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Entrevista Revista Nova Escola

NOVA ESCOLA - Quais as dificuldades encontradas pela senhora na reformulação das redes públicas de ensino?
Elvira de Souza Lima - A falta de conhecimento sobre a evolução biológica do ser humano e a deficiente formação inicial dos professores são as principais barreiras no processo de mudança. Por uma falha sistêmica, quem ensina não tem noção de como se aprende. A maioria desses professores estudou numa estrutura escolar que tinha espaços e tempos definidos, que exigia atenção contínua e linear. Eles foram alvo de avaliações que só serviam para classificar
os alunos em bons ou maus. Nos últimos anos, a Antropologia, a neurociência e a Psicologia estão nos ensinando que todos são capazes de aprender, sejam jovens ou adultos, mas revelam também que isso não pode ocorrer em qualquer circunstância. Se o professor souber como funciona a atenção e a memória nas diversas fases da vida da criança, com certeza vai ensinar melhor.

NE - Como a criança aprende?
Elvira - A aprendizagem está ligada ao processo de desenvolvimento biológico. A evolução é determinada pela genética da espécie. Nosso cérebro demora vinte anos para amadurecer. Por isso, a criança faz atividades que interessam ao amadurecimento. Se você quiser jogar damas com uma menina de 3 anos, ela vai relacionar-se com as pedrinhas, não com as regras. Aos 6 ou 7 anos, ela começa a organizar suas ações em razão de outros elementos: é capaz de se concentrar, ficar sentada ouvindo o professor, compreender orientações externas. Mesmo louco para jogar futebol, um garoto sabe que precisa primeiro fazer a lição. Com os adultos, o processo de aprendizagem é diferente. Com o passar do tempo, os hormônios passam por transformações que afetam os processos da memória. Por isso, sabemos hoje que os adultos aprendem mais lentamente, mas precisam aprender sempre. Nossa saúde mental depende da ampliação de experiências anteriores, de novas experiências práticas. Eu, por exemplo, precisei conhecer o processo de transformação profissional dos professores para poder ensiná-los.

NE - O professor, assim, deve ser um eterno aprendiz?
Elvira - Quando o professor se percebe como um indivíduo em contínua aprendizagem, ele muda a relação que tem com o saber. Mas não é só isso: ele precisa voltar a ser aluno para aprender a ensinar por outra perspectiva. Em nossos cursos de formação continuada damos ênfase ao resgate das relações estéticas das diversas formas de linguagem, que são um dos sistemas expressivos da emoção humana. Quando o professor tem a experiência de se inter-relacionar com as diversas formas de linguagem, ele muda seu jeito de ensinar. Isso serve para qualquer disciplina e em qualquer lugar, mas é ainda mais importante para o alfabetizador. Em Nova York, leciono História da Escrita. Levo os alunos ao Museu Metropolitan para que percebam a escrita como um produto cultural. Ela está aí há cerca de 5500 anos (antes disso, usavam-se desenhos). A Arqueologia nos mostra que o desenvolvimento não está ligado apenas à sobrevivência, mas é produto também da preocupação do homem em comunicar o belo. Vendo os primeiros instrumentos feitos de ossos, com desenhos e decorações que não tinham uso prático, os professores descobrem a função psicológica da imaginação para a humanidade. Ela é fundamental na aprendizagem, faz parte do aprender e da construção do conhecimento científico e estético, da vida cotidiana. Por isso, tem de ser explorada na educação.

NE - Ou seja, cabe ao professor também conhecer a história da evolução humana?
Elvira - Todo mundo gosta de saber de seu passado. Saber como a escola surgiu e que papel ela desempenhava nas diversas civilizações também é fundamental para compreendê-la hoje. Conto a meus alunos que no Museu do Louvre existem tablitas de barro nas quais os sumérios faziam registros escritos. Uma delas foi feita por um aprendiz que viveu há 4000 anos. Ele anotou que um dia entrou na sala, cumprimentou o mestre com respeito e entregou um trabalho. Não gostando do que viu, o professor o castigou, afirmando que ele jamais seria um escriba. Se contarmos essa história modificando alguns termos, qualquer um vai achar que isso aconteceu recentemente numa escola de sua cidade. Quando queremos mudar o ensino, mexemos com
coisas antigas, que precisam ser repensadas à luz de novos conhecimentos e modificadas aos poucos.

NE - Como esse conhecimento pode mudar a atuação do professor ao ensinar?
Elvira - Em vários sentidos. O primeiro é que o professor passa a perceber a importância de sua função para a preservação da espécie. Ele não pode perder a dimensão de que a escola é o lugar da ampliação da experiência humana, o lugar onde gente como ele constrói conhecimentos, com o uso de diversas linguagens e da imaginação. Além disso, é necessário saber que o conhecimento formal não nasce caoticamente, espontaneamente, mas de forma sistematizada. Tudo isso faz com que o educador se sinta um instrumento fundamental no processo antropológico.

NE - Como esse tipo de conhecimento se reflete na elaboração da proposta pedagógica da escola?
Elvira - A maior interferência se dá na elaboração do currículo, na decisão do conteúdo e da maneira de ensinar. Hoje o professor não deve ver-se como uma fonte de informação. Existem muitas coisas que se aprende fora da escola. Outras, só no ambiente de ensino, com a mediação de um ser mais experiente da espécie, que é o professor. Por isso, é preciso ter muito cuidado com os modismos. Trabalhar só por projetos, partir da realidade do aluno e tudo isso que hoje se entende como o caminho da nova educação pode levar a escola a reproduzir apenas o que a criança e o jovem já aprendem fora. Essa não é sua função. A escola precisa preocupar-se com a formação humana. O aprendizado só ocorre quando são realizadas atividades como estudo, registro, pesquisa. Sem isso a criança não constrói conhecimento. Por exemplo: a Matemática está no cotidiano da criança. Mas toda a sistematização e a linguagem matemática formal têm de ser aprendidas na escola.

NE - O que acontece quando essas atividades de ensino são mal utilizadas?
Elvira - O perigo é colocar o prazer como finalidade e esquecer a construção de conceitos. Não é só o contato sensível com o objeto de conhecimento que vai resultar em aprendizado. Aprender é muito mais complexo. Veja a importância da avaliação. Os erros nada mais são do que estágios de pensamento que o indivíduo precisa superar. O papel do mestre é estudar para saber qual intervenção pode fazer para fazer o aluno superar esse estágio. Às vezes, o professor dá nota, passa ou reprova e não sabe se o estudante aprendeu a fazer uso do conhecimento. Mas também existe o risco de criar situações agradáveis para todos, sair daquela chatice da sala de aula e, mesmo assim, não haver aprendizado.

NE - Como aliar uma metodologia de ensino atraente com o aprendizado de fato?
Elvira - O problema é achar que o estudo não pode pesar, tem necessariamente de ser leve e agradável, com a turma sempre contente. O aprender é prazeroso em si. Toda vez que aprende alguma coisa você se sente satisfeito. Acho que a avaliação continuada ajuda nesse processo, pois permite que o professor acompanhe o desenvolvimento do aluno. O aprendizado requer tempo e trabalho sistemático. Só assim se adquire fluência nos conceitos. Não se pode enfatizar apenas a relação afetiva com o conhecimento. Fica a impressão de que se tirar a chatice da Matemática o aprendizado vai melhorar. Uma educadora francesa defende o ensino da história da Matemática junto com as operações, pois esse conhecimento ajuda a entender como essa ciência foi
construída pelo homem.

NE - Mesmo que o professor não tenha um profundo conhecimento do processo do desenvolvimento humano, ainda assim ele pode mudar sua prática?
Elvira - Desde que ele queira mudar. Mesmo inconscientemente, ele sabe que tem um papel fundamental para a continuidade da espécie. Apesar de muitas vezes não ganhar bem e não ter condições de trabalho favoráveis, são raros os que abandonam a profissão. Nenhum professor fica satisfeito quando os alunos não aprendem. Ele sabe que a avaliação do aluno é a avaliação dele próprio.

NE - Os brasileiros estão interessados em conhecer o desenvolvimento humano?
Elvira - Não, mas a preocupação com esse assunto está crescendo. Algumas prefeituras estão tomando a dianteira.

NE - O Brasil está no caminho certo?
Elvira - Com certeza. Damos pouco valor à nossa evolução, mas temos uma história de Pedagogia incrível, marcada por movimentos sociais. A escola pública aqui se desenvolveu de maneira diferente de outros países. Sempre tivemos pensamento crítico ativo. A cultura brasileira tem a educação como parte da formação humana. Hoje essa é a grande questão dos países economicamente desenvolvidos. Eles tentam retomar valores e a produção do Brasil surge
como uma possibilidade de refletir a educação no processo de humanização.

NE - A formação continuada é imprescindível nesse contexto?
Elvira - O professor precisa batalhar para ampliar a formação no próprio sistema de ensino. Com as prefeituras que trabalho, o primeiro passo é incluir horas de formação pagas. Todas topam.

NE - Por onde a escola e o professor podem começar a debater o planejamento do próximo ano?
Elvira - O planejamento só pode começar de uma análise crítica do que foi feito no ano interior. Principalmente o que deu certo. Analisar somente o que não funcionou deixa todos emocionalmente empacados. Só depois pensa-se na continuidade. O professor que trabalha com ciclos pode pensar na formação dos alunos sem hiatos. O professor deve retomar o que foi feito no ano anterior. Do ponto de vista neurológico, para aprender é preciso rever o que está na
memória. As duas primeiras semanas de aula deveriam ser dedicadas à revisão, à construção do novo grupo na sala de aula e ao conhecimento da comunidade, da cultura dos alunos e de seus pais. Esse trabalho de aproximação, além de prazeroso, facilita o trabalho no decorrer do ano letivo.

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