Augusto Boal - Entrevista concedida a Veja (17/11/1976), a Paulo Sotero, no ano em que exilou-se em Lisboa - Parte 1
Veja - Como foi seu trabalho na América Latina desde sua saída do Brasil, em 1971, até agora, com a mudança para Portugal?
BOAL - Minha preocupação com a América Latina já vinha de longe. A partir de 1968 vi que, para mim, não havia mais condições de trabalhar no Brasil. Então comecei a viajar por vários países vizinhos e percebi que o Brasil era um país culturalmente isolado. Em 1969, 1970 e 1971 tentei integrar teatralmente nosso país à América Latina, levando peças brasileiras para o exterior. Por exemplo, percorri o México de alto a baixo com Zumbi e com Simon Bolívar, uma peça que ensaiei no Brasil mas só encenei fora. Em 1971 fui preso, fiquei três meses no presídio Tiradentes sem culpa formada. Descobriu-se então que eu era inocente e, depois de uma grande campanha internacional pela minha soltura, me deixaram sair. Imaginei então que poderia fazer um trabalho mais útil fora do Brasil e fui trabalhar na Argentina. No Brasil, eu já tinha feito o Teatro Jornal, que eram onze técnicas de transformar notícias de imprensa em cenas dramáticas e permitir que todo mundo fizesse teatro. Na Argentina, junto com o grupo Machete, comecei a desenvolver o Teatro Invisível, algo muito atraente. A gente escolhia uma cena e a estudava, como quem vai montá-la num teatro, com pano subindo, tudo certinho. Só que fazíamos a cena num lugar que não era o teatro e para pessoas que não eram espectadores. Por exemplo: no vagão de um trem. Os passageiros, não sabendo que eram espectadores, interferiam na ação e se transformavam em atores.
Veja - E qual o objetivo disso?
BOAL - Fazer o teatro explodir dentro de um ritual diferente do ritual teatral. Quando você faz o teatro dentro do teatro, se o espectador está lá apenas como espectador, ele é um ser passivo contra o qual se faz o espetáculo. O espetáculo se faz a fim de impor a ele uma visão de mundo que é acabada e na qual ele não pode interferir. Às vezes ocorre que essa visão é correta, mas, de qualquer maneira, trata-se de uma visão imposta, da qual o espectador não participa. Minha tentativa era e é a de libertar o espectador de sua condição de passividade, para que ele possa usar o teatro e através dele conseguir outras liberdades. Um exemplo: na Argentina, fazíamos teatro em restaurante. Lá existe uma lei que proíbe os argentinos de morrerem de fome. Se uma pessoa está com fome e sem dinheiro, ela tem, teoricamente, o direito de entrar num restaurante e de pedir comida o que quiser, menos vinho e sobremesa e no final apresentar sua carteira de identidade e dizer: Olha, eu sou argentino, não tenho dinheiro e estou proibido de morrer de fome. É claro que na realidade as coisas não se passam dessa maneira, mas, baseados na lei, preparávamos uma cena e íamos a um restaurante. O protagonista entrava, pedia um bife a cavalo, comentava sobre a qualidade da carne argentina com as pessoas da mesa ao lado, enfim, procurava estabelecer relações. No final, agradecia muito e na hora de pagar assinava a nota, mostrava a carteira de identidade e a devolvia para o garçom. Este, que não sabia que era espectador, desempenhava o seu papel e exigia o pagamento. Então começava um diálogo.
Veja - Havia outros participantes?
BOAL - Havia mais atores, distribuídos pelas outras mesas. Um deles, dizendo-se advogado, representava esse papel e defendia o cidadão que não queria pagar. Citava a tal lei e prevenia o garçom que, se chamasse a polícia, poderia até ser preso, pois o outro estava dentro da lei. Mas aí entrava um outro ator na cena e dizia qualquer coisa assim: Mas como é que pode haver uma lei que diga isso? Eu, por exemplo, sou farmacêutico e acho que, dentro do espírito da lei, uma pessoa também não deve morrer por falta de medicamento. Então, ela pode entrar na minha farmácia e levar o que quiser sem pagar. E isso não é justo. E a discussão aumentava. Resumindo, através dessa técnica de Teatro Invisível, discutia-se o tema da peça: se a comida e o remédio existem, por que há pessoas que morrem de fome ou por falta de medicamentos? Se existem os meios para dar felicidade às pessoas, por que elas não são felizes?
Veja - Mas no Teatro Invisível o espectador, no caso, o garçom, não tem consciência de que deixou de ser espectador...
BOAL - É verdade. Ele participa mas não sabe. E o importante é que ele se liberte da condição de espectador tendo consciência disso, sabendo que está intervindo e assumindo a ação dramática, sem equívocos nem falta de informação. Consegui chegar a isso no Peru, onde trabalhei em condições excelentes, com o apoio do governo, com um grupo de 120 alfabetizadores de todo o país. Conto essa experiência na última parte do meu livro Teatro do Oprimido, que a Civilização Brasileira lançou no Brasil. É um trabalho desenvolvido por etapas. A primeira é a dos exercícios físicos, e mostra como o corpo está alienado pelo trabalho que cada um faz. Por exemplo, fazíamos uma corrida em câmara lenta em que o vencedor era o último a chegar. Então, cada pessoa ia descobrindo, durante o exercício, vários músculos que nunca utilizava e outros que empregava excessivamente. Depois vem a etapa dos jogos, cujo objetivo é tornar o corpo expressivo. Podem ser jogos de criança, em que cada participante tira um papelzinho onde está escrito o nome de um animal, e depois tem 10 minutos para expressar, através apenas de seu corpo, o animal que lhe coube. Enquanto você utiliza nomes de animais não entra a ideologia, mas quando você passa a fazer jogos com nomes de profissões - por exemplo, um operário, um policial, um capataz, um gerente de fábrica, o jogo se torna ideológico. A Civilização está para publicar um novo livro meu em que conto essas experiências todas. Chama-se 200 Exercícios e Jogos para o Ator e Não-Ator com Vontade de Dizer Coisas através do Teatro. A terceira etapa, com vários graus, é a do teatro como linguagem. No primeiro grau, que se chama dramaturgia simultânea, os atores representam uma cena até determinado ponto, param e perguntam à platéia como devem continuar. No segundo grau, que é falar através de estátuas, dá-se um tema ao espectador e ele tenta representá-lo fisicamente esculpindo um conjunto de estátuas com o corpo das outras pessoas. Bem feito, isso tem a imagem do real. Depois, pede-se às pessoas que montem, através de estátuas vivas, a imagem ideal, que pode ser todo mundo feliz, com comida, se amando, etc. O terceiro grau é o teatro debate. Você monta uma cena com um tema político qualquer mas com uma solução propositadamente falsa. Quando termina, você pergunta se as pessoas estão de acordo e obviamente elas dizem que não. Então se recomeça tudo, mas a pessoa que estiver em desacordo deverá entrar em cena, substituir o ator que está dando a solução falsa e experimentar a sua solução. Os demais atores continuam tentando impor a solução velha e aí o espectador que assumiu conscientemente a posição de ator tem que lutar contra gente que não está aceitando a solução dele.
BOAL - Minha preocupação com a América Latina já vinha de longe. A partir de 1968 vi que, para mim, não havia mais condições de trabalhar no Brasil. Então comecei a viajar por vários países vizinhos e percebi que o Brasil era um país culturalmente isolado. Em 1969, 1970 e 1971 tentei integrar teatralmente nosso país à América Latina, levando peças brasileiras para o exterior. Por exemplo, percorri o México de alto a baixo com Zumbi e com Simon Bolívar, uma peça que ensaiei no Brasil mas só encenei fora. Em 1971 fui preso, fiquei três meses no presídio Tiradentes sem culpa formada. Descobriu-se então que eu era inocente e, depois de uma grande campanha internacional pela minha soltura, me deixaram sair. Imaginei então que poderia fazer um trabalho mais útil fora do Brasil e fui trabalhar na Argentina. No Brasil, eu já tinha feito o Teatro Jornal, que eram onze técnicas de transformar notícias de imprensa em cenas dramáticas e permitir que todo mundo fizesse teatro. Na Argentina, junto com o grupo Machete, comecei a desenvolver o Teatro Invisível, algo muito atraente. A gente escolhia uma cena e a estudava, como quem vai montá-la num teatro, com pano subindo, tudo certinho. Só que fazíamos a cena num lugar que não era o teatro e para pessoas que não eram espectadores. Por exemplo: no vagão de um trem. Os passageiros, não sabendo que eram espectadores, interferiam na ação e se transformavam em atores.
Veja - E qual o objetivo disso?
BOAL - Fazer o teatro explodir dentro de um ritual diferente do ritual teatral. Quando você faz o teatro dentro do teatro, se o espectador está lá apenas como espectador, ele é um ser passivo contra o qual se faz o espetáculo. O espetáculo se faz a fim de impor a ele uma visão de mundo que é acabada e na qual ele não pode interferir. Às vezes ocorre que essa visão é correta, mas, de qualquer maneira, trata-se de uma visão imposta, da qual o espectador não participa. Minha tentativa era e é a de libertar o espectador de sua condição de passividade, para que ele possa usar o teatro e através dele conseguir outras liberdades. Um exemplo: na Argentina, fazíamos teatro em restaurante. Lá existe uma lei que proíbe os argentinos de morrerem de fome. Se uma pessoa está com fome e sem dinheiro, ela tem, teoricamente, o direito de entrar num restaurante e de pedir comida o que quiser, menos vinho e sobremesa e no final apresentar sua carteira de identidade e dizer: Olha, eu sou argentino, não tenho dinheiro e estou proibido de morrer de fome. É claro que na realidade as coisas não se passam dessa maneira, mas, baseados na lei, preparávamos uma cena e íamos a um restaurante. O protagonista entrava, pedia um bife a cavalo, comentava sobre a qualidade da carne argentina com as pessoas da mesa ao lado, enfim, procurava estabelecer relações. No final, agradecia muito e na hora de pagar assinava a nota, mostrava a carteira de identidade e a devolvia para o garçom. Este, que não sabia que era espectador, desempenhava o seu papel e exigia o pagamento. Então começava um diálogo.
Veja - Havia outros participantes?
BOAL - Havia mais atores, distribuídos pelas outras mesas. Um deles, dizendo-se advogado, representava esse papel e defendia o cidadão que não queria pagar. Citava a tal lei e prevenia o garçom que, se chamasse a polícia, poderia até ser preso, pois o outro estava dentro da lei. Mas aí entrava um outro ator na cena e dizia qualquer coisa assim: Mas como é que pode haver uma lei que diga isso? Eu, por exemplo, sou farmacêutico e acho que, dentro do espírito da lei, uma pessoa também não deve morrer por falta de medicamento. Então, ela pode entrar na minha farmácia e levar o que quiser sem pagar. E isso não é justo. E a discussão aumentava. Resumindo, através dessa técnica de Teatro Invisível, discutia-se o tema da peça: se a comida e o remédio existem, por que há pessoas que morrem de fome ou por falta de medicamentos? Se existem os meios para dar felicidade às pessoas, por que elas não são felizes?
Veja - Mas no Teatro Invisível o espectador, no caso, o garçom, não tem consciência de que deixou de ser espectador...
BOAL - É verdade. Ele participa mas não sabe. E o importante é que ele se liberte da condição de espectador tendo consciência disso, sabendo que está intervindo e assumindo a ação dramática, sem equívocos nem falta de informação. Consegui chegar a isso no Peru, onde trabalhei em condições excelentes, com o apoio do governo, com um grupo de 120 alfabetizadores de todo o país. Conto essa experiência na última parte do meu livro Teatro do Oprimido, que a Civilização Brasileira lançou no Brasil. É um trabalho desenvolvido por etapas. A primeira é a dos exercícios físicos, e mostra como o corpo está alienado pelo trabalho que cada um faz. Por exemplo, fazíamos uma corrida em câmara lenta em que o vencedor era o último a chegar. Então, cada pessoa ia descobrindo, durante o exercício, vários músculos que nunca utilizava e outros que empregava excessivamente. Depois vem a etapa dos jogos, cujo objetivo é tornar o corpo expressivo. Podem ser jogos de criança, em que cada participante tira um papelzinho onde está escrito o nome de um animal, e depois tem 10 minutos para expressar, através apenas de seu corpo, o animal que lhe coube. Enquanto você utiliza nomes de animais não entra a ideologia, mas quando você passa a fazer jogos com nomes de profissões - por exemplo, um operário, um policial, um capataz, um gerente de fábrica, o jogo se torna ideológico. A Civilização está para publicar um novo livro meu em que conto essas experiências todas. Chama-se 200 Exercícios e Jogos para o Ator e Não-Ator com Vontade de Dizer Coisas através do Teatro. A terceira etapa, com vários graus, é a do teatro como linguagem. No primeiro grau, que se chama dramaturgia simultânea, os atores representam uma cena até determinado ponto, param e perguntam à platéia como devem continuar. No segundo grau, que é falar através de estátuas, dá-se um tema ao espectador e ele tenta representá-lo fisicamente esculpindo um conjunto de estátuas com o corpo das outras pessoas. Bem feito, isso tem a imagem do real. Depois, pede-se às pessoas que montem, através de estátuas vivas, a imagem ideal, que pode ser todo mundo feliz, com comida, se amando, etc. O terceiro grau é o teatro debate. Você monta uma cena com um tema político qualquer mas com uma solução propositadamente falsa. Quando termina, você pergunta se as pessoas estão de acordo e obviamente elas dizem que não. Então se recomeça tudo, mas a pessoa que estiver em desacordo deverá entrar em cena, substituir o ator que está dando a solução falsa e experimentar a sua solução. Os demais atores continuam tentando impor a solução velha e aí o espectador que assumiu conscientemente a posição de ator tem que lutar contra gente que não está aceitando a solução dele.
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