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Fernanda Montenegro: Entrevista concedida em 1976, durante a temporada da peça "A Mais Sólida Mansão", de Eugene O´Neill.

Veja - Você disse certa vez que não existe a profissão de artista teatral. Ainda pensa assim?
FERNANDA - Penso. Aqui no Brasil isso é verdade. Nós somos fantasmas, perpetuamo-nos de geração em geração por uma espécie de teimosia particular. Há gente que nos vê. Mas, em termos concretos, não temos uma existência no plano social. Não temos leis que nos amparem. Durante muitos anos, trabalhando como atriz, eu contribuía para o INPS como comerciária.

Veja - Mas, apesar disso, você insiste. Por quê?
FERNANDA - A gente toma corpo na medida em que se impõe, em que se exercita. Quando se chega ao primeiro plano, as pessoas descobrem o artista. Mas, antes disso, ele é um marginal.

Veja - Há 25 anos você faz teatro. Nesse quarto de século, quais foram as modificações que observou no teatro brasileiro?
FERNANDA - Vi a fase do belo pelo belo e a de total engajamento dentro de uma ideologia. Depois foi a libertação completa, a volta ao espírito tribal. Hoje, tentamos juntar essas fases todas. Acho que a década de 70 será de soma.

Veja - E, dessas fases todas, qual foi a melhor?
FERNADA - Eu não sou nostálgica. Entrei de corpo e alma no belo pelo belo. Depois veio a tomada de consciência do artista diante da sociedade em que vive. Participei, na medida em que isso é possível, de uma denúncia. Foi uma fase riquíssima. Possibilitou o aparecimento de muitos autores nacionais importantes que estão escrevendo até onde podem. Depois vieram os anos do lúdico, do telúrico. Nessa época, eu fui mais platéia que artista. Mas, para mim, foi uma época muito importante, porque comecei a ver que as coisas não são definitivas. A gente vai somando experiências. Coisas que se consideravam cristalizadas passam a ser discutidas, até desprezadas. Nos anos 60 aconteceu isso. Fomos pegos pela perna, tiraram todas nossas certezas. Mas saímos prontos para outra. Recomeçamos limpos, mais abertos. Não e um estado que gratifica o artista. Mas acho que até o fim da década de 70 surgirão coisas de grande força. Estamos dando a curva.

Veja - Então você está otimista?
FERNANDA - Falando em termos gerais, estou no Brasil, não sei. Os artistas e empresários enfrentam dificuldades inacreditáveis. Em uma fase de busca como esta, parece-me que um pouco de liberdade seria fundamental. Ou, pelo menos um abrandamento. Abrandamento é uma palavra bonita, não? Uma frestinha.

Veja - Como você se colocaria nesse período que o teatro brasileiro está atravessando?
FERNANDA - Não sei o que os outros acham. Mas sempre estive aberta para ver o que estava acontecendo. Jamais me coloquei em uma posição preconceituosa. Nunca achei que aquilo que se estava fazendo fosse uma coisa cristalizada, gravada. O grande período do artista - se é que posso me chamar de artista é que, de repente, ele surge. No Brasil, então, quando a comunidade descobre que surge um indivíduo de talento, começa a incensá-lo, bajulá-lo. E é muito comum que ele acredite que achou o caminho, a verdade, a vida. Mas a vida continua. Quando a gente chega na casa dos 40 anos, deixa de ser novidade, deixa de ser enfant gaté de sua geração. Tem que ficar mais alerta. Senão cai na nostalgia. Ah! Os anos 50 Ah! A década de 60 e assim por diante. Hoje, o que me espanta muito é ver uma série de grandes talentos fazendo televisão comercial, propaganda, ou outras coisas que nada têm a ver com teatro. Para muita gente, houve um período de grande aceitação que, depois, parou. Então há quem fique parado naquele ninho bom, onde tudo dá certo. Mas teatro é persistir. O fundamental é continuar. Cada dia é um novo dia.

Veja - Teatro então é uma questão de teimosia?
FERNANDA - Sempre foi. Uma teimosia realizada em estado de emergência.

Veja - E sempre vai ser assim?
FERNANDA - Para o nosso trabalho no teatro brasileiro, a emergência é um fenômeno característico.

Veja - Você fala muito de teatro brasileiro. Mas a maioria das peças que produz não são estrangeiras?
FERNANDA - Não. Estreei com Paulo Magalhães, que já era famoso desde a década de 80. Em 1950 fiz As Loucuras do Imperador, escrita por ele. A televisão estava começando e eu fazia programas semanais. Um dia, a Heloísa Helena, mulher de Paulo, me disse que o João Viliaret vinha de Portugal para cá, mas que, por uma questão de lei, tinha que estrear com uma peça nacionais. As Loucuras. Foi um sucesso enorme. É uma peça ruim, mas funcionava. Depois fiz A Moratória, de Jorge Andrade. Em São Paulo, fiz Rua São Luís, de Abílio Pereira de Almeida. Depois fiz A Matrona de Éfeso, de Guilherme Figueiredo, além de peças de Aluísio de Azevedo, Nélson Rodrigues e Martins Pena. Isso sem falar de Calabar, de Ruy Guerra e Chico Buarque, que, como você sabe, não chegou a ser apresentada. Tentamos, também, Um Elefante no Caos, de Millôr Fernandes, e uma peça de Nelson Xavier, que abortou antes da estréia. Como você vê, só não fiz mais peças nacionais porque não foi possível.

Veja - Como você se sente como produtora?
FERNANDA - Não sei. Acho que é porque quase sempre fui produtora. Em 1959 fiz uma sociedade com Fernando Torres, Gianni Ratto, Ítalo Rossi e Sérgio Brito. Durou até 1965. Desde 1967, Fernando e eu produzimos todos nossos espetáculos.

Veja - Produzir o espetáculo não interfere no trabalho do ator?
FERNANDA - No Brasil é a única maneira de não se morrer em termos teatrais. Não temos empresários, no sentido tradicional da palavra. As pessoas preferem investir em outras coisas. Então, se você quiser se manter fiel ao teatro, tem que assumir os riscos. E veja: são 25 anos de fidelidade. É uma experiência estranha: você tem que ter pés de chumbo e asas na cabeça. Viver nisso dilacera as entranhas. Os mais sensíveis morrem cedo, como Cacilda Becker, Gláucio Gil, Sérgio Cardoso e tantos outros.

Veja - Você parece ter conseguido manter bem esse equilíbrio.
FERNANDA - Não conheço outro processo de trabalho. Me dá segurança. Tenho, pelo menos, a visão do que pode acontecer nos próximos três ou quatro meses. Isso nos dá a liberdade de escolher textos, de chamar nossos colegas e os diretores nos quais a gente acredita os cenógrafos mais criativos, os figurantes mais seguros. A gente cria uma espécie de família de trabalho. Sem um bom relacionamento humano não se consegue fazer um bom trabalho.

Veja - E A mais Sólida Mansão de Eugene ONeili?
FERNANDA - Há certos autores que a gente tem que fazer um dia. Seis anos atrás, esta peça veio às minhas mãos. Achei que tinha um clima muito estranho. Há dois anos a reli. É uma peça que tem a coragem de ser um melodrama. De buscar uma linguagem rebuscada. Isso tudo é um desafio. Fernando e eu achamos que há muito tempo não se encena aqui um texto que tenha tanta valentia verbal.

Veja - Você acha que há uma crise de texto no Brasil?
FERNANDA - Não é só no Brasil, é no mundo. Mesmo nos países de maior inquietação criativa, como a Alemanha, as companhias estão reencenando os textos tradicionais. A gente volta a sentir a paixão pela palavra. O autor volta ao primeiro plano.

Veja - A que você atribuí esta crise de criatividade dos autores?
FERNANDA - Estamos em um período de transição. Com a queda dos valores definitivos dos anos 50 e a explosão reveladora dos anos 60, entramos como se estivéssemos saindo de uma luta.

Veja - As pessoas estão escrevendo menos bem?
FERNANDA - As peças que tenho lido representam perplexidades, estilhaços. São sempre peças sintéticas. A platéia tradicional, a que vai ao teatro, está querendo ver, ouvir e pensar.

Veja - Ou se divertir?
FERNANDA - Isso também é uma forma de diversão. O público assiste às peças mais violentas como se fossem comédias de bulevar. Oh! Que Belos Dias, de Beckett, tem seu público. Mas ele não é o mesmo de Os Amantes de Madame Vidal, ou de outros textos com preocupações menores.

Veja - Como produtora e atriz, o que você prefere fazer?
FERNANDA - Representar. Antes de mais nada, sou uma mulher de teatro. Meu papel pode não ser o principal. Se o texto é o mais importante, não estou interessada em dar um dó de peito. Eu sempre escolho um texto que possa ser sentido pela platéia. Em Volta ao Lar, de Harold Pinter, acho que só dizia umas dez frases. Mas, quando li a peça, vi que o texto era orgânico, concêntrico, insólito. Acho que foi uma das melhores coisas que já fiz como atriz. Nosso critério não é o de escolher papéis, mas procurar peças que queiram dizer alguma coisa. Fazer teatro é um destino. Há companhias que sobrevivem porque um de seus membros ganha dinheiro na televisão ou porque alguém ganhou uma herança. Meu marido e eu vivemos de teatro. Teatro foi toda nossa
vida. Isso, inclusive, acaba orientando a escolha de nosso repertório, não podemos ter critérios particulares, servir só a uma certa platéia. Alternamos autores mais severos com comédias de boa qualidade. O público é sempre o mesmo, formado por pessoas que podem pagar o preço de um ingresso teatral: uma minoria. De minha platéia, 80% compõem-se os estudantes. Isso não quer dizer nada: hoje, alguns estudantes têm 70 anos. Basta apresentar uma carteirinha, mesmo que seja a de um curso de corte e costura.

Veja - Você acha, então, que é impossível um teatro popular?
FERNANDA - Minha geração, a de 1950, tem uma grande frustração: a de não ter feito teatro popular. Não é só fazer promoção dos espetáculos na rua, é mais complexo. Mesmo que a gente divulgue o teatro nas ruas, como atingir uma platéia da zona norte do Rio, por exemplo? Ela teria que ir ao teatro de trem. É muito cansativo. Uma questão de rins.

Veja - Então não há saída?
FERNANDA - Há. Uma distribuição de teatros em zonas populares e a preços acessíveis.

Veja - Mas você não acha que esse papel social do teatro diminuiu muito com o aparecimento da televisão e de outros meios de comunicação que atingem um público mais vasto?
FERNANDA - O teatro sempre teve uma profunda responsabilidade social. Acontece que, há 2 500 anos, na Grécia, toda a população de uma cidade cabia dentro de um teatro. Hoje, isso não acontece mais. Mas acho que um texto importante, dita para 300 pessoas, em um teatro, vale mais que um programa de televisão assistido por não sei quantos milhões de pessoas. O cinema e a televisão não podem substituir o teatro, aquela coisa do verbo saindo para o ouvido. O teatro tem uma função social definitiva, embora sejamos poucos falando para poucos.

Veja - Você acha, então, que o teatro tem um papel social importante?
FERNANDA - Acho. As autoridades, parece que não. Sei que existe uma série de prioridades que precisam ser atendidas antes das culturais, como construir estradas e hospitais, por exemplo. Naturalmente, isso é imprescindível. Mas é importante compreender que uma cidade que não tem teatro não tem dignidade. Você sente isso quando vê o orgulho da população de uma cidade do interior só porque lá eles têm o seu teatro. Vou mesmo mais longe. Acho que um país que não tem um teatro forte é um país fraco. Do meu ponto de vista, teatro é uma das maiores prioridades. Mas acho que, se um médico ler isso, vai achar que estou louca.

Veja - O problema é falta de ajuda oficial?
FERNANDA - Não é só isso. Dinheiro, eles dão. Mas o essencial não é só dinheiro. É preciso haver um... abrandamento. Às vezes, restringir uma peça para os maiores de 18 anos, usando critérios arbitrários, é tão danoso quanto interditá-la. Veja só, na escola, teatro constitui uma matéria de currículo. Há cursos de adestramento teatral repletos de polêmicas muito bonitas. Mas os alunos não podem ir ao teatro. É um fato curiosíssimo: os bastidores estão cheios de crianças, pesquisando sobre teatro e fazendo perguntas sobre peças que não lhes deixam ver. Quando começam a fazer suas pesquisas, a primeira coisa que pergunto é se já viram uma peça. A maioria responde que não. Ou, então, só assistiram a peças infantis, esses horrores de gênero A Vaquinha que Miava, ou coisa que o valha. Mesmo quando o governo ajuda o teatro, há nessa ajuda uma incoerência que deveria ser... desmontada. Em suma, misturar dinheiro com um pouco mais de liberdade.

Veja - Você nunca tentou escrever para o teatro?
FERNANDA - Não. Eu sou uma atriz. É no palco que tenho de encontrar formas de dizer as coisas.

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