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Antônio Callado - Entrevista concedida a Veja (14/07/1976), - Final

Veja - Você adota a postura do cronista?
CALLADO - Do observador de um movimento. É claro que não ficará a menor dúvida, na leitura do romance, sobre onde estou ou qual lado assumo. Aliás, eu não saberia como fazer para ocultar minha posição, porque estou sempre demasiado interessado na situação para ser imparcial.

Veja - Como você se documentou para escrever este romance?
CALLADO - Eu tenho um arquivo municiado com informações sobre aquela época, muito útil às vezes para relembrar algum fato isolado do dia-a-dia. O fundamental, no entanto, é que vivi intensamente todos os lances daquele processo. Também recorri a alguns livros, principalmente para observar o ponto de vista mais externo em relação aos seqüestros. Há um livro escrito por um embaixador inglês que toca no assunto - e para mim era importante saber como eles sentiam o que estava acontecendo no Brasil. Além disso, naturalmente, alguns livros-chaves que provocam em mim aquela descarga de energia ideológica.

Veja - Você foi obrigado a sair da clausura em Petrópolis para pesquisar algum fato
específico?
CALLADO - Essa documentação não está funcionando como fio condutor do romance, que é mais de ambientação mesmo. Mas, por exemplo, de repente tive de me documentar a respeito de um fenômeno que tomou súbita importância: a enchente de 1967 no Rio de Janeiro, que paralisou totalmente a cidade e mostrou sua extrema vulnerabilidade, é um momento que tem muita relação com o que é descrito no livro. É fantástica essa possibilidade de imobilizar uma cidade como o Rio de Janeiro quase num passe de mágica.

Veja - De certa maneira, existe um paralelo entre a enchente de 1967 no Rio e o tema do
seu romance: em ambos, a cidade ficou totalmente paralisada.
CALLADO - Exato. Aquela enchente representa, digamos, um modo de conquista de uma cidade realmente incomum. No caso, foi uma catástrofe natural, mas que pode ser
reproduzida com iguais resultados. O que me interessa, e que está no livro, é o fenômeno da fácil paralisação de uma cidade grande mas desprotegida, como o Rio.

Veja - A técnica de construção do romance é semelhante à de Quarup?
CALLADO - Não, porque este é de dimensões bem menores. Também neste há muitas
personagens, porém menos desenvolvidas no sentido realista, porque são apresentadas de chofre. Elas aparecem bruscamente na sua frente, agindo, e dá trabalho captar a densidade necessária. Mas, de certa forma, é mais fácil que em Quarup, que tinha um desenvolvimento linear com episódios distintos. Agora procuro pegar o pessoal e colocar ao mesmo tempo uns agindo sobre os outros. Nessa técnica, entretanto, há o perigo de você se perder no meio dessa compactação, confundindo a trama propriamente dita e transformando as personagens em bonecos sem consistência. Por isso, de vez em quando, tenho de voltar atrás e refazer trechos. A parte mais difícil - fabular o livro, construir as personagens, dividi-las, porque são muitas no caso, para criar os reflexos distintos da situação - já está pronta. Mesmo assim, freqüentemente fico desesperado, porque repego o que já está feito, releio e começo a sentir
que faltam detalhes. Mas eu tenho a impressão de que agora o livro realmente já se
desvinculou de mim, já se armou.

Veja - Você dedica mais tempo à caracterização das personagens ou à própria escrita?
CALLADO - Acho que dessa vez estou perdendo muito tempo na escrita, exatamente porque, quando as personagens são muito concentradas, é preciso qualificá-las na sua própria maneira de se exprimir. Por isso adotei o truque das cartas que aparecem de tempos em tempos. Assim, consigo apresentá-las de modo rápido, sem que, no entanto, percam densidade ou se confundam o rumo e a intenção da narrativa. Esta, naturalmente, continua a ser o mais importante.

Veja - Seria correto, então, dizer que você está experimentando novas técnicas, mantendo, entretanto, uma postura coerente como intelectual?
CALLADO - Não há dúvida, e este livro está tranqüilamente no mesmo padrão. Apenas com a diferença de que sua construção é muito diferente de Quarup ou Bar Don Juan. Sem, porém, perder de vista a personalidade de cada um e, sobretudo, a intenção, que é liberar a visão do mundo de quem deseja alterá-lo na medida de suas possibilidades, recusando-os ao conformismo e à resignação.

Veja - Como você separa, ou une, as atividades de jornalista e escritor?
CALLADO - Não preciso separar muito, não, porque dentro do jornalismo consegui chegar a um estágio de fazer o que desejo e gosto. Por exemplo, foi graças ao Jornal do Brasil que pude ir ao Vietnã do Norte durante a guerra. Mas, para escrever este romance, me afastei do jornal há uns sete meses.

Veja - Por trás de Quarup, um mosaico da vida brasileira, do suicídio de Getúlio Vargas a 1964, não estaria o repórter Antônio Callado?
CALLADO - Certamente. Depois de ter passado a guerra na Europa, voltei com uma sede muito grande de interior, de índio, de mato: assim que cheguei ao Brasil, tomei uma gaiola e subi o rio Amazonas, até Manaus. Em 1951 fiz minha primeira viagem ao Xingu, roteiro que repetiria muitas vezes, incluindo o Parque Nacional. Conheci e admirei o trabalho dos irmãos Villas Boas, e senti, traumatizado, como a floresta vai encolhendo debaixo do pé do índio. A isso se juntaram duas estadas em Pernambuco: em 1959, para escrever sobre as ligas camponesas, e em 1963, ano em que realmente vi, pela primeira vez, um governo popular no Brasil. Manteve-se a ordem democrática, mas ao mesmo tempo se fez uma verdadeira revolução na região: alfabetização em massa mas eficiente, justo arbítrio nas questões entre empregados e senhores de engenho. Lá vi um sistema pedagógico de governo.

Veja - Em que momento, e de que modo, você passou do jornalismo à ficção?
CALLADO - Eu tinha duas preocupações essenciais: a situação geral do país e o problema do índio, que me fascinava. Em vez de fazer dois romances, um, a partir das minhas experiências no Xingu, outro, sobre o nordeste, resolvi, depois de muita hesitação, fundi-los num panorama mais amplo do Brasil naquele momento. Faltava, no entanto, um ponto de convergência consistente, que finalmente encontrei na Igreja, sacudida, na época, pela revolução libertadora que o papa João XXIII desencadeou. Forças extraordinárias se manifestaram, a Igreja veio de novo ao encontro dos pobres e humildes, os padres romperam o invisível cordão de isolamento e se misturaram ao povo. E foi esta nova imagem da Igreja que me deu a idéia mais radical de um padre, Nando, que acaba realmente se afastando daquilo que assumiu inicialmente, percorrendo um dramático itinerário que vai do religioso ao político. Como é que um homem como João XXIII pôde liberar tanta gente de tão longe, abrir para o Brasil uma reserva tão admirável de energia ideológica? Pensando agora em padre Nando, me vem à mente a idéia de que a salvação da América Latina está nesses padres jovens, de cuja atuação é possível nascer uma nova religião, que viva em íntima comunhão
com o povo.

Veja - Você realiza um processo de criação curioso: primeiro atua como jornalista, no
instante em que os fatos acontecem, e em seguida se retira para elaborar a ficção. Dentro dessa dinâmica pretende partir, agora, para um novo período de colheita de dados?
CALLADO - Sua descrição confere. Depois dessa reclusão para escrever, estou ansioso
para retornar às atividades de grupo. Me agrada muito a proposta de Chico Buarque de
Holanda e Paulo Pontes para musicar uma peça que escrevi em 1957, Pedro Mico,
ambientada numa favela. Mas nosso projeto, que inclui outras pessoas, é mais ambicioso: pretendemos operar uma renovação no teatro brasileiro, no sentido de estabelecer um repertório de peças novas sobre nossa realidade, mais ou menos como fez o grupo Opinião há alguns anos. E também vou aceitar o convite da Folha de S. Paulo para fazer reportagens especiais, de meu interesse.

Veja - E o projeto de montar outro painel, semelhante a Quarup, abordando o período de
1964 para cá?
CALLADO - Não especificamente. Agora, eu acho que se deveria fazer um minucioso
levantamento dos fatos ocorridos nestes anos todos. Infelizmente, o Brasil é um país
desmemoriado demais para o meu gosto. De toda a época de Getúlio Vargas, apenas restou o excepcional testemunho de Graciliano Ramos e alguma coisa do Jorge Amado. É muito pouco, em função de tudo o que aconteceu. De 1964 para cá é possível fazer um levantamento gigantesco. Ou será que vamos, mais uma vez, ter que esperar que venham os brasilianistas para coletar esse material? A hora para se realizar essa tarefa é agora, quando ainda é possível juntar depoimentos diretos de pessoas que testemunharam ou são atores de fatos importantes para a evolução do nosso processo político.

Quem foi Antônio Callado?
Antônio Callado, (1917-1997), romancista, jornalista e teatrólogo brasileiro. Nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, faleceu no Rio de Janeiro, RJ. Autor de um importante romance contemporâneo, Quarup (1967), cuja temática gira em torno de algumas de suas paixões de escritor e homem de idéias: a revolução, o índio e o sentimento cristão. Neste livro criou um universo de dor e descoberta: "Nando abriu os olhos para um mundo de flores e cabelos, folhas, dentes, mãos." Sua temática poliédrica teve desdobramentos inusitados na maioria de seus outros romances Assunção de Salviano (1954), A madona de cedro (1957), Reflexos do baile (1976), Concerto carioca (1985), Memórias de Aldenham House (1989).

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