Veja - Como se desenvolveram sua infância e sua adolescência?
CARLOS LACERDA - Para explicar isto, é preciso que eu diga que o Brasil é um país em que se começa muito cedo e se acaba muito cedo. É muito mais um país de Álvares de Azevedo e de Castro Alves do que de De Gaulle ou de Churchill. Se me impressiona a vitalidade de Churchill e de De Gaulle, também me assombra a vitalidade brasileira, que me parece um fenômeno de natureza e, acima de tudo, uma carência de quadros. Quando comecei a me interessar pelos assuntos de adultos, era apenas um menino. E isto era natural, pois meu pai era um homem público e fui criado por um avô que vivia muito intensamente todos os problemas. Vivi dentro de um aquário, mas um aquário cheio de livros. E, com isto, me acostumei a ler sobre tudo. Muito novo ainda para entrar nos assuntos existenciais da minha geração, tive que fazer uma opção entre três posições:
uma de inconformismo, para virar o mundo de cabeça para baixo - necessariamente de esquerda -; uma posição para colocar o mundo de cabeça para cima - também de inconformismo -, isto é, um mundo altamente hierarquizado, em que as estruturas tradicionais se cristalizavam e que era obrigatoriamente uma posição fascista ou semifascista; e um mundo que seria uma espécie de permanente belle époque em termos sociais, em que nada havia a alterar e em que uma grande massa de pessoas continuaria inteiramente ignorada e
abandonada à própria sorte.
Veja - Seus primeiros estudos foram feitos aonde?
CARLOS LACERDA - Cursei o ginasial no Colégio Franco-Brasileiro - que se chamava Licée Français -, um dos melhores da época. E lá comecei a ser vítima de pressupostos. Pressupostos de que eu era um menino muito capaz e por isto poderia cursar um ano à frente do que seria o normal para minha idade. O resultado é que fui reprovado, de cara, em matemática. E aí um professor, que era meu primo, convenceu minha mãe a me matricular num internato. Essa foi a minha desgraça. Fui para um internato onde as pessoas eram muito boas, mas a instituição do internato era de tal maneira opressiva que ficou para mim assim como uma espécie de vestíbulo de campo de concentração. Não consigo tirar da lembrança, até hoje, a primeira noite de internato. Me senti como se fosse um órfão na tempestade, num dormitório inóspito, enorme, sem nenhum calor humano. Tive
vontade de pegar um cabo de vassoura e voar por cima daqueles telhados todos de São Cristóvão. De lá, acabei mal-e-mal meu ciclo secundário num curso no centro da cidade, desses que a gente faz apenas para obter o diploma. Aí vejo a Revolução de 30 e o primeiro resultado dela foi fazer todo mundo passar por decreto, o que
me permitiu ser aprovado em matemática, fisica, química e história natural. Senão, talvez eu ainda estivesse lá, a penar. Depois fui para o curso anexo da Faculdade de Direito, onda então abri a cabeça para uma porção de coisas, porque os professores se chamavam Afrânio Peixoto, Júlio Porto Carrero, Nélson Romero, enfim, a nata dos professores da época.
Veja - Como foi sua vida universitária?
CARLOS LACERDA - A vida universitária, neste tempo, girava em torno do Café Lamas, da casa de alguns colegas, da casa do Leônidas Rezende, que nos ensinava marxismo, inspirado pelo positivismo - não sei bem como conseguiu conciliar as duas coisas -, e que era um sujeito encantador. Eu convivia com gente. Aí eu pertenci ao Movimento da Reforma, que no fundo era um clube bastante conservador da faculdade de Direito. Com isto me afastei instintivamente de uma coisa muito mais estruturada, muito mais ideologicamente fundamentada, que era o clube a que pertenciam Otávio de Faria, Santiago Dantas, o pessoal que, na época. eu chamava de fascista. Aí já começou uma divisão. Era uma época em que o Mário Lago, por exemplo, fundou a Associação dos Estudantes Ateus. Coisas desse gênero: ser ateu ainda era uma posição ideológica; era uma opção. Essa necessidade de optar me levou para um lado melhor do ponto de vista existencial. Quer dizer, o lado de quem protesta contra uma estrutura que ele sabe errada e que procura jogar esta estrutura para o alto, em vez de se conformar com ela, como se conformavam os políticos liberais. Mas liberais no sentido filosófico do termo: laissez faire, laissez aller. Que se conformavam com um país oligárquico, com eleições falsas, e que
faziam revolução sem nunca chegar ao fundo da questão. E nós tínhamos a pretensão de chegar ao fundo da questão.
Veja - Foi este modo de vida universitária que o levou para o Partido Comunista?
CARLOS LACERDA - Levou-me muito próximo a ele. Eu me lembro que considerei um prêmio quando me foi anunciado - por pessoas que ainda estão vivas (e várias delas deixaram o partido) - que eu ia ser admitido na Juventude Comunista. Isso representou para mim uma espécie de condecoração. Um sinal de maturidade intelectual. Mas aí um senhor Dimitrov, um búlgaro, resolveu dissolver a Juventude Comunista na hora que eu ia entrar para ela. Mas isto nunca mais impediu de sempre se dizer que fui membro do Partido Comunista. O que, aliás, naquela época, era para mim absolutamente natural. Mas, tecnicamente, eu não fui do partido. Colaborei com eles como um simples simpatizante. Pertencer ao partido era um galardão, uma honra que eu não cheguei a merecer. Aí surgiu a Aliança Libertadora, que foi a cristalização dessa posição nacionalista, antiimperialista, antifascista e, portanto, democrática, à moda da época. E então fui distinguido, uma bela noite, com a incumbência de ler o manifesto do Prestes. Dessa ocasião existe uma fotografia que, volta e meia, ainda sai publicada por aí como uma prova desnecessária, pois sempre reconheci que fui simpatizante do comunismo. Não me envergonho disto absolutamente. Eu me envergonharia se, numa época eminentemente politizante, como foi a da minha adolescência, não tivesse tido uma posição de contestação daquele marasmo, que vinha praticamente inalterado desde o Império. Um dia, em 1935, eu estava em casa do Alvaro Moreyra, colado no rádio para saber notícias do levante comunista, quando ouvi o locutor dizer que eu havia sido preso. Senti que estava na hora de me botar à sombra. Abriguei-me em casa de um colega, Adalberto João Pinheiro, neto do velho João Pinheiro, filho de uma excelente criatura que se chamava Paulo Pinheiro e sobrinho do Israel Pinheiro. Era uma família profundamente católica, que recebeu aquela espécie de jovem anti-Cristo em casa. E recebeu com tal carinho, se expondo a uma porção de coisas, que começou aí um processo - não bem de reconciliação -, mas um processo de identificação de algumas coisas mais sérias do que minhas idéias. Eu
diria uma transferência do campo das idéias para o campo dos sentimentos. Então comecei a verificar que havia uma coisa mais importante do que ideologia. Era reação existencial. Uma afirmação das pessoas como pessoas, não como máquinas de pensar. Isto, muito mais tarde, veio a me fazer ter um certo desprezo pelas
ideologias.
Veja - Durante quanto tempo esteve fugido da policia e que importância teve esse período da sua vida?
CARLOS LACERDA - Por cerca de um ano e tanto fiquei pulando de apartamento para apartamento, fugido. Nessa ocasião fiquei durante seis meses, sem botar o nariz na rua, num quarto da casa de uma tia-avó, em Ipanema, que dava para uma parede coberta de hera, atrás da qual, mais tarde vim a saber, morava o Nelson Rodrigues. E ali, tirando umas poucas pessoas da casa, eu não tinha nenhum outro contato com o mundo. A não ser através de uns livros que meu pai me mandava, até ser preso ele também. Naquela altura aconteceram
coisas muito estranhas comigo. Comecei a ler muito sobre o Brasil. A estudar o problema do negro. Fiquei então muito mais preocupado com os brasileiros, seus tipos de reação, seus problemas. E aqui devo dizer que os estudos que fiz de Marx e Engels - sobretudo de Engels, que era um bom escritor - me foram extremamente úteis. Até hoje estou convencido de que um dia o mundo ocidental vai fazer com Descartes o que a China está fazendo com Confucio. Vai destruir a lógica cartesiana. Porque a única lógica que pode regar uma sociedade é a lógica engeliana, quer dizer, o mundo dá saltos e as coisas se fazem por teses, antíteses e sínteses. E não por meras armações de silogismos. Descobri essas coisas na minha solidão.
Veja - Como surgiu a sua atração pela política?
CARLOS LACERDA - O que eu sofri, em conseqüência da vida pública e da vida política de meu pai, me afastava da política militante. Primeiro, porque não acreditava nela. Segundo, tinha nojo dela. Terceiro, achava-a inviável, desinteressante. E conservei disso um certo horror á política. Sempre tratei-a aos pontapés. Razão pela
qual os políticos em geral nunca me tomaram como um dos deles. Mas eu ganhava eleições. Então eles precisavam de mim. Contudo, entre uma eleição e outra, sempre que podiam me botavam para baixo. Nunca me senti à vontade no jogo político. Ele era para mim uma coisa meio desprezível. Foi o jornalismo político, sobretudo, para o qual entrei forçado por circunstâncias da minha formação contestatória e de minha herança de família, que me fez entrar para a política. A gente cria tais compromissos com o leitor que, num dado momento, você se sente obrigado a demonstrar que tem razão naquilo que está dizendo. Os compromissos que a gente vai criando com a vida, com os amigos, com os inimigos, nos levam forçosamente para a política. Sobretudo porque, na época, uma geração eminentemente politizada, como foi a minha, empenhada e fadada a mudar a realidade brasileira tinha diante de si uma estrutura que era a cristalização de tudo que havia de ruim até então - a ditadura, a longa ditadura. Hoje em dia, com o tempo, dizer que tudo nela foi ruim seria um exagero. Mas ela teve de fundamentalmente ruim uma coisa que me horroriza: a alienação de todas as novas gerações pelo fato político. Nós tivemos que enfrentar o problema de uma estrutura ditatorial que cristalizou a adulação, a corrupção, não só no sentido do dinheiro, mas no sentido dos caracteres e das idéias. Foi uma deseducação do povo brasileiro e sobretudo da juventude, que foi quase alienada. Isto me conduziu para a política. Nesta ocasião
explodiu como uma espécie de estuário de tudo isso a União Democrática Nacional, a UDÑ, nunca foi um partido. Era muito mais uma posição tomada em face da ditadura, até por pessoas que haviam servido a ela e por outros que sempre mantiveram uma posição contrária. Os udenistas dificilmente se poderiam entender entre
si porque falavam línguas diferentes. Vinham de origens e caminhavam para fins diversos. Esse "saco de gatos" nunca foi uma escola política, enquanto o PSD foi - depois do Partido Radical da Argentina - uma das duas únicas escolas políticas da América Latina, na qual se formaram todos esses políticos que o Brasil tem tido.
Quando acabou tudo isto, eu me vi uma espécie de udenista sem saber, sem querer. Não renego isto, porém; acho que foi uma experiência muito útil para mim. Então, eu tinha com a política uma certa impaciência. Daí o desprezo com que eu tratava os políticos, que hoje reconheço ter sido até excessivo, mas que era uma decorrência desta minha repugnância. Daí que o momento culminante da minha vida pública foi, realmente, ter podido chegar ao poder, ao governo da Guanabara. O poder é muito bom. Não adianta querer enganar. Nem me gabar, quero dizer que todas as posições políticas que tive na vida foram conseguidas sempre por eleições. Nunca o foram nem por aclamação nem por nomeação.
Veja - Apesar de fazer restrições aos políticos e à política, por que razão criou e participou da Frente Ampla, apertando a mão de inimigos tradicionais como Juscelino Kubitscheck e João Goulart?
CARLOS LACERDA - Meu desprezo pelos políticos e pela política existe apenas quando uns e outros não cumprem sua finalidade. A atividade política é a mais nobre das atividades. E não tenho a menor restrição a estender a mão a antigos adversários políticos se achar que em determinado momento a minha aliança com eles representa um bem para o país. Naquele momento a nossa união era importante.
Veja - Como o político se transformou em empresário?
CARLOS LACERDA - Quando sai do governo da Guanabara, tinha uma dívida de 200 milhões e estava sem emprego. A necessidade de ganhar dinheiro me fez entrar para a empresa privada. Aceitei o convite de amigos e fundamos uma financeira. Mas ainda não estava convencido de que ficaria por lá. Tentei mais algumas coisas no
campo antigo de trabalho, mas não quiseram que eu continuasse. Fui obrigado a aceitar o desafio. Mais um em minha vida.
Veja - Muita gente se espanta quando sabe de seu amor pelas plantas e bichos. Como se explica isto?
CARLOS LACERDA - Fui um menino de educação rural. Morei numa fazenda e cresci entre vacas e mangas. Vi muito mais árvores do que gente. É natural que isto ficasse em mim. Fui uma criança pobre. Quando meu pai ficou preso, o meu colégio foi pago pela Maçonaria e pelas jóias que minha mãe botou no prego. O sentimento da natureza ficou arraigado em mim.
Veja - Outros afirmam que o senhor não sabe conservar amigos. Isso é verdade?
CARLOS LACERDA - Eu não tenho culpa que meus amigos se modifiquem. Eu sou sempre o mesmo. Mas, de repente, descubro que não tenho mais nada a dizer a uma pessoa, e a amizade se acaba.
Veja - Como explica seu rompimento com Castello Branco?
CARLOS LACERDA - Com as limitações que o momento atual me impõe, devo dizer que minhas divergências com o presidente Castello Branco foram exclusivamente de ordem política. Nunca tivemos nada pessoal que nos separasse. Não interferimos em negócios ou negociatas de um e de outro. Não tivemos problemas de amor. Apenas divergi dele porque havíamos feito uma revolução para que o povo votasse. Eu queria eleições. Do ponto de vista da administração econômica, também tivemos pontos de vista diferentes. Fica por conta de intrigas de parte a parte o nosso rompimento final.
Veja - O que acha da fusão Guanabara Estado do Rio num só Estado?
CARLOS LACERDA - Eu sou nascido no Rio e registrado no Estado do Rio. Sempre fui favorável a ela. Quando governador da Guanabara, cheguei a propor a minha renúncia e a renúncia do então governador do Estado do Rio para que se fizesse a fusão. Os problemas dos dois Estados são idênticos. Por exemplo, grande maioria dos favelados daqui são egressos de lá. Não há por que não se juntar numa mesma unidade federativa problemas idênticos, sobretudo quando eles fazem parte de uma mesma e grande região geo-econômica.
Veja - Qual a sua verdadeira participação no livro do general Spínola?
CARLOS LACERDA - Minha participação foi apenas de leitor e de editor. Fiz também o prefácio da edição brasileira, à revelia do autor. Foi só.
Veja - O que vai ser de Portugal depois do golpe?
CARLOS LACERDA - Isto vai depender muito dos democratas portugueses. Ninguém muda um país num dia. Não se vive mais de quarenta anos sob uma ditadura, impunemente. O que existia em Portugal era a apatia e a desordem. E a opressão. O caminho certo só pode ser tomado aos poucos, sem influências decisivas da esquerda ou da direita. A vontade do povo deve ser soberana. Está na hora de o Brasil mostrar que é amigo de Portugal. O Brasil pode e deve assumir sua posição de líder da grande comunidade dos países de língua
portuguesa. Uma comunidade afro-luso-brasileira, em termos nacionais e internacionais, trará incalculáveis benefícios. Mas tudo deve ser feito com calma e não se pode exigir dos novos governantes portugueses milagres que eles não podem fazer. Deve-se dar a eles um crédito de confiança. Portugal tem, agora, condições de recuperar seus amigos no mundo inteiro, que estavam afastados pelas circunstâncias. Mas os portugueses da Europa e da África precisam ficar atentos: a alegria de ver terminar uma ditadura não deve se confundir com baderna e anarquia. A tomada do poder pelas Forças Armadas era inevitável, mas os políticos precisam ficar atentos para que este poder não se eternize. Só o povo pode decidir o que é melhor para ele. E, sobretudo, é muito bom saber que o papel principal de todo este processo foi desempenhado por um livro.
Veja - Por que razão decidiu lutar pelas liberdades de Portugal?
CARLOS LACERDA - A liberdade sempre foi a minha maior preocupação. Seja de que país for.
Veja - E o Brasil, não merece mais sua atenção?
CARLOS LACERDA - Nunca deixei de ter os olhos voltados para o Brasil. É a minha grande preocupação. Mas, no momento, o Brasil não precisa de mim.
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