O que o sr. achou das cenas de violência na quinta-feira, quando a PM enfrentou manifestantes nas ruas, resultando em dezenas de feridos, inclusive repórteres e cidadãos que não participavam do protesto?
Essas imagens ilustram as consequências da falta de diálogo democrático efetivo que tem marcado a sociedade brasileira. A prática política recente vem articulando uma lógica binária redutora, profundamente nociva para o funcionamento das instituições democráticas. Ele articula o discurso do "nós" ou "eles", que considera moralmente superiores as razões próprias e desqualifica, de antemão, visões contrárias. Isso solapa o fundamento da democracia, que é justamente o respeito à pluralidade de visões de mundo. Se não há diálogo real, a violência se transforma em única linguagem possível.
O governador Alckmin defendeu a ação da PM, afirmando que ela evitou mais vandalismo e desobstruiu as vias públicas. Já o prefeito Haddad, que criticara as depredações da primeira passeata, afirmou dessa vez que ‘a imagem que ficou foi a da violência policial’. As autoridades estão respondendo adequadamente aos acontecimentos?
A questão do excesso policial é uma das faces do dilema que desafia as autoridades em regimes democráticos. O imperativo de garantir a livre manifestação de ideias coexiste com o imperativo de garantir a normalidade da ordem para todos - para os que se manifestam e para os que não desejam fazê-lo. Esse equilíbrio, que requer sobriedade de cada um, é muito difícil de alcançar, como infelizmente temos tido ocasião de testemunhar. Acho que o fato de o governador dar mais ênfase à destruição da propriedade e o prefeito ressaltar o direito à manifestação são complementares num certo sentido: afirmam que o desenho institucional democrático brasileiro é uma conquista importante. Mas ela supõe que a gente consiga negociar nos canais políticos as decisões que vão ser tomadas. Não me consta que isso tenha ocorrido durante a tramitação da nova tarifa, seja por parte das autoridades ou dos manifestantes.
Uma pesquisa feita no início da semana mostrava que 55% dos paulistanos apoiavam os atos, mas 78% os consideravam mais violentos que o necessário. As críticas à ação policial podem mudar esse sentimento?
Acredito que isso possa acontecer. Se o foco do debate migrar do valor da tarifa para a ação policial, a possibilidade de o sentimento popular se alterar é real. Nesse possível novo quadro, entraria em pauta o tema das relações entre polícia e sociedade que, como se sabe, é particularmente complexo no Brasil.
O jornal espanhol El País afirmou que ‘o Brasil, pouco acostumado a protestar na rua, desta vez se levantou’, lembrando que o mesmo não ocorreu com os escândalos de corrupção. Por quê?
Alguns têm tentado fazer uma conexão entre esses movimentos de rua e outros, em especial os ocorridos à época da luta pela redemocratização. Mas acho que há diferenças importantes que ajudam, inclusive, a entender por que os jovens não se mobilizaram no caso do mensalão e se mobilizam agora pela passagem do ônibus. A primeira diferença, no entanto, é abissal: vivemos num regime democrático. A segunda, mais importante, é que, naquela época, o projeto de restauração da ordem democrática era fundamentalmente coletivo, superior a interesses pontuais ou de grupo. Eram multidões heterogêneas caminhando por uma causa comum, sindicalistas, estudantes, a Igreja, bancários, etc, o que gerava uma possibilidade maior de apoio e de adesão de quem estava de fora. Aquelas manifestações tinham uma proposta clara de construção institucional - ampla, geral e de longo prazo. Hoje, as manifestações de rua contra o aumento das tarifas de transporte têm muito mais as características do que chamamos de instant mob: um movimento combinado nas redes sociais para promover uma ação específica no tempo e no espaço, impactar o coletivo e se dissolver.
Por que a dinâmica dos protestos mudou?
Tem a ver com a forma como estão se organizando as relações sociais hoje em dia. As pessoas conseguem se unir para uma ação pontual, com interesse específico e efêmero, mas não construir projetos consensuais. Isso ocorre porque a relação de consumo se tornou a relação matricial da nossa sociedade. Quando você compra um produto, está desinteressado de todo o longo processo que o levou às suas mãos, envolvendo escolhas, sacrifícios de pessoas, etc. E assim que aquilo satisfaz sua necessidade imediata, você o descarta sem preocupar também com consequências. De certa maneira, há uma relação de consumo com a política hoje. As pessoas estão consumindo política, não produzindo política. Elas não se envolvem nos processos de negociação, nem têm participação efetiva nas tomadas de decisão. Quando vem um resultado - um produto - que elas não gostam, reclamam com enorme intensidade. Mas depois, na hora de construir, que é muito mais difícil, pois pressupõe articulação de interesses diferentes, não conseguem avançar.
O advento da internet foi festejado por muitos como uma possibilidade de ampliação do debate público, que facilitaria os consensos coletivos. Não deu certo?
Acho que não por uma questão muito importante: a democracia se baseia mais em saber ouvir do que em saber falar. O (sociólogo e historiador norte-americano) Richard Sennett fala no "fetiche da afirmação" de nossos dias: as pessoas acham que é muito importante dizer o que pensam. E é. Mas a democracia se faz ouvindo respeitosamente o argumento do outro. Não adianta todos poderem falar se ninguém ouve. Essa lógica binária, do nós ou eles, muito presente nos discursos na internet, não ajuda a construir democracia.
Protestos convencionais, de sindicatos ou categorias profissionais que não se mobilizam via internet, escapam dessa lógica?
Padecem do mesmo problema. Veja por exemplo as passeatas de professores ou policiais, que também têm ocorrido na Paulista. Por que também não conseguem ter o mesmo impacto de antes? Em parte porque esses movimentos tampouco conseguem fazer a articulação entre o interesse pontual e coletivo. Não se luta por uma política salarial ou uma econômica diferente; luta-se por um reajuste. Essa incapacidade de construir coletivamente o futuro, de achar novas soluções que comportem a diferença, marca o nosso tempo. E está intimamente ligada a essa opção fundamental pelo consumo.
Os problemas de mobilidade urbana no Brasil tornaram-se insuportáveis?
A questão do transporte público no País é calamitosa. E o atual governo fez uma opção clara pelo transporte individual. Isso está dado e, de novo, é fruto dessa crença de que a gente vai conseguir fazer a inclusão social pelo consumo. Tudo ligado, em grande parte, à forma como se tem feito política no Brasil. E com partidos cujo único projeto é de poder.
O que a paralisação do tráfego, essa questão tão sensível nas grandes cidades brasileiras, sinaliza sobre o fenômeno?
É central. Comprar um carro novo com redução do IPI ou crédito mais barato tornou-se não só um signo de prestígio para as pessoas, mas também a prova do sucesso da escolha política da inclusão social via consumo pelo governo. Mas o caos do trânsito em nossas grandes cidades, que nem precisa de manifestações para ocorrer, mostra que não. Um país que faz a opção de que cada um cuide do próprio transporte, saúde e educação, em detrimento dos canais públicos, é um país que vai entrar em colapso. A história recente americana nos mostra isso, com as crises do setor automobilístico e financeira. O consumo como forma de realização da política é o maior risco que corremos. A política é o lugar do coletivo e do diferente; o consumo, o lugar do individual e do igual.
Que relações há entre os atuais protestos brasileiros e outros como a Primavera Árabe ou o Occupy Wall Street?
As semelhanças estão na forma de articulação política via internet e no envolvimento de uma juventude que quer renovar a participação política - um aspecto positivo, a se frisar. Entretanto, tanto no caso brasileiro quanto nos movimentos que você citou, há uma dificuldade desses grupos em saber o que fazer depois do protesto. Como construir o depois? Para institucionalizar mudanças, não basta dizer "não"; é preciso que se diga "sim" a alguma coisa. Esse é o enigma que está diante de nós, das mais diferentes gerações: como reconstruir o espaço político nesse mundo em que as instituições obviamente já não dão conta da vida moderna. É verdade que a política é a arte do possível, mas ela também tem que ser a arte de sonhar o impossível. O que todos esses movimentos estão mostrando é que nós precisamos de utopias, pensar formas para uma vida melhor, uma sociedade mais fraterna. A violência não é o caminho, o marasmo não é o caminho - mas essa capacidade de falar e de ouvir dentro da democracia.
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