No início, é só cor. Apenas um terço da taça é preenchido pelo líquido vermelho intenso, quase rubi, com um leve entorno acastanhado. Mas basta girá-la levemente, aproximar o nariz e algo de extraordinário acontece: uma jovem reconhece o aroma de amoras maduras. Lá atrás, uma senhora identifica o cheiro do doce de marmelo que a avó fazia - e que ela quase esquecera. Um dono de restaurante identifica os temperos que usa em seus pratos e um senhor se emociona ao sentir o inusitado cheiro de animais e de um bosque, como aquele que ele freqüentava na infância. É como se, por alguns instantes, parte da vida dessas pessoas estivesse ali: em parcos 100 mililitros de um vinho tinto degustado na sala do curso da Associação Brasileira de Somelliers, no 14º andar de um edifício em São Paulo.
Talvez você ache exagero, esnobismo ou mesmo afetação (para não usar outro termo) tanta celeuma em torno de uma bebida. Afinal, tecnicamente, o vinho não passa de suco de uva fermentado. Ou, como diriam os químicos, uma solução aquosa de etanol (uma forma de álcool resultante da ação de leveduras sobre a uva) com maiores ou menores vestígios de açúcares, ácidos, ésteres, acetatos, lactatos e outras substâncias já presentes no suco da fruta ou resultantes da fermentação. Ainda assim, ninguém pode negar que os amantes do vinho seguem uma espécie de mística enraizada há quase 7 mil anos, quando se vivia num mundo não invadido pelos refrigerantes, bebidas isotônicas, energéticos, uísque, vodca, cachaça (os destilados são uma invenção do século XIV), nem mesmo café e chocolate (popularizados como bebida na Europa apenas depois da descoberta da América).
"Ao longo da história, o vinho foi a única fonte de conforto e coragem, o único remédio e anti-séptico, o único meio de que o homem dispunha para recuperar o ânimo e superar o cansaço e a tristeza", diz o pesquisador inglês Hugh Johnson, autor do livro A História do Vinho. "Ele foi, durante milênios, o principal luxo da espécie humana."
Mais do que um luxo, o vinho foi a bebida sagrada por excelência. Dos rituais a Dionísio, na Grécia antiga, até a celebração da eucaristia católica, repetida até hoje, ele atravessou milhares de anos sem perder sua aura divina. Seu comércio aproximou povos, mobilizou monarcas, enriqueceu Estados e foi sinônimo de poder - mesmo sem gostar de vinho, Hitler fez questão de possuir uma adega com os melhores exemplares do mundo, hábito copiado até hoje por políticos e novos-ricos em busca de status.
Por ser tão encorpado de significados, beber uma simples taça pode ter conseqüências imprevisíveis. Que o diga o mais novo presidente eleito do país, que aprendeu essa lição ao ser atacado durante a última campanha por ter tomado um Romanée-Conti - e olhe que Lula não pediu nem pagou pela garrafa de 6 mil reais, oferta do publicitário Duda Mendonça.
O poder de inebriar
Ninguém sabe ao certo quem foi o primeiro homem a beber vinho, nem onde ele foi experimentado pela primeira vez. Há indícios arqueológicos de que a uva já era cultivada há cerca de 7 mil anos, na atual Geórgia (ex-União Soviética). Mas talvez nem tenha sido preciso cultivar uvas para beber vinho. Qualquer homem que vivesse numa região cercada de videiras silvestres já devia ter notado que as uvas, a partir de um determinado estágio, perdiam um pouco de sua doçura para ganhar sabor mais forte. Pelo menos nessa fase, como diz o historiador Hugh Jonhson, o que deve ter chamado a atenção dos nossos ancestrais para a bebida não foi o seu sutil buquê, nem o persistente sabor de violeta e framboesa. Foi, provavelmente, o efeito inebriante que ele proporcionava. "Em meio a uma vida difícil, bruta e breve, aqueles que primeiro sentiram os efeitos do álcool acreditavam-se brindados com uma antevisão do paraíso", diz Johnson.
"As inquietações desapareciam, os medos se afastavam, as idéias ocorriam mais facilmente e os apaixonados se tornavam mais carinhosos quando bebiam esse sumo mágico."
Alguns, é claro, também davam vexames. É o caso do patriarca bíblico Noé, o mesmo da Arca que teria salvado os animais do dilúvio. O nono capítulo do Gênesis conta que, depois do desembarque da arca, Noé passou a cultivar a terra e plantou vinha. "E tendo bebido vinho, (Noé) embriagou-se e apareceu nu em sua tenda. E Cam, pai de Canaã, tendo visto a nudez de seu pai, saiu fora a dizê-lo a seus dois irmãos." Para evitar que Noé continuasse a perambular pelado e bêbado, os dois irmãos de Cam entraram em sua tenda e o cobriram. Noé, no dia seguinte, ainda teve o disparate de pôr a culpa do incidente em seu filho Cam, condenando-o a gerar uma espécie de raça inferior da humanidade - os cananeus, segundo a Bíblia.(Para evitar que seus cardeais exagerassem na bebida, o papa Júlio II mandou Michelangelo pintar essa história no teto da Capela Sistina no Vaticano, bem acima da vista de seus cardeais.)
Apesar do Gênesis não explicar bem o porquê da irada reação de Noé ao incidente, é de se supor que ele estivesse sofrendo uma das primeiras ressacas de vinho na história (quem já passou por uma sabe que não é a melhor hora para tomar decisões importantes). Mas as náuseas e as dores de cabeça que acompanharam os primeiros amantes do vinho no dia seguinte não foram suficientes para desanimá-los. A bebida, sem dúvida, parecia ter mesmo características especiais. Uma delas era sua capacidade de melhorar com o tempo. Isso facilitou a sua difusão por outras regiões e, no futuro, a transformaria num dos primeiros e mais importantes produtos de exportação do planeta. Dali em diante, o vinho se confundiu com a história da própria civilização.
Talvez você ache exagero, esnobismo ou mesmo afetação (para não usar outro termo) tanta celeuma em torno de uma bebida. Afinal, tecnicamente, o vinho não passa de suco de uva fermentado. Ou, como diriam os químicos, uma solução aquosa de etanol (uma forma de álcool resultante da ação de leveduras sobre a uva) com maiores ou menores vestígios de açúcares, ácidos, ésteres, acetatos, lactatos e outras substâncias já presentes no suco da fruta ou resultantes da fermentação. Ainda assim, ninguém pode negar que os amantes do vinho seguem uma espécie de mística enraizada há quase 7 mil anos, quando se vivia num mundo não invadido pelos refrigerantes, bebidas isotônicas, energéticos, uísque, vodca, cachaça (os destilados são uma invenção do século XIV), nem mesmo café e chocolate (popularizados como bebida na Europa apenas depois da descoberta da América).
"Ao longo da história, o vinho foi a única fonte de conforto e coragem, o único remédio e anti-séptico, o único meio de que o homem dispunha para recuperar o ânimo e superar o cansaço e a tristeza", diz o pesquisador inglês Hugh Johnson, autor do livro A História do Vinho. "Ele foi, durante milênios, o principal luxo da espécie humana."
Mais do que um luxo, o vinho foi a bebida sagrada por excelência. Dos rituais a Dionísio, na Grécia antiga, até a celebração da eucaristia católica, repetida até hoje, ele atravessou milhares de anos sem perder sua aura divina. Seu comércio aproximou povos, mobilizou monarcas, enriqueceu Estados e foi sinônimo de poder - mesmo sem gostar de vinho, Hitler fez questão de possuir uma adega com os melhores exemplares do mundo, hábito copiado até hoje por políticos e novos-ricos em busca de status.
Por ser tão encorpado de significados, beber uma simples taça pode ter conseqüências imprevisíveis. Que o diga o mais novo presidente eleito do país, que aprendeu essa lição ao ser atacado durante a última campanha por ter tomado um Romanée-Conti - e olhe que Lula não pediu nem pagou pela garrafa de 6 mil reais, oferta do publicitário Duda Mendonça.
O poder de inebriar
Ninguém sabe ao certo quem foi o primeiro homem a beber vinho, nem onde ele foi experimentado pela primeira vez. Há indícios arqueológicos de que a uva já era cultivada há cerca de 7 mil anos, na atual Geórgia (ex-União Soviética). Mas talvez nem tenha sido preciso cultivar uvas para beber vinho. Qualquer homem que vivesse numa região cercada de videiras silvestres já devia ter notado que as uvas, a partir de um determinado estágio, perdiam um pouco de sua doçura para ganhar sabor mais forte. Pelo menos nessa fase, como diz o historiador Hugh Jonhson, o que deve ter chamado a atenção dos nossos ancestrais para a bebida não foi o seu sutil buquê, nem o persistente sabor de violeta e framboesa. Foi, provavelmente, o efeito inebriante que ele proporcionava. "Em meio a uma vida difícil, bruta e breve, aqueles que primeiro sentiram os efeitos do álcool acreditavam-se brindados com uma antevisão do paraíso", diz Johnson.
"As inquietações desapareciam, os medos se afastavam, as idéias ocorriam mais facilmente e os apaixonados se tornavam mais carinhosos quando bebiam esse sumo mágico."
Alguns, é claro, também davam vexames. É o caso do patriarca bíblico Noé, o mesmo da Arca que teria salvado os animais do dilúvio. O nono capítulo do Gênesis conta que, depois do desembarque da arca, Noé passou a cultivar a terra e plantou vinha. "E tendo bebido vinho, (Noé) embriagou-se e apareceu nu em sua tenda. E Cam, pai de Canaã, tendo visto a nudez de seu pai, saiu fora a dizê-lo a seus dois irmãos." Para evitar que Noé continuasse a perambular pelado e bêbado, os dois irmãos de Cam entraram em sua tenda e o cobriram. Noé, no dia seguinte, ainda teve o disparate de pôr a culpa do incidente em seu filho Cam, condenando-o a gerar uma espécie de raça inferior da humanidade - os cananeus, segundo a Bíblia.(Para evitar que seus cardeais exagerassem na bebida, o papa Júlio II mandou Michelangelo pintar essa história no teto da Capela Sistina no Vaticano, bem acima da vista de seus cardeais.)
Apesar do Gênesis não explicar bem o porquê da irada reação de Noé ao incidente, é de se supor que ele estivesse sofrendo uma das primeiras ressacas de vinho na história (quem já passou por uma sabe que não é a melhor hora para tomar decisões importantes). Mas as náuseas e as dores de cabeça que acompanharam os primeiros amantes do vinho no dia seguinte não foram suficientes para desanimá-los. A bebida, sem dúvida, parecia ter mesmo características especiais. Uma delas era sua capacidade de melhorar com o tempo. Isso facilitou a sua difusão por outras regiões e, no futuro, a transformaria num dos primeiros e mais importantes produtos de exportação do planeta. Dali em diante, o vinho se confundiu com a história da própria civilização.
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