Entrevista concedida a Veja em 2003, com o especialista americano, para quem é a riqueza fácil e não o Islã que impede a democracia no Oriente Médio
Veja — Por que a democracia é rara entre os países de maioria muçulmana?
ZAKARIA — Discordo daqueles que afirmam que o problema do Oriente é a religião muçulmana. É a mesma explicação simplista que foi dada sobre as dificuldades de democratizar a Ásia. Dizia-se que esse tipo de organização social entrava em choque com a herança cultural do confucionismo. Também se falou da impossibilidade de a América Latina se tornar liberal devido ao atraso das culturas indígenas. Isso tudo é bobagem. Max Weber, o primeiro teórico a
afirmar que a cultura antecede a democracia, acreditava que a ética protestante fora essencial para o desenvolvimento do capitalismo e, conseqüentemente, da democracia. Logo surgiram aqueles que seguiram essa linha de raciocínio para concluir que a cultura católica era incompatível com a democracia e o desenvolvimento econômico. Quem acreditaria nessa teoria hoje? Basta observar os avanços democráticos de nações católicas na Europa e até na América
Latina para chegar à conclusão de que não existem barreiras culturais ou religiosas que impeçam a democracia. É espantoso que as pessoas continuem a acreditar nessas teorias reducionistas, até que um dia percebam que as culturas se transformaram.
Veja — Como ocorre essa transformação cultural?
ZAKARIA — Com boas lideranças, com a criação de instituições democratizantes e com o desejo das nações de romper com o passado para construir um Estado moderno. Se essas ambições existirem no Iraque, por exemplo, a democracia será um passo natural. Veja o caso da Indonésia. É o mais populoso país muçulmano e é também uma democracia. Se a religião fosse um problema, seria impossível explicar o fato de a Indonésia ter se transformado em um Estado democrático. Seria igualmente difícil entender a democracia na Turquia e em Bangladesh. Ou seja, há democracias islâmicas.
Veja — Mas não há nenhuma democracia em país árabe. Por quê?
ZAKARIA — A principal barreira à democracia no mundo árabe não é o islamismo ou a cultura árabe. É o petróleo. Todos os países ricos do mundo árabe têm o petróleo como principal fonte de renda. Essa especificidade fez com que os líderes desses países nunca tenham sido forçados a modernizar a sociedade e a economia. Como bastava furar o chão para o dinheiro jorrar, não houve a necessidade de criar uma economia capitalista moderna, que exige trabalho duro. Costumo dizer que o petróleo é a maldição do mundo árabe. Pelo menos no que diz respeito à modernização econômica e política. De todos os países com petróleo, apenas um, a Noruega, é democrático.
Veja — Como o senhor explica o caso da Venezuela, que é um grande produtor petrolífero e um Estado democrático há décadas?
ZAKARIA — É um caso exemplar. A Venezuela é um país rico que, por muitos anos, manteve os melhores índices de qualidade de vida da América Latina. Mas o petróleo gerou um Estado corrupto. O governo não modernizou as instituições sociais, não criou novas fontes de renda, não desenvolveu indústrias e talentos humanos nem educou as forças de trabalho. Parecia satisfeito com o dinheiro fácil que brotava do solo. Agora, com o presidente Hugo Chávez, a Venezuela tornou-se pior do que muitas ditaduras. É uma das nações mais ricas do mundo e 70% da população vive abaixo da linha de pobreza.
Veja — O senhor escreveu que só os países com renda per capita superior a 6 000 dólares podem ser realmente democráticos. Como explicar a existência de democracias em nações com renda per capita menores, como o Brasil?
ZAKARIA — É um argumento bastante polêmico e estou sendo mal interpretado. O que escrevi em meu livro O Futuro da Liberdade é que, fazendo uma retrospectiva histórica, as nações que tiveram sucesso em sua transição democrática eram aquelas que tinham três caraterísticas básicas: legislação desenvolvida, economia de mercado não necessariamente no estilo americano, mas com produtividade e crescimento e classe média ativa. Não é por coincidência que quando esses três elementos coexistiam os países também apresentavam boa distribuição de renda. Em média, a transição democrática falhou em países cuja renda per capita era menor que 3.000 dólares. Em contraste, sempre que ocorreu em países com renda per capita acima de 6.000
dólares, a revolução democrática deu certo. Claro que a vida é muito mais complicada do que essas estatísticas. Mas é importante notar que foi a classe média que sustentou os movimentos democráticos em todos os países.
Veja — O senhor não acredita que uma revolução de massa possa resultar em democracia?
ZAKARIA — A classe média não lutou sozinha pela democracia. Mas, geralmente, foi ela que batalhou pelos contratos sociais, pela Justiça independente, pelos organismos que transformam a democracia de direito em democracia de fato. O que está na raiz do desenvolvimento das nações não é a democracia, mas a liberdade individual. Claro que existem países em que a abertura política veio de baixo ou foi imposta de cima. A Venezuela é um desses casos. E observe como está o país hoje: um sistema populista que quase não difere de uma ditadura.
Veja — Em seu último livro, o senhor afirma que a proliferação da democracia pode ser tanto uma conquista boa quanto ruim. Por quê?
ZAKARIA — Não se pode negar que democracia é uma grande conquista. Mas para atingi-la verdadeiramente é preciso mais que eleições. A democracia requer uma série de instituições e tradições que preservem e protejam a liberdade dos indivíduos e as regras da lei. São essas instituições que dão vida à democracia tal como a conhecemos no Ocidente e fazem dela muito mais que um mero concurso de beleza. Sem esses fatores, as democracias são como conchas vazias. Não têm conteúdo e não fazem o menor sentido.
Veja — Como diferenciar uma democracia verdadeira daquilo que o senhor chama de "concha vazia"?
ZAKARIA — Quando olhamos para o mundo e vemos os processos democráticos atuais, com eleições e corridas presidenciais se desenvolvendo em países sem tradições liberais, percebemos que não estamos diante de verdadeiras democracias. Estamos criando o que chamo de Estados democráticos não liberais, sistemas que não são melhores que uma ditadura. Esse é o grande problema dos tempos atuais: políticos como o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, aprenderam a manipular o conceito de democracia. Eu sou um amigo da democracia. Como todo amigo verdadeiro, prefiro criticar os problemas a festejar as conquistas.
Veja — No Oriente Médio, o que vem primeiro: o dinheiro fácil do petróleo ou a falta de tradição democrática?
ZAKARIA — Sem dúvida há aspectos das sociedades árabes que dificultam o desenvolvimento de Estados liberais. Além da mentalidade conservadora dos líderes árabes, a região sempre foi marcada por conflitos armados e culturas tribais. Mas isso só explica parte da equação. O Japão, que também tinha uma cultura feudal, conseguiu criar uma economia capitalista e treinar os cidadãos para competir nessa nova realidade. O mesmo aconteceu na Coréia do Sul, em Taiwan e em Cingapura. Sabe por quê? Porque eles não tinham a abundância de recursos naturais que o Oriente Médio tem. Quando o dinheiro não vem fácil, o Estado precisa prover as condições básicas para a modernização econômica. No caso árabe, o petróleo traz divisas que não são repartidas entre os cidadãos. Ao contrário, gera desigualdades e péssima distribuição de renda.
Veja — O senhor propõe uma "reforma do petróleo" no Iraque. O que significa isso?
ZAKARIA — A reforma do petróleo equivaleria no Oriente Médio à reforma agrária em outros países. Afinal, o que significa a reforma agrária senão tirar da mão de uns poucos o mais importante recurso natural, que na maioria das nações é a terra? A idéia é dividi-la para que todos tenham uma fonte de renda e, dessa forma, também possam participar de uma economia de mercado. Além da questão econômica, há um importante fator social: ao ganhar um pedaço
de terra, o cidadão passa a se sentir parte da sociedade em que vive. Com o petróleo, o conceito é o mesmo: redistribuir o principal recurso do Iraque, tirando do governo e entregando ao povo.
Veja — Como isso pode ser feito?
ZAKARIA — Há várias maneiras de realizar essa reforma. Uma delas seria através da criação de um fundo nacional do petróleo. Uma espécie de órgão central teria a responsabilidade de administrar e recolher as receitas provenientes de sua extração. O fundo só poderia aplicar recursos em políticas predeterminadas pelo governo. Ou seja, em programas de educação e saúde. Essa estratégia está sendo adotada com bons resultados no Chade, um país do norte da África, desde 1995.
Veja — Como se poderia evitar o desvio desse dinheiro por funcionários e políticos corruptos?
ZAKARIA — Em países com alto grau de corrupção, esse fundo de administração do petróleo poderia realmente se tornar um problema e não uma solução. É por isso que esse órgão no Chade é independente do governo, observado por entidades internacionais e auditado anualmente por empresas privadas. No caso do Iraque, o novo governo teria de fazer o mesmo: abrir as contas públicas para que o mundo possa saber o que está sendo feito com o dinheiro. O petróleo permite essa contabilidade. Basta verificar quantos barris foram vendidos e a que preço. Depois, determinar a porcentagem desse total que será investida em programas de saúde, educação, moradia popular etc. Se o novo governo iraquiano não tiver esse grau de transparência, pode-se pensar em outra solução para a democratização do petróleo.
Veja — Qual seria essa outra estratégia?
ZAKARIA — Semelhante à que os Estados Unidos têm no Estado do Alasca. Todo o dinheiro que o governo recolhe com a venda de barris de petróleo no Estado é devolvido à população em forma de desconto em impostos. Hoje, cada morador do Alasca recebe 8.000 dólares por ano. É a sua participação nos lucros que o Estado obtém com o uso do patrimônio público. Mais uma vez, trata-se de uma reforma agrária. O dinheiro sai das mãos do governo e de poucos oligarcas e vai parar na conta corrente do cidadão. Sem intermediários. O mais interessante é que o dinheiro volta para a economia doméstica, revitalizando o comércio e a indústria.
Veja — O presidente George W. Bush afirma que a criação de uma democracia no Iraque funcionará como exemplo para o Oriente Médio. Quais as chances de que isso dê certo?
ZAKARIA — Tudo depende da forma como os Estados Unidos vão administrar o Iraque nos próximos anos. Temos de pensar em duas fases distintas. Primeiro, é preciso construir naquele país as instituições liberais que são a espinha dorsal da democracia. Depois, é necessário ajudar os iraquianos a administrar essas instituições. Só então poderemos apresentar o Iraque como um exemplo para o resto da região. Por outro lado, se os Estados Unidos resolverem voltar para casa em nove meses, por causa da eleição presidencial, não há chance alguma de que o Iraque dê certo como país.
Veja — Os exemplos de administração pós-guerra na Bósnia e no Afeganistão oferecem algumas indicações para a reconstrução no Iraque?
ZAKARIA — A primeira lição que aprendemos na Bósnia é que não podemos marcar eleições muito cedo. Na Iugoslávia, a velha ordem comunista foi rapidamente destruída, mas novas lideranças demoraram muito tempo para despontar. No momento em que o país marcou suas primeiras eleições livres, a transição para a democracia estava fadada ao fracasso. Isso porque os políticos apelaram para os votos da forma mais sensível aos eleitores: o ódio religioso. O que veio em seguida foi o recrudescimento do nacionalismo sérvio, croata e bósnio. As eleições foram vistas pelos diversos grupos étnicos e religiosos como a oportunidade para impor sua própria ordem política na Bósnia. Da mesma forma, se o processo democrático for mal conduzido no Iraque, há grande possibilidade de o caos iugoslavo se repetir no Oriente Médio.
Veja — O Iraque será uma nação dos sunitas, dos xiitas, dos curdos ou dos americanos?
ZAKARIA — O Iraque se tornará inevitavelmente um país democrático. Como os xiitas são maioria, eles deverão dominar o Parlamento e governar a nação por um bom período. Por isso temos de pensar também na criação de outras formas de representação política para contentar os demais grupos étnicos e religiosos.
Veja — E como fazer isso?
ZAKARIA — Talvez seja preciso pensar em um Estado cuja representação seja proporcional aos grupos religiosos ou numa estrutura federal descentralizada. Há muitas formas de criar uma estrutura política legítima e multifacetada.
ZAKARIA — Discordo daqueles que afirmam que o problema do Oriente é a religião muçulmana. É a mesma explicação simplista que foi dada sobre as dificuldades de democratizar a Ásia. Dizia-se que esse tipo de organização social entrava em choque com a herança cultural do confucionismo. Também se falou da impossibilidade de a América Latina se tornar liberal devido ao atraso das culturas indígenas. Isso tudo é bobagem. Max Weber, o primeiro teórico a
afirmar que a cultura antecede a democracia, acreditava que a ética protestante fora essencial para o desenvolvimento do capitalismo e, conseqüentemente, da democracia. Logo surgiram aqueles que seguiram essa linha de raciocínio para concluir que a cultura católica era incompatível com a democracia e o desenvolvimento econômico. Quem acreditaria nessa teoria hoje? Basta observar os avanços democráticos de nações católicas na Europa e até na América
Latina para chegar à conclusão de que não existem barreiras culturais ou religiosas que impeçam a democracia. É espantoso que as pessoas continuem a acreditar nessas teorias reducionistas, até que um dia percebam que as culturas se transformaram.
Veja — Como ocorre essa transformação cultural?
ZAKARIA — Com boas lideranças, com a criação de instituições democratizantes e com o desejo das nações de romper com o passado para construir um Estado moderno. Se essas ambições existirem no Iraque, por exemplo, a democracia será um passo natural. Veja o caso da Indonésia. É o mais populoso país muçulmano e é também uma democracia. Se a religião fosse um problema, seria impossível explicar o fato de a Indonésia ter se transformado em um Estado democrático. Seria igualmente difícil entender a democracia na Turquia e em Bangladesh. Ou seja, há democracias islâmicas.
Veja — Mas não há nenhuma democracia em país árabe. Por quê?
ZAKARIA — A principal barreira à democracia no mundo árabe não é o islamismo ou a cultura árabe. É o petróleo. Todos os países ricos do mundo árabe têm o petróleo como principal fonte de renda. Essa especificidade fez com que os líderes desses países nunca tenham sido forçados a modernizar a sociedade e a economia. Como bastava furar o chão para o dinheiro jorrar, não houve a necessidade de criar uma economia capitalista moderna, que exige trabalho duro. Costumo dizer que o petróleo é a maldição do mundo árabe. Pelo menos no que diz respeito à modernização econômica e política. De todos os países com petróleo, apenas um, a Noruega, é democrático.
Veja — Como o senhor explica o caso da Venezuela, que é um grande produtor petrolífero e um Estado democrático há décadas?
ZAKARIA — É um caso exemplar. A Venezuela é um país rico que, por muitos anos, manteve os melhores índices de qualidade de vida da América Latina. Mas o petróleo gerou um Estado corrupto. O governo não modernizou as instituições sociais, não criou novas fontes de renda, não desenvolveu indústrias e talentos humanos nem educou as forças de trabalho. Parecia satisfeito com o dinheiro fácil que brotava do solo. Agora, com o presidente Hugo Chávez, a Venezuela tornou-se pior do que muitas ditaduras. É uma das nações mais ricas do mundo e 70% da população vive abaixo da linha de pobreza.
Veja — O senhor escreveu que só os países com renda per capita superior a 6 000 dólares podem ser realmente democráticos. Como explicar a existência de democracias em nações com renda per capita menores, como o Brasil?
ZAKARIA — É um argumento bastante polêmico e estou sendo mal interpretado. O que escrevi em meu livro O Futuro da Liberdade é que, fazendo uma retrospectiva histórica, as nações que tiveram sucesso em sua transição democrática eram aquelas que tinham três caraterísticas básicas: legislação desenvolvida, economia de mercado não necessariamente no estilo americano, mas com produtividade e crescimento e classe média ativa. Não é por coincidência que quando esses três elementos coexistiam os países também apresentavam boa distribuição de renda. Em média, a transição democrática falhou em países cuja renda per capita era menor que 3.000 dólares. Em contraste, sempre que ocorreu em países com renda per capita acima de 6.000
dólares, a revolução democrática deu certo. Claro que a vida é muito mais complicada do que essas estatísticas. Mas é importante notar que foi a classe média que sustentou os movimentos democráticos em todos os países.
Veja — O senhor não acredita que uma revolução de massa possa resultar em democracia?
ZAKARIA — A classe média não lutou sozinha pela democracia. Mas, geralmente, foi ela que batalhou pelos contratos sociais, pela Justiça independente, pelos organismos que transformam a democracia de direito em democracia de fato. O que está na raiz do desenvolvimento das nações não é a democracia, mas a liberdade individual. Claro que existem países em que a abertura política veio de baixo ou foi imposta de cima. A Venezuela é um desses casos. E observe como está o país hoje: um sistema populista que quase não difere de uma ditadura.
Veja — Em seu último livro, o senhor afirma que a proliferação da democracia pode ser tanto uma conquista boa quanto ruim. Por quê?
ZAKARIA — Não se pode negar que democracia é uma grande conquista. Mas para atingi-la verdadeiramente é preciso mais que eleições. A democracia requer uma série de instituições e tradições que preservem e protejam a liberdade dos indivíduos e as regras da lei. São essas instituições que dão vida à democracia tal como a conhecemos no Ocidente e fazem dela muito mais que um mero concurso de beleza. Sem esses fatores, as democracias são como conchas vazias. Não têm conteúdo e não fazem o menor sentido.
Veja — Como diferenciar uma democracia verdadeira daquilo que o senhor chama de "concha vazia"?
ZAKARIA — Quando olhamos para o mundo e vemos os processos democráticos atuais, com eleições e corridas presidenciais se desenvolvendo em países sem tradições liberais, percebemos que não estamos diante de verdadeiras democracias. Estamos criando o que chamo de Estados democráticos não liberais, sistemas que não são melhores que uma ditadura. Esse é o grande problema dos tempos atuais: políticos como o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, aprenderam a manipular o conceito de democracia. Eu sou um amigo da democracia. Como todo amigo verdadeiro, prefiro criticar os problemas a festejar as conquistas.
Veja — No Oriente Médio, o que vem primeiro: o dinheiro fácil do petróleo ou a falta de tradição democrática?
ZAKARIA — Sem dúvida há aspectos das sociedades árabes que dificultam o desenvolvimento de Estados liberais. Além da mentalidade conservadora dos líderes árabes, a região sempre foi marcada por conflitos armados e culturas tribais. Mas isso só explica parte da equação. O Japão, que também tinha uma cultura feudal, conseguiu criar uma economia capitalista e treinar os cidadãos para competir nessa nova realidade. O mesmo aconteceu na Coréia do Sul, em Taiwan e em Cingapura. Sabe por quê? Porque eles não tinham a abundância de recursos naturais que o Oriente Médio tem. Quando o dinheiro não vem fácil, o Estado precisa prover as condições básicas para a modernização econômica. No caso árabe, o petróleo traz divisas que não são repartidas entre os cidadãos. Ao contrário, gera desigualdades e péssima distribuição de renda.
Veja — O senhor propõe uma "reforma do petróleo" no Iraque. O que significa isso?
ZAKARIA — A reforma do petróleo equivaleria no Oriente Médio à reforma agrária em outros países. Afinal, o que significa a reforma agrária senão tirar da mão de uns poucos o mais importante recurso natural, que na maioria das nações é a terra? A idéia é dividi-la para que todos tenham uma fonte de renda e, dessa forma, também possam participar de uma economia de mercado. Além da questão econômica, há um importante fator social: ao ganhar um pedaço
de terra, o cidadão passa a se sentir parte da sociedade em que vive. Com o petróleo, o conceito é o mesmo: redistribuir o principal recurso do Iraque, tirando do governo e entregando ao povo.
Veja — Como isso pode ser feito?
ZAKARIA — Há várias maneiras de realizar essa reforma. Uma delas seria através da criação de um fundo nacional do petróleo. Uma espécie de órgão central teria a responsabilidade de administrar e recolher as receitas provenientes de sua extração. O fundo só poderia aplicar recursos em políticas predeterminadas pelo governo. Ou seja, em programas de educação e saúde. Essa estratégia está sendo adotada com bons resultados no Chade, um país do norte da África, desde 1995.
Veja — Como se poderia evitar o desvio desse dinheiro por funcionários e políticos corruptos?
ZAKARIA — Em países com alto grau de corrupção, esse fundo de administração do petróleo poderia realmente se tornar um problema e não uma solução. É por isso que esse órgão no Chade é independente do governo, observado por entidades internacionais e auditado anualmente por empresas privadas. No caso do Iraque, o novo governo teria de fazer o mesmo: abrir as contas públicas para que o mundo possa saber o que está sendo feito com o dinheiro. O petróleo permite essa contabilidade. Basta verificar quantos barris foram vendidos e a que preço. Depois, determinar a porcentagem desse total que será investida em programas de saúde, educação, moradia popular etc. Se o novo governo iraquiano não tiver esse grau de transparência, pode-se pensar em outra solução para a democratização do petróleo.
Veja — Qual seria essa outra estratégia?
ZAKARIA — Semelhante à que os Estados Unidos têm no Estado do Alasca. Todo o dinheiro que o governo recolhe com a venda de barris de petróleo no Estado é devolvido à população em forma de desconto em impostos. Hoje, cada morador do Alasca recebe 8.000 dólares por ano. É a sua participação nos lucros que o Estado obtém com o uso do patrimônio público. Mais uma vez, trata-se de uma reforma agrária. O dinheiro sai das mãos do governo e de poucos oligarcas e vai parar na conta corrente do cidadão. Sem intermediários. O mais interessante é que o dinheiro volta para a economia doméstica, revitalizando o comércio e a indústria.
Veja — O presidente George W. Bush afirma que a criação de uma democracia no Iraque funcionará como exemplo para o Oriente Médio. Quais as chances de que isso dê certo?
ZAKARIA — Tudo depende da forma como os Estados Unidos vão administrar o Iraque nos próximos anos. Temos de pensar em duas fases distintas. Primeiro, é preciso construir naquele país as instituições liberais que são a espinha dorsal da democracia. Depois, é necessário ajudar os iraquianos a administrar essas instituições. Só então poderemos apresentar o Iraque como um exemplo para o resto da região. Por outro lado, se os Estados Unidos resolverem voltar para casa em nove meses, por causa da eleição presidencial, não há chance alguma de que o Iraque dê certo como país.
Veja — Os exemplos de administração pós-guerra na Bósnia e no Afeganistão oferecem algumas indicações para a reconstrução no Iraque?
ZAKARIA — A primeira lição que aprendemos na Bósnia é que não podemos marcar eleições muito cedo. Na Iugoslávia, a velha ordem comunista foi rapidamente destruída, mas novas lideranças demoraram muito tempo para despontar. No momento em que o país marcou suas primeiras eleições livres, a transição para a democracia estava fadada ao fracasso. Isso porque os políticos apelaram para os votos da forma mais sensível aos eleitores: o ódio religioso. O que veio em seguida foi o recrudescimento do nacionalismo sérvio, croata e bósnio. As eleições foram vistas pelos diversos grupos étnicos e religiosos como a oportunidade para impor sua própria ordem política na Bósnia. Da mesma forma, se o processo democrático for mal conduzido no Iraque, há grande possibilidade de o caos iugoslavo se repetir no Oriente Médio.
Veja — O Iraque será uma nação dos sunitas, dos xiitas, dos curdos ou dos americanos?
ZAKARIA — O Iraque se tornará inevitavelmente um país democrático. Como os xiitas são maioria, eles deverão dominar o Parlamento e governar a nação por um bom período. Por isso temos de pensar também na criação de outras formas de representação política para contentar os demais grupos étnicos e religiosos.
Veja — E como fazer isso?
ZAKARIA — Talvez seja preciso pensar em um Estado cuja representação seja proporcional aos grupos religiosos ou numa estrutura federal descentralizada. Há muitas formas de criar uma estrutura política legítima e multifacetada.
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