O MTST, os ditos "trabalhadores sem teto", está descontente com os serviços de telefonia. Na quarta, seus militantes protestaram na Anatel e nas respectivas sedes da TIM, Claro e Oi. Não deu tempo de ir à da Vivo. A turma agencia também essa causa. Um comunicado parece inaugurar a fase holístico-roqueira do socialismo: "Se acham que a gente vai se contentar só com nossa casa, estão enganados. Queremos moradia, transporte público de qualidade, telefonia e internet, e a gente não aceita pagar caro, não". É o "aggiornamento" dos Titãs –"A gente não quer só iPhone..."– e o embrião de um novo partido.
Guilherme Boulos, um dos comandantes do MTST e colunista desta Folha, traz consigo o charme irresistível da renúncia. Oriundo da classe média-alta, com formação intelectual, prefere dedicar-se à categoria dos "Sem" –até dos "Sem-Sinal" de telefonia. Lembro-me do fascínio que tive ao ler, aos 15 anos, "Minha Vida", a autobiografia de Trótski. Largou as benesses do pai abastado para morar no quintal do jardineiro Shvigovski, o revolucionário "do pomar". Um encanto!
A coisa meio chata para mim é que eu lia o livro com um fio de lâmpada sobre a cabeça, na cozinha de modestíssimos dois cômodos, à beira de um córrego fétido. Não demorei a entender que certa renúncia é um privilégio de classe, não uma superioridade moral. Dispensar a riqueza abre a vereda para a terra da santidade. A trajetória contrária é coisa de um parvenu. Muita gente com dificuldades de acreditar em Deus crê nos profetas.
Não falo de Boulos, mas do que ele representaria: o anunciador de uma nova era, quem sabe uma Idade de Ouro da real igualdade, uma espécie de celebração do encontro de Virgílio com Marx. "Ecce homo." Lula sempre constrangeu as esquerdas com suas grosserias. Em 1979, por exemplo, concedeu uma entrevista à revista "Playboy" (is.gd/g948iR) em que barbarizou.
Confessou, de modo oblíquo, que sua iniciação sexual se dera com animais. Pegava as viuvinhas que iam ao sindicato resolver problemas relacionados à Previdência. Conhecia o sogro de Marisa, sua atual mulher –então viúva–, e pensava: "Ainda vou papar a nora desse velho". Filosofou: "O problema de mulher é você conseguir pegar na mão. Pegou na mão"¦". Admirava pessoas "que estiveram ao lado dos menos favorecidos". Entre os mortos, Tiradentes, Gandhi, Che Guevara, Mao Tse-tung e Hitler ("mesmo errado" –ufa!!!). Entre os então vivos, Khomeini e Fidel Castro. Mas a semente estava lá. Pensou alto: "É preciso fazer alguma coisa para ganhar mais adeptos, não se preocupar com a minoria descontente, mas se importar com a maioria dos contentes". Poderia ser a divisa de um fascismo. Deu no petismo.
Poucos, ou ninguém, teriam sobrevivido àquela entrevista. As circunstâncias históricas –primeiro ano da "ditadura esculhambada", de Figueiredo– o salvaram. Era a suposta realização de um projeto acalentado por parte da esquerda: o "intelectual orgânico" da classe operária, que não mais distinguia o pensar do fazer. Em 1982, candidato ao governo de São Paulo, foi inquirido por Rogê Ferreira, do PDT: "Você é socialista, comunista ou trabalhista?". Lula mandou ver: "Sou torneiro mecânico". Marilena Chaui aplaudiu como se fosse Spinoza. Ela encontrava, finalmente, a "nervura do real".
Mas Lula também já é um parvenu. Há quem não goste dele não por aquilo que pensa, mas por ter traído supostos emblemas de sua "classe natural". O MTST, atuando como partido, resgata, por intermédio de sua principal liderança, certa pureza e certa crueza proudhonianas, distantes do legalismo petista. Ao movimento, tudo é permitido –violar leis ou furar a fila das pessoas que aguardam, pacificamente, por uma casa. Se preciso, a turma cerca o Poder Legislativo e sobrepõe a vontade de uns poucos milhares aos votos de muitos milhões. É a "democracia direta" reduzindo o grupo decisório para ganhar eficiência, compreendem?
Lula foi a encarnação do delírio das esquerdas à espera do "intelectual orgânico" da classe operária. Mas ele se aburguesou sem nunca ter buscado a altitude das ideias. Boulos, não! Ele nos devolve ao refinado Iluminismo francês. Os seus sem-teto são os "sans-cullotes" das fantasias jacobinas –que são, desde sempre, fantasias... burguesas!
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