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Entrevista com Emílio Garrastazu Médici

Entrevista concedida a Veja (16/05/1984)

Veja - Por que o senhor resolveu falar?
MÉDICI - Pus para fora os sapos que engoli nestes dez anos. Mas, depois de observar a repercussão da minha conversa de 20 minutos com os jornalistas, em Porto Alegre, achei que falei demais. Falei o que não devia.

Veja - A entrevista de Porto Alegre foi concedida depois de uma demorada conversa com o deputado Paulo Maluf. O senhor apóia sua candidatura à Presidência da República?
MÉDICI - Eu nunca disse que apóio o Maluf. O máximo que disse é que o apoiarei se não aparecer outro melhor.

Veja - Depois da derrota da emenda Dante de Oliveira, como o senhor vê a situação política brasileira?
MÉDICI - Continuo a ver tudo escuro. O governo apresentou a sua emenda, mas não deve haver entendimento com a oposição porque os oposicionistas são intransigentes.

Veja - De que modo o senhor sente sua imagem junto ao povo brasileiro, dez anos depois de deixar o governo?
MÉDICI - Sempre que me reconhecem, nas ruas, sou cumprimentado. Geralmente são mulheres que me reconhecem e cumprimentam. Apenas uma vez, no Rio de Janeiro, uma senhora me reconheceu e criticou meu governo. Tentei dizer-lhe que estava equivocada, que estava indo na conversa da propaganda esquerdista, mas ela quis discutir. Aí, desisti e fui embora.

Veja - Essa propaganda esquerdista o incomoda?
MÉDICI - O problema é que a propaganda é feita em defesa dos terroristas que queriam arrasar o país. Aquilo foi uma guerra... Lutamos contra o terrorismo nas ruas, no país inteiro, até na Amazônia. Enfrentamos seqüestros, assaltos, assassinatos, todo tipo de crime. Aquilo não podia continuar.

Veja - Por isso o senhor adotou a censura à imprensa?
MÉDICI - Foi uma contingência. Aquela guerrilha de Xambioá* acabou antes que a população tomasse conhecimento de sua existência. Era preciso esconder as operações contra os guerrilheiros para que elas tivessem sucesso.

Veja - Em que momento o senhor decidiu enfrentar rigorosamente o terrorismo de esquerda?
MÉDICI - Uma vez seqüestraram mais um avião**. O ministro da Aeronáutica, Márcio de Souza e Mello, me procurou e disse: Isso não pode continuar. Perguntei-lhe: Podemos pagar pra ver? Ele respondeu: Podemos. Resolvi: Vamos pagar pra ver. Dei a ordem porque não podíamos ficar sem uma reação. Aí, jogamos uma espuma sobre o avião, invadimos o aparelho e prendemos os seqüestradores. Cinco meses depois, quando seqüestraram o embaixador suíço, chamei o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, e disse-lhe: Na próxima vez, o caso será entregue ao Departamento de Polícia Federal, porque o caso é de polícia. Resolvi que não negociaríamos mais e nenhum outro seqüestro ocorreu depois disso.

Veja - Os militares, porém, continuaram envolvidos nas operações antiterrorismo. Por quê?
MÉDICI - Uma vez, os ministros militares quiseram usar as Forças Armadas para combater o terrorismo, mas eu não deixei: Isso não é trabalho para vocês. É trabalho para a polícia, avisei. Mas houve um tiroteio num aparelho e um major morreu ao socorrer um sargento que foi ferido. Então, tive uma conversa com o ministro do Exército, general Orlando Geisel, e ponderei: Só os nossos estão morrendo. Ele respondeu: Nós não podemos matar, precisamos não desfazer a cadeia ***. Perguntei: Mas só os nossos morrem? Quando invadirem um aparelho, terão de invadir metralhando. Estamos numa guerra e não podemos sacrificar os nossos. Ainda hoje, não há dúvida de que era uma guerra, depois da qual foi possível devolver a paz ao Brasil. Eu acabei com o terrorismo neste país. Se não aceitássemos a guerra, se não agíssemos drasticamente, até hoje teríamos o terrorismo.

Veja - O senhor se sente injustiçado quando comentam sua participação nessa etapa histórica?
MÉDICI - Fiz um governo que enfrentou até greve de militares. Além de enfrentar a guerrilha. Eu tinha o AI-5, podia tudo. Mas não cassei ninguém. Nunca fechei o Congresso. Pelo contrário, exigi que o Congresso fosse reaberto para votar a indicação do meu nome para a Presidência da República. Tendo o AI-5, fiz o governo mais democrático da Revolução.

Veja - Nada disso pareceu abalar seu controle sobre a área militar. Num discurso no final do governo, o senhor observou que o atravessara sem prontidão nos quartéis.
MÉDICI - E não houve perturbação nem na área política. Sem nenhuma cassação ou casuísmo, vencemos muito bem as eleições parlamentares de 1970. A surra que demos no MDB foi tão grande que nossos adversários, naquela época, falavam até em autodissolução do partido!

Veja - A tese da autodissolução não foi apresentada como uma forma de protesto do MDB contra o seu governo?
MÉDICI - Eu nunca tive problema com os dois governadores da oposição - Negrão de Lima, na antiga Guanabara, e Israel Pinheiro, em Minas Gerais -, que ocupavam dois Estados importantes. O Negrão chegou a me procurar, nas eleições de 1970, para propor uma fórmula que garantiria a reeleição de um senador arenista, Gilberto Marinho, pelo seu Estado. Eram três vagas e o MDB lançaria apenas dois nomes, enquanto a Arena indicaria apenas o Gilberto.
Os três seriam eleitos. Mas a Arena não aceitou, achando que poderia eleger mais de um senador. O Negrão me procurou outra vez e sugeriu outra fórmula: o MDB lançaria três nomes e a Arena indicaria o Gilberto e o Mendes de Morais. A Arena, porém, insistia em lançar três nomes porque achava que poderia vencer com todos. Aí, perdemos o Gilberto.

Veja - Nesse caso, prevaleceu a decisão da Arena. Na administração do país, era o senhor quem impunha suas idéias?
MÉDICI - As decisões do meu governo sempre foram minhas. A própria reunião das 9 horas da manhã no Palácio era apenas para despachos, restrita aos chefes do SNI, general Carlos Alberto Fontoura, do Gabinete Militar, general João Baptista Figueiredo, e do Gabinete Civil, professor Leitão de Abreu. Raramente outros ministros eram convocados para a reunião. Os ministros tinham poderes para escolher os auxiliares que quisessem, mas eram proibidos de decidir o que eu não quisesse. Aliás, até a indicação para presidente da República eu recusei, em 1969, exatamente porque não queria ser presidente se não pudesse decidir. Depois foram atrás de mim e me pediram para reconsiderar.

Veja - Quem foi atrás do senhor?
MÉDICI - Quando a Junta Militar me chamou ao Rio de Janeiro para comunicar minha escolha para presidente, em setembro de 1969, encontrei-me com os três ministros militares, os três chefes de Estado-Maior e o ministro-chefe do EMFA****. Eram sete. Quando me convidaram, apontei o dedo para cada um deles e fui perguntando, um por um, se aceitariam qualquer missão que eu lhes desse. Todos disseram que aceitavam. Aí, também aceitei a Presidência. Logo depois o Lyra perguntou: Medici, você já pensou no seu vice? Respondi:. Já. O Lyra, então, fez outra pergunta: Seria indiscrição saber quem é? Respondi: É o Rademaker. Disse o Lyra: Ah, não pode... Não pode porque nós fizemos um acordo para ninguém aceitar nada. Quando ele acabou de falar eu levantei, peguei o meu quepe e me despedi: O problema é de vocês. Vou-me embora para mostrar como vocês escolheram errado. Eu havia perguntado a cada um se aceitavam qualquer missão que eu lhes desse. Vocês disseram que aceitavam. Mas, na primeira missão que eu dei, vocês recusaram. E saí. Fui-me embora do Rio para Porto Alegre.

Veja - Como foi a volta?
MÉDICI - Dois ou três dias depois, recebi em Porto Alegre uma mensagem, pelo rádio, perguntando se podia receber um emissário do Rademaker. Respondi que podia. Pouco mais tarde, fui procurado por um capitão-de-mar-e-guerra com uma carta do Rademaker em que ele aceitava a vice-presidência. Se eu não fizesse aquilo, eu não nomearia nem o meu ajudante-de-ordens. Nomeei todos os ministros. E respeitei um velho hábito meu: não deixar de nomear alguém por não ser meu amigo, nem nomear alguém por ser meu amigo.

Veja - Nem a realização das grandes obras como a Transamazônica e a ponte Rio-Niterói, que o senhor anunciou em cadeias nacionais de rádio e TV, foi decidida pelo governo em conjunto?
MÉDICI - Para a Transamazônica, já havia um projeto com o ministro dos Transportes, Mário Andreazza. Decidi construir a rodovia quando fiz uma viagem ao Nordeste: fiquei impressionado com o sofrimento, a miséria tremenda que eu nunca tinha visto. Fiz aquele discurso, sobre o Nordeste, de próprio punho.

Veja - Uma obra tão cara e difícil não deveria ser precedida de estudos mais amplos?
MÉDICI - Na volta da viagem ao Nordeste, no avião, perguntei: E aquela estrada, Andreazza? Ele respondeu: Está aqui o plano, presidente. Perguntei: Qual é o preço do quilômetro? Andreazza respondeu: 1 milhão de cruzeiros. Tem dinheiro? Respondeu: Não. Voltei-me para o Delfim Netto, ministro da Fazenda, e perguntei: ‘Delfim, não tem dinheiro para isso? Delfim respondeu: Só se tirarmos dos incentivos. Então botei a mão nos incentivos para construir a
Transamazônica.

Veja - Esse desvio de recursos dos incentivos fiscais para a Transamazônica não prejudicou os outros programas para a região?
MÉDICI - Não. Tirei apenas 30% dos incentivos. Além disso, as empreiteiras começaram a trabalhar em outubro sabendo que só receberiam dinheiro em março do ano seguinte. Só gastei o dinheiro que já tinha. Usei o dinheiro apenas na época em que ele estaria disponível. Nada foi feito sem recursos certos.

Veja - E como surgiu a decisão de concluir a ponte Rio-Niterói?
MÉDICI - Foi outra decisão pessoal. A obra se arrastava. As construtoras estavam em insolvência. Chamei o Andreazza e lhe disse: Vamos desapropriar a obra, formar uma empresa e terminá-la. Ele me perguntou: Podemos? Temos dinheiro? Respondi: Eu posso. Eu tenho o AI-5 na mão e, com ele, posso tudo. Se eu não posso, ninguém mais pode. Se não tomássemos a obra da ponte, a questão da insolvência das antigas empreiteiras iria para a Justiça. Então, quando seria resolvida? Nunca. O caso estaria na Justiça até hoje e não haveria ponte. Agora, a ponte está aí, praticamente paga, e colaborou na fusão dos antigos Estados da Guanabara e Rio de Janeiro.

Veja - Foi mais cômodo tocar esses grandes projetos com o AI-5 a sua disposição?
MÉDICI - Sim, mas também havia a determinação de fazer as coisas rigorosamente dentro do planejamento, sem improvisações ou desvios. Se eu combinava com o Delfim que teríamos treze desvalorizações do cruzeiro em doze meses, tínhamos treze desvalorizações do cruzeiro em doze meses. Eram minidesvalorizações até chegar ao total anual de 13%, conforme eu decidira um ano antes. No meu governo os projetos eram rigorosamente alcançados, e
concluídos sem deixar ônus para o futuro.

Veja - A seu favor, o senhor tinha um quadro econômico mais favorável, a inflação menor. Isso não ajudou?
MÉDICI - Eu dava aumentos aos funcionários públicos acima da inflação. A inflação era de 20% e eu dava aumento de 30%. Depois é que a inflação subiu. Hoje em dia já se atribuiu a inflação até aos barbeiros...

Veja - Não foi no seu governo que a nossa dívida externa começou a dar saltos?
MÉDICI - Naquela época o crédito era fácil para o país, lá fora. Os credores nos procuravam para oferecer dinheiro em excelentes condições. No final de 1969, a dívida era de 4,4 bilhões de dólares, contra 12,5 bilhões de dólares no fim de 1973. No entanto, no mesmo período, a nossa reserva em divisas cresceu dez vezes, passando de 656 milhões de dólares para 6,4 bilhões de dólares. Então, para cada 2 dólares que devíamos, tínhamos 1 na reserva, no final do meu governo. Hoje as reservas simplesmente desapareceram e a dívida chegou aos 100 bilhões de dólares. Além disso, no final de 1973, as exportações fecharam em 6,2 bilhões de dólares, o que equivalia exatamente à parte da dívida externa para o qual não tínhamos cobertura nas nossas
reservas cambiais. Foi a mais baixa relação, nos últimos trinta anos, entre a dívida externa e as exportações.

* A guerrilha do Araguaia viveu a sua fase de combates entre abril de 1972 e o começo de 1974, na região de Xambioá, na divisa entre o Pará e Goiás. Envolveu 69 guerrilheiros que desembarcaram na área no final de 1967, recrutados pelo Partido Comunista do Brasil, e enfrentou 20 000 militares. As famílias dos guerrilheiros afirmam que houve entre eles 59 mortos.

** Em 1.o de julho de 1970, um Caravelle da Cruzeiro do Sul decolou do Aeroporto do Galeão, no Rio, com destino a São Paulo e Buenos Aires. No ar, um grupo liderado pelo casal Jessie Jane e Colombo Vieira de Souza Júnior rendeu a tripulação e determinou que o aparelho retornasse ao Galeão, onde os seqüestradores exigiram a libertação de quarenta presos políticos. No cerco ao aparelho, foram presos os seqüestradores, menos Eiraldo Palha Freire, morto a tiro.

*** Desfazer a cadeia significava romper a ligação entre os guerrilheiros. A cada tempo determinado, um membro do grupo emitia um sinal para o seu elo seguinte na cadeia, para demonstrar que continuava ativo. Se o sinal não vinha, rompia-se a cadeia de organização do grupo. Por isso, os militares justificaram a tortura com a necessidade de recolher todas as informações do prisioneiro antes que ocorresse o rompimento da cadeia. Depois daquele prazo, pouco valiam os conhecimentos do prisioneiro sobre o seu próprio grupo.

**** A Junta era integrada pelos ministros do Exército, general Aurélio de Lyra Tavares, da Aeronáutica, marechal-do-ar Márcio de Souza e Mello, e da Marinha, almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald. O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas era o general Orlando Geisel. Os chefes do Estado-Maior dos ministérios eram o general Antônio Carlos Muricv (Exército), o brigadeiro Carlos Alberto Huet de Oliveira (Aeronáutica) e o almirante
Adalberto de Barros Nunes (Marinha).

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