando se coloca o problema da cultura nacional, não é
por chauvinismo ou nacionalismo. Isso é simplesmente condição fundamental para você criar. Criar a partir da experiência vivida, particular. Você pode fazer literatura a partir da literatura, mas isso nunca será uma experiência criadora. Muitos garotos por aí fazem música a partir da música americana e inglesa. Mas que contribuição essa música está dando para a música? Não está dando nenhuma porque fazem pior que os outros, porque a fonte da experiência não
está no Brasil. Mesmo que o cara não copie simplesmente, ele já parte não de uma coisa vital, que permita a criação, mas de uma coisa já formulada. No máximo, ele dilui uma experiência que não teve. Isso, também do ponto de vista da própria atitude do cara diante da realidade, me parece uma coisa negativa. É uma condição da própria dependência cultural, é claro, mas exatamente por isso os intelectuais, os artistas têm que fazer um esforço de crítica do que é importado para varar essa camada de cultura colonizadora e chegar à sua própria realidade, para exprimi-la.
Veja - Você não acha que esse esforço de crítica de que fala estaria hoje um tanto enfraquecido?
FERREIRA GULLAR - Em princípio, arte e literatura verdadeiramente criadoras são uma coisa sempre difícil e rara em qualquer época e lugar. Muita gente faz literatura e pouca gente consegue realmente criar dentro da literatura. Há épocas, entretanto, que, por motivos mais intrincados, favorecem o aparecimento de um número maior de escritores, poetas, romancistas, músicos, etc. No Brasil, até onde percebo de longe, de alguns anos para cá, em função mesmo das condições políticas, houve certa tendência em interromper o processo de tomada de consciência da realidade brasileira. Houve certa tendência em se adotar de novo elementos e padrões de fora, como o estruturalismo, por exemplo. Isso ocorre porque certo tipo de concepção filosófica não favorece o conhecimento da realidade - pelo contrário, favorece uma alienação, uma visão alienada do processo social. O estruturalismo, por exemplo, em suas diversas manifestações, tende muito a favorecer, no campo da literatura, o formalismo, um certo elitismo literário. É curioso isso, porque certas filosofias que de vez em quando aparecem e ficam na moda durante algum tempo surgem sempre com um caráter pseudo-revolucionário, e depois, quando
você vai ver, elas terminam se acovardando e se dando muito bem com as posições reacionárias anteriores no campo da política, da arte, da literatura. Portanto, o fundamental nisso tudo é que se mantenha viva a experiência criadora, a tentativa, a paixão por dizer, por criar.
Veja - Como surgiu o Poema Sujo?
FERREIRA GULLAR - Parti da estrutura de um poema que fiz sobre o formigueiro, no início do movimento concretista. Há uma lenda em minha terra que diz que onde tem formiga tem dinheiro enterrado. Na minha casa tinha muita formiga, era aquele tipo de casa antiga, muito úmida... e, quando chovia, no pé da parede surgia aquele monte de formigas pretas, verdadeiros exércitos, um negócio que me impressionava muito. Então eu quis fazer um poema que
estivesse ligado a essa lembrança da minha infância e fiz esse poema sobre o formigueiro. De outra vez, uma noite aqui em Buenos Aires, me veio a lembrança de São Luís, minha casa, meus irmãos, o quintal e as formigas saindo da parede, e me lembrei do poema da formigas. Aí eu disse: Puxa, eu podia fazer um poema em que vomitasse tudo que tenho dentro de mim logo na primeira página e a partir dessa matéria bruta fosse desfiando todo o poema. Como já era tarde da noite, fui me deitar com aquela idéia sem sair da cabeça e no dia seguinte cedo me sentei na frente da máquina e disse: Agora vou vomitar tudo. Mas o vômito não saía porque não existe uma garganta verbal onde você meta o dedo e vomite a linguagem. Então fiquei assim meio besta, frustrado e pensando: Pombas, o grande poema da minha vida é inviável porque não consigo vomitar o meu passado. Aí fiquei andando um pouco, voltei para a máquina e comecei a escrever o princípio do poema: turvo, turvo, a turva mão do sopro contra o muro..., que era a tentativa de ir o mais longe que a minha memória podia alcançar, ali onde ainda não existe nada, é tudo impreciso, escuro, mais que escuro, claro.... E aí começa um bicho que vem sonhando...,
eu entro dentro de mim e disparo o poema. Nessa hora fiquei muito excitado e achando que alguma coisa se tinha aberto dentro de mim, que realmente eu tinha rompido alguma coisa que começava a manar lá de dentro.
Veja - O que é que desencadeou essa vontade de vomitar toda a sua vida?
FERREIRA GULLAR - Acho que isso é fruto de todos esses anos e de tanta paulada que levei. Vontade de escrever um poema brasileiro e que não fosse uma coisa pessoal apenas. Uma coisa que fosse minha gente, que fosse mais do que eu, que fosse minha vida toda, na medida em que minha vida toda é a vida de todo mundo. Sempre achei que tudo que tinha feito até então era menos do que tinha que fazer e dizer. E, claro, na medida em que você vai amadurecendo, em que você assimilou uma série de coisas, aquilo passa a fazer parte de uma estrutura dentro de você. De certo modo eu sempre buscava isso. Saber, mas saber no corpo, não na cabeça. Quer dizer, um aprendizado poético que ficasse inserido em mim como sei falar, comer, dançar. Como
uma coisa integrada em minha carne, nos meus nervos, em meu cuspe. Foi um aprendizado difícil; eu poderia ter escolhido um outro caminho por onde chegaria mais fácil e rapidamente ao que chamam por aí de forma coerente, o poeta tem a sua linguagem, essas coisas... Mas achei que tinha que me preparar como um todo, como gente para fazer poesia e não como um artesão. Por isso, quando me perguntam o que é que vou fazer amanhã, digo que não sei. A vida está me acumulando de coisas, eu vou vivendo, vou aprendendo, conhecendo e, um dia, um fato qualquer, um acontecimento ou uma idéia, precipita a junção de tudo isso e bum, se transforma em poesia.
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